Edbar Jadeu caminhava tranqüilo naquela tarde de sábado. Seu destino seria o escritório onde colocaria alguns papéis em ordem. Num dado momento, na direção contrária a sua, com um cachorrinho no colo, uma garotinha de mais ou menos doze anos vinha absorta.
Querendo brincar Edbar disse a ela: "Que cãozinho bonito! Me dá de presente?" A menina não demonstrou reação visível e continuou em seu trajeto. Considerações sobre a maldade humana ocuparam a consciência do nosso herói.
Lembrou-se de uma senhora já maturada pelos anos. Ela tinha um hábito aprendido desde criancinha: quando sentia-se mal por um erro ou engano, batia no cachorro para que a sorte não a abandonasse.
Era o princípio do bode expiatório que carregava todas as culpas, faltas e falhas dos insensatos.
Defronte ao escritório e retirando as chaves do bolso, reapresentou-se à sua consciência uma cena bastante antiga: conheceu um sujeito tratado pelos inimigos como se fosse um cão. Os adversos fustigavam os animais na sua frente, olhando-o nos olhos.
Penetrou a chave naquela fenda fria. Entrou na ante-sala sentindo no ar um cheiro esquisito de incenso.
O medo apossou-se de seu ser. A figura de uma bichona branca, alta e bunduda, vestida de branco da cabeça aos pés, invadiu-lhe a mente. Ela tinha um sorriso maroto nos lábios. Quando apertava a mão dos que se dirigiam a ela, empurrava o par em direção ao local onde desejava que estivesse.
Um perfume doce de mulher adentrou-lhe as narinas. As minhocas cabeçudas que habitavam algum lugar do seu ser manifestaram-se iniciando um movimento de ereção.
Na casa vizinha o som de um piano vibrava ameno.
Que melodia seria aquela? Edbar sentiu sede. Muita sede.
Procurou mas não encontrou água no pote ou na geladeira. Com um copo limpo tomou o líquido que vinha da torneira.
Em alguns minutos seus pensamentos ficaram incontroláveis. Seus batimentos cardíacos e a respiração denotavam anormalidade rítmica. E aquela música? E aquele piano? Enlouquecida... Endoidecida... Sim... Que situação desarrazoada.
Arrebatado caminhou até a farmácia do centro. A união entre a maldade e o obscurantismo açoitavam-no. Comprou pasta dental e escova. Já era noite. Fazia frio.
Entrou novamente no escritório. A música suave penetrava nos seus ouvidos. Com as mãos em concha bebeu mais água. Escovou os dentes e a língua.
Sua alma estava atônita, atormentada e quase fenecida. Durante a madrugada fria caminhou pela estrada escura. Os veículos passavam rente, iluminando-o com o fulgaz dos clarões. Nos oito dias seguintes viveu igual aos indigentes, estropiado pelos canaviais. Seus inimigos regozijavam.
Mas, do alto daquela torre, os sinos não dobraram.
Não seria daquela vez que a cidade emputecida mataria seu filho.