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Artigos-->Augusto dos Anjos, Mutatis mutandis… -- 02/03/2009 - 12:47 (Mauro Bartolomeu) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
10/10/2007



Talvez o soneto mais conhecido de Augusto dos Anjos, esse poeta original e inclassificável que ora é chamado “simbolista”, ora “parnasiano”, ora ligado ao Expressionismo, ora inserido didaticamente num tal de “Pré-Modernismo” (seja lá o que isso queira dizer), é aquele que se inicia pelos versos “Vês! Ninguém assistiu ao formidável / Enterro de tua última quimera.” Trata-se de Versos Íntimos, que aparenta ser, também, o poema de sua autoria que conta com o maior número de versões diferentes na rede mundial de computadores. Uma busca rápida nos mostra a primeira palavra do poema separada do restante por todos os sinais de pontuação possíveis: por vírgula, por interrogação, por interrogação e exclamação, e até só por exclamação mesmo, como consta no original. Outra versão eliminou a desinência verbal de segunda pessoa (tu) e, como se o poeta se dirigisse a um “você”, pergunta: “Vê? Ninguém assistiu…”. Uma outra ainda, certamente escrita de memória, desloca as palavras e transforma o verso em “Vês, amigo, ninguém assistiu…”. Isso tudo só no primeiro verso. Há casos em que até dentro do mesmo artigo o autor se mostra indeciso entre duas formas, e essa confusão não se dissipa tampouco entre os livros eletrônicos distribuídos pela rede. É natural que os entusiastas do poeta cometam esses pequenos equívocos, e neste caso com especial razão, como veremos.

A primeira palavra do poema em questão é um verbo conjugado na segunda pessoa, essa que, tanto no plural quanto no singular, se presta quase sempre a confusões, pela simples razão de que no Brasil as formas verbais de segunda pessoa caíram em desuso, ficando reservadas apenas para situações de extrema formalidade, assim como para uso religioso (devemos excetuar o Sul, que mantém essa conjugação, pelo menos no singular, mas não o carioca, que usa coloquialmente o pronome “tu” mas mantendo o verbo na terceira pessoa do singular). Ora, a forma “vês” corresponde ao presente do indicativo do verbo ver. Isso levou Nelson Ascher a verter assim os versos para o inglês: “No one attended, as you’ve seen, your last / Chimera’s awe-inspiring funeral.” Há, porém, razões suficientes para supormos que a intenção do poeta era a de que ela correspondesse ao modo imperativo. A julgar pelo tom das recitações dos Versos Íntimos, aliás freqüentes, dada sua popularidade, os leitores instintivamente interpretam a forma verbal em questão como imperativa, e a razão mais óbvia é a de ser ela seguida por um ponto de exclamação. Isso, é claro, não é o bastante; a frase pode perfeitamente ser interpretada como uma constatação exclamativa, algo como um “enfim tu vês!” (ainda assim, que insípida a tradução de Ascher!…). Mas ao longo do poema constata-se que o eu-lírico se dirige à segunda pessoa sempre no tom imperativo: “acostuma-te à lama que te espera”, “toma um fósforo”, “acende o teu cigarro”, “apedreja essa mão vil”, “escarra nessa boca”. Observe-se ainda que todas essas formas verbais aparecem no início dos versos (com exceção de “acende”, inserida no interior de um verso que já havia começado por um imperativo), duas delas no primeiro verso da estrofe, ficando apenas o último terceto iniciado por construção condicional (“Se a alguém causa inda pena…”), porém encerrado por dois versos que também se iniciam por imperativos. Também, pois, essa reiteração estrutural, sempre tão bem explorada por Augusto dos Anjos, abona a interpretação que ora defendemos.

Ocorre, porém, que a forma de segunda pessoa do singular no modo imperativo do verbo ver não é “vês”, mas “vê”, forma que, evidentemente em nada altera a métrica do verso. Tudo leva a crer que fosse essa a intenção original do poeta, embora essa gralha, como se diz no jargão tipográfico, deva ter simplesmente passado despercebida por ele, pois que já aparece na primeira edição do Eu, em 1912, e até hoje não foi percebida como tal. O gênio paraibano, infelizmente, não teve tempo de fazer uma segunda edição da obra; todas as suas revisões e ampliações foram feitas por seus críticos, a partir de Órris Soares. A respeito deste, aliás, corre uma lenda que talvez tenha sua verdade, narrada por Jô Soares, de quem Órris vem a ser tio-avô. Afirmou o humorista que o crítico em questão teria identificado uma gralha na primeira edição do instigante volume, único livro que o poeta chegou a publicar, e deduzido sua forma correta, a qual teria sido atestada mais tarde, ao se verificarem os manuscritos do poeta. A gralha em questão, não citada embora na Obra Completa da Nova Aguilar, seria referente ao poema Senectude Precoce, que se inicia com o tenebroso “Envelheci. A cal da sepultura / Caiu por sobre a minha mocidade”. Na edição primeira constava, de acordo com Jô Soares, “a cálida sepultura”, o que, naturalmente, não faz sentido, tendo cabido a seu tio-avô detectar o erro e corrigi-lo, lembrando-se de que cal é substantivo feminino.

Verdade ou não, pensamos que seria oportuno investigar novamente os manuscritos do poeta raquítico, pois quem sabe possamos assim diluir essa dúvida e ver publicado nas próximas edições de sua obra poética, que auguramos sejam muitas, o soneto como ele deve ser:



“Vê! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão – esta Pantera –

Foi tua companheira inseparável!



Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.



Toma um fósforo. Acende o teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.



Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!



Pau d’Arco – 1901.”

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