Quando eu era jovem acreditava que somente o que me interessava ou aquilo que deveria saber para uma determinado objetivo,para exercer uma profissão por exemplo, era importante aprender. “Saber não ocupa lugar na cabeça”, é um ditado popular conhecido. De fato, com o passar dos anos, os exemplos dos meus chefes e com a própria experiência, tenho a certeza de que tudo o que for possível aprender tornará a sua vida mais fácil. Os ensinamentos poderão, até mesmo salvá-lo em uma situação de risco.
Vasculhando minha memória,encontro alguns exemplos práticos dessa afirmação. Quando era mensageiro do IPASE, freqüentemente me deslocava para o centro da cidade. Numa dessas minhas andanças me deparo com um enorme incêndio na Cinelândia. O Hotel Serrador estava em chamas ! Juntei-me a multidão para observar tudo. Parecia cena de um filme trágico, como aquele que narra a estória verídica da queda de um avião nos Andes, com uma equipe de jovens atletas do Uruguai, em que muitos conseguiram se salvar.
Observei inúmeras pessoas acenando desesperadas nas janelas dos andares mais altos daquele hotel.Em baixo daquelas janelas saiam labaredas de fogo e enorme fumaça negra.Estava preocupado com aquelas pessoas. De que modo seriam salvas ? As escadas rolantes dos bombeiros não chegavam aquela altura. A eletricidade do prédio foi cortada, como costuma acontecer nesses casos. Obviamente não havia serviço de elevador. Para resgatar aqueles que estavam no último andar surge um helicóptero que se encaminha em direção ao hotel. Agora as enormes labaredas produziam um intenso calor, A fumaça dificulta a visibilidade. Acredito que por isso o piloto teve que adiar o resgate das pessoas que já estavam no terraço do prédio.
Os bombeiros conseguiram passar cordas paralelas de um dos edifícios que ficava do outro lado da rua Senador Dantas para o hotel. Um homem consegue se salvar usando-as para atravessar de um lado para o outro. A mesma sorte não teve uma jovem que, na terça parte do percurso, larga as cordas e cai ao solo, para desespero da multidão. Silencio ! Uma verdadeira tragédia! Depois desse fato retomei o meu caminho. No outro dia veio à mente a técnica com cordas para transposição de curso d`água que o Exército me ensinou quando era Soldado. Na época eu me perguntava mentalmente, para que aprender aquilo ? Pensava que jamais poderia usar aquele ensinamento na minha vida civil. O tempo me deu a oportunidade de saber a sua importância. Se a jovem tivesse esse conhecimento não teria morrido. Não é preciso usar muita força. O peso do corpo é distribuído para os membros e para a corda. Mas é preciso saber !
Como médico do Exército ministrava instruções à tropa sobre Primeiros Socorros. Enfatizava a sua importância prática. Nessa época verificava com pesar que um ou outro Soldado não se interessava pela matéria. Imediatamente lhes contava o caso do incêndio ou outro exemplo vivenciado por mim, como outro acidente ocorrido no Largo do Machado. Nesse caso, eu estava em frente a igreja, quando um bonde vem em direção a rua das Laranjeiras. Ele para a minha frente. Após a sua partida houve-se gritos ! Um rapaz que estava nos estribos, desequilibrou e caiu, fazendo com que aquele veículo decepasse a sua perna, acima do joelho. Lembro que foi uma enorme confusão. Havia muito sangue. O rapaz gritava de dor. O guarda de trânsito não sabia o que fazer. Foi quando um senhor (depois vim a saber que era médico) retirou o seu cinto e fez um garrote na perna do acidentado. Pediu ao guarda para chamar uma ambulância . Ele permaneceu confortando o jovem e lhe aplicando o torniquete. Em seguida com a chegada da ambulância foi conduzido com vida ao hospital. Pois bem, o tal “garrote” tão simples com certeza salvou mais uma vida !...No entanto, é preciso saber !
Recentemente tive a oportunidade de viajar para o exterior e tive de me valer dos ensinamentos básicos de Inglês e Espanhol para pedir informações ou se alimentar.Mas...tem que saber !
Teria inúmeros exemplos práticos para contar, mas prefiro não ser enfadonho e aproveitar para agradecer os ensinamentos obstétricos que recebi do Professor Rogério Rocco sobre a teoria e prática do parto natural. Mesmo não seja um parto “complicado” deve-se ter muito cuidado e observar a anatomia da região. O reto e a bexiga estão muito próximos do útero e da vagina, onde realizamos incisões e suturas posteriores. Foram esses ensinamentos que me deram a certeza de que o saber não ocupa lugar no cérebro, uma vez que me dediquei a Pediatria desde o quinto ano de Medicina e, seria o caso de não dar importância a prática de obstetrícia, pois não iria usá-la na minha futura especialidade. Esses conhecimentos me foram de grande valia em Amambaí, Mato Grosso do Sul. Naquela distante cidade era médico militar,servindo no 17º Regimento de Cavalaria. Atendia os casos de pediatria e clínica geral. Fazia também muitos partos. Lembro de um caso que esses ensinamentos de que estamos tratando, realmente me possibilitaram salvar a vida de uma gestante e do seu bebê. Foi um parto muito difícil. Tenho absoluta convicção de que um médico que não fosse obstetra ou que não tivesse prática nessa especialidade, não teria condições de conduzir aquele caso.A gestante era esposa de um capitão, meu amigo que, posteriormente se tornou meu compadre. No dia marcado para o nascimento da criança, fui a serviço para Campo Grande. Orientei ao colega R/2 como proceder. Ao retornar,soube que não havia feito o parto. Ele me passou o caso alegando que a criança estava em sofrimento e alguma coisa estava errada. Tomei um banho e rapidamente conduzi a gestante à Enfermaria do Regimento. Era um fim de semana e obtive ajuda do melhor sargento de Saúde que conheci. Ele agiu com muita calma e inteligência, atendendo prontamente a tudo que lhe pedia. Preparou com antecedência toda a medicação intravenosa de emergência. Um soro foi colocado na paciente. Após a tricotomia e assepsia local, dei início a indução medicamentosa do parto, após ter examinado atentamente a gestante e o feto. Voltaram as contrações.A paciente desmaia. Pressão baixa ! Abortamos esse quadro. O parto é demorado, Após incisão a criança nasce com dificuldades respiratória. O cordão umbilical foi retirado do seu pescoço. Aspiramos o recém nascido . Ele chora baixinho, depois alto ! Pronto ! Agora vamos à mãe. A placenta não saiu espontaneamente tive que desgrudá-la do útero por manobra feita com a mão direita. Após a sua retirada, preparava-me para realizar as suturas quando, de repente, um jato de sangue me atinge. Sujou todo o meu jaleco! Hemorragia uterina. Fizemos medicação para estimular a contração daquele potente músculo. Ela cede. Sutura feita. Medicação prescrita e orientação familiar, mais uma olhadela no recém nascido Alexandre e retorno para meus aposentos. Exausto, caio na cama e durmo profundamente.
Hoje agradeço a Deus toda a vez que lembro desse episódio. Foi o saber de coisas que a princípio parecem que não têm interesse imediato que fizeram a diferença. O conhecimento anterior me possibilitou salvar a vida daquela mãe e do seu bebê, além de me dar orgulho, prestigio e oportunidade de continuar com a minha carreira !
Não existe maior pagamento que um Médico possa receber do que um rostinho sujo de chocolate, as lágrimas de uma mãe agradecida ou o conforto e a confiança de um pai ! Saber disso, também é importante !
