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Discursos-->Enterrado vivo -- 13/12/2001 - 16:36 (Alberto D. P. do Carmo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Primeiro foi a ponta do dedo, só a falangeta. Sacudiu, e lá estava ela, livre. E aquela coceira no nariz inatingível. Não podia mexer os pés, estanques. Parecia ouvir os lamentos das carpideiras, como gaivotas a sobrevoar isolada ilha.

A respiração era difícil, tênue. O peito arfava em não mais que milímetros, o frio do subsolo congelava-lhe as vértebras. Não sentia os cabelos, as mãos nem percebia. Lembrou-se do enterro da avó, menino ainda - o caixão descendo ao limbo e pétalas de flores supondo-se borboletas coloridas a regar-lhe as núpcias com o eterno. O tocar surdo no fundo da tumba, as cordas sendo puxadas pelos coveiros. Depois a terra apagando aquela lembrança de vida. Sobrou o lamento, a saudade.

Sentia-se um morto-vivo, um pedaço de carne imóvel dotada de olhos vivos. Os vermes! - pensou desesperado. Deveria haver vermes ali embaixo. Fitou imóvel o som subterrâneo. Nada ouviu. Acalmou-se e se concentrou no cimento que lhe caía acima do peito. Não conseguia se mover, como raiz de planta recém-fecundada - em terra socada, tolhendo-lhe os músculos.

Ouvia risadas macabras ao longe: - Traidores! Queriam vê-lo a sete palmos! O sofrimento parece embebedar os corações, como ungüento que escorre invisível pela boca dos mais inocentes.

Recordou as últimas horas. Corria na praia, tropeçando em farelos, e mergulhava na orla mansa. A barriga avermelhada pelo raspar da areia, os olhos salgados sem nada ver. Ouvia apenas. As ondas crescendo a dez metros do horizonte, a espuma desvanecendo-se em sons antiácidos. Sonhava com o retorno. Sonho em vão, naquele destino que começou numa brincadeira.

Arrependeu-se de aceitar o desafio, quis arrastar os ponteiros do relógio até o antes. Mas de que adiantaria? O tempo correu rápido; estava ali, em calada inércia, como a esperar raízes que lhe sugassem a alma e brotassem alguma coisa à superfície.

Mas lhe deixaram os olhos livres - suprema tortura. Estaria louco? Seria tudo fruto da imaginação? Não, a realidade das pernas imobilizadas acalmou-lhe as dúvidas. Era um ser mumificado, um pedaço de terreno adubado com seu corpo. Pouco havia a fazer, a não ser aguardar o desfecho breve.

Desistiria? Esperaria o adormecer dos ossos até que fosse vencido? Nunca! Lutaria com cada nervo que encontrasse espaço naquele buraco confinado onde, por obra do acaso, aceitou deitar.

O ar passava-lhe raro e quente. Pouco conseguia sorver - pensava em jorros de pânico. A sensação do inerte apavorava-lhe o fôlego já ébrio de sufocação. A realidade afastava-se a passos infantis, deixando um labirinto de pegadas que o vento logo vinha cobrir.

Encheu-se de forças e resolveu lutar contra aquele martírio que o enterrava vagarosamente. Concentrou fortes estímulos elétricos, que lhe arrancaram gotas manchadas, a descer tortuosas pelo esforço cravado na testa. Por fim, deixou-se cair no refúgio da imobilidade permanente, vencido pela exaustão.

Tentou ainda uma última vez, numa sobrevida. Cerrou os olhos a clamar pela inconsciência. Riu-se ao se ver saturado, sobrepondo ao real um sobrevôo insano, sobrenatural. Começou pelos joelhos. Acordou o pensamento, dirigiu torvelinhos de energia, crispou nervos. Sentiu o peso deslocar-se. Insistiu mais, contraiu as coxas apertadas naquele cubículo de pó. Viu uma esperança de se livrar daquela querela infeliz.

Com os pés, um a cada vez, forçou o espaço pouco que havia. Gaguejou todas as forças naquele espasmo final. Fugiu da prisão como rolha espumante que escapa da garrafa. Reviu, entre poeiras, os dedos arejados a dançar; ao ar livre.

Vasculhou todos os arremessos nucleares que encontrou na cabeça. Encheu os pulmões de ar poeirento, e se ergueu por completo, como redivivo faraó, que volta ao sol de seus deuses.

No cemitério, o uivo abafado de algum lobo perdido nas trevas, num grito terrível, que fazia bater as persianas das casas próximas, forjava no tempo mais um mistério de vida ou morte. Na praia, crianças riam com suas pás e baldinhos, enquanto um homem avançava vagabundo até a arrebentação, retirando uma borra de areia que insistia em roçar-lhe por dentro do calção.



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