Tolerância zero!
Carlos Claudinei Talli
Temos observado ultimamente, tanto no Brasil como na Europa, um comportamento recorrente das torcidas de futebol. Passam da idolatria à malhação como que num passe de mágica. Ao mesmo tempo em que, com uma facilidade incrível, criam ídolos – e os reverenciam como verdadeiros deuses -, destroem-nos com uma rapidez ainda mais voraz.
Exemplos não faltam para atestar o que acima afirmamos.
No Brasil, antes desta boa fase atual, o clube onde isso mais ocorria era sem dúvida o São Paulo. As vítimas mais recentes e mais ilustres foram Kaká, Ricardinho e Luis Fabiano. Vocês se lembram? Nos outros clubes o mesmo acontece, com uma freqüência assustadora.
Na Europa, não é diferente. Há alguns anos, no Real Madri, Roberto Carlos, um dos jogadores mais vitoriosos dos últimos tempos no futebol mundial, passou a sofrer com o destempero da torcida merengue. Vaiado do início ao fim dos jogos, durante alguns meses comeu o pão que o diabo amassou.
Mais recentemente, após dar inúmeras alegrias aos torcedores do Barcelona entre 2005 e 2008, quando se tornou por dois anos consecutivos o melhor jogador do mundo, o nosso Ronaldinho Gaúcho também passou por poucas e boas. Juntamente com o também excelente meia-armador Deco teve que trocar de clube, pois a ira da torcida catalã só fazia aumentar. Desse modo, percebemos que essa conduta hostil não é privilégio de nenhum país do mundo, tornando-se mesmo o ponto comum de todas as torcidas no futebol contemporâneo.
Agora, perguntamos: qual a causa para semelhante comportamento?
Um bom começo para tentarmos responder a essa pergunta é percebermos que ele coincide com a globalização do futebol - a expansão do chamado ‘marketing esportivo global’ -, que induz ao consumo do esporte como se ele fosse um bem indispensável à qualidade de vida das pessoas, provocando uma identificação quase doentia entre o fã e o ídolo.
Se um grande jogador atravessa uma boa fase em sua carreira, ele é assediado pela indústria da publicidade e a sua imagem é usada até a exaustão. Sua vida particular é virada ao avesso e mostrada pela mídia de uma maneira escancarada, inclusive os deslizes que, para um cidadão normal, passariam despercebidos. As cifras astronômicas que recebe passam a forrar as páginas dos jornais e os noticiários esportivos na televisão. Enquanto ele continuar no auge, o imaginário popular o endeusa, e camisas, bonés e outros objetos que lembram o ídolo são comprados e usados de uma maneira acintosa. Esquece-se até mesmo das agruras da vida moderna assumindo-se a personalidade do ídolo. E a indústria do marketing esportivo fatura somas fabulosas com tudo isso.
No entanto, é só a maré mudar, o craque entrar numa péssima fase, o clube do coração começar a fazer água e/ou o maior rival entrar numa fase de conquistas, e o castelo construído na areia se desmorona com uma facilidade incrível. Então, as altas somas percebidas se transformam rapidamente num obstáculo intransponível entre o ex-ídolo e o ex-fã. Comparações extemporâneas começam a ser projetadas na mente do ex-fã:
‘Como esse cara, que não estudou, que veio do nada, que só sabe fazer isso, que faz exatamente o que todo mundo gostaria de fazer, pode ganhar essa fábula de dinheiro, e eu, aqui, nessa miséria danada, ralando como um condenado? Esse cara é um mercenário; só pensa em dinheiro e não liga pro clube; ele que vá pra...! Eu quero é que ele se...!’.
E daí pra frente, o ex-fã vai ao estádio de futebol para por pra fora o seu ex-amor, agora transformado em ódio virulento. E o ex-ídolo se torna o maior vilão na vida daquele insatisfeito torcedor. Tudo de errado que acontece passa a ser culpa daquele sacripanta desnaturado.
Aí, está na hora do ex-ídolo ser vendido, mudar de ares e continuar a carreira numa outra freguesia.
E a roda do futebol é reinventada, e muita gente se enriquece com ela.
Percebe-se claramente que o futebol nos tempos atuais se transformou – como alguns outros esportes, as drogas, o álcool e também o consumismo exacerbado - num dos últimos apoios da auto-estima da humanidade insatisfeita.
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