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Artigos-->Arte e Poesia (*) -- 13/04/2009 - 13:51 (Benedito Pereira da Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Arte e Poesia (*)





A ARTE COMO POESIA ESSENCIAL EM QUE UM POVO DIZ O SER

ISABEL ROSETE





"Pois desde que a Poesia se libertou dos lábios

Mortais, exalando a paz, e o nosso canto,

Benfazejo na dor e na fortuna, alegrou

O coração dos homens, também nós,

Cantores do povo, gostamos de estar entre os viventes

Onde muitos se reúnem, alegres amigos de cada um,

Abertos a cada um; assim também

O nosso avô, o Deus do Sol, (…)"



(Hölderlin)



NOTA INTRODUTÓRIA



Heidegger é absolutamente peremptório quando afirma que a Arte é, por essência, Poesia, onde a verdade acontece como espaço de combate ocultante/des-velante. Na sua essência repousam o artista e a obra de arte, pela qual a verdade é posta em obra de um modo que nos transporta para além do habitual, quer dizer, para além do dado na trivialidade da mostração quotidiana comum dos homens que não nomeiam, como o Poeta, a originariedade do ser de todos os entes que são.





É por isso que a «verdade, observa Heidegger, como clareira e ocultação do ente, acontece na medida em que se poetiza. Toda a arte, enquanto deixar-se acontecer da adveniência da verdade do ente como tal, é na sua essência Poesia. A essência da arte, na qual repousam simultaneamente a obra de arte e o artista, é o pôr-em-obra-da-verdade. A partir da essência poetante da arte acontece que, no meio do ente, ele erige um espaço aberto, em cuja abertura tudo se mostra de um outro modo que não o habitual”.“(…) a poesia é aqui pensada num sentido tão vasto e, ao mesmo tempo, numa união essencial tão íntima com a linguagem e a palavra que tem de permanecer em aberto se a arte, e mais propriamente em todos os seus modos, desde a arquitectura à poesia, esgota a essência da poesia».[1]









I. A INSTAURAÇÃO DA VERDADE COMO COMEÇO E A ARTE COMO POESIA



“Die hier waltende Fragwürdigkeit sammelt sich



dann an den eigentlichen Ort der Erörterung,



dorthin, wo das Wesen der Sprache und der



Dichtung gestreift werden, alles dies wiederum



nur im Hinblick auf die Zusammengehörigkeit



von Sein und Sage”[2]



M. Heidegger



A Arte, na medida em que deixa advir com a máxima fidelidade a verdade do ente é, por excelência, Dichtung, Poema.



Por Dichtung não se entende, em sentido próprio, a poesia enquanto género literário, pois o poema jamais é tomado como o resultado de uma “vagabundagem do espírito” inventada a seu bel-prazer, ou como um deixar fluir da imaginação até terminar na irracionalidade: Dichtung, enquanto verdadeiro poema, é um projecto de iluminação na abertura, na Lichtung, na clareira, do Ser. A essência do Poema só poderá ser, então, buscada com um alcance suficientemente claro e evidente, a partir do momento em que a desviarmos dessa qualidade da alma[3].



A Poesia é, radicalmente falando, a obra suprema da Linguagem. A reflexão heideggeriana sobre a linguagem não é mais uma mera perspectivação da relação possivelmente patenteada entre a linguagem e a realidade, sobre a propriedade ou impropriedade da mesma para descrever as coisas, nem tão-só uma reflexão sobre um “aspecto” do estar-aí (Da-sein) do homem. Ao invés, essa reflexão é a forma mais eminente da experiência e da expressão da própria realidade, já que é na linguagem que se dá a abertura do Mundo, que se dá o ser das coisas e, por isso, o verdadeiro modo de perscrutação daquilo que se afirma como existente só pode ser atingido através do auscultar do significado primordial das palavras.



As coisas não são fundamentalmente coisas presentes no mundo-exterior, mas na palavra que as nomeia originariamente e as torna acessíveis, até mesmo na presença espacio-temporal. As coisas são, no sentido do recolectante “fazer-morar“, só na Linguagem que, como veremos adiante, é essencialmente Poesia. Eis como deveremos entender a afirmação segundo a qual é a palavra que “torna coisa” (be-dinget), a coisa (Ding).



Se quisermos compreender este modo de ser da coisa na palavra devemos pensar, antes de mais, no gosto heideggeriano pela etimologia que é justamente uma maneira de remontar, através das vicissitudes e das conexões das palavras, às dimensões autênticas, ontológicas, da coisa em si mesma nomeada.



A figura etimológica, a escavação do significado a partir das raízes verbais e da história das palavras é, na sua mais plena acepção, uma “emergência“, um “des-ocultamento“, um movimento para a luz. Qualquer investigação séria sobre o ente deve adoptar, como ponto de vista, as considerações linguísticas, em virtude da linguagem se apresentar como a chave que abre a porta do des-velamento do Ser, do Homem e do Mundo.



A palavra é um caminho (Weg), ou melhor, o caminho privilegiado que nos permite pensar, através do depoimento existencial que transmite, o Ser do ente, quer dizer, o Ser daquilo que realmente é, amiúde obnubilado no nosso discurso quotidiano, no seio do qual as palavras perderam o seu referente primordial, remetendo umas para as outras e não mais para o Ser. Deparamo-nos, todos os dias, com Discursos vazios de conteúdo, pois o modo de significação do que é, emaranha-se na sequência mais ou menos lógica, no encadeamento de um conjunto de fonemas mais ou menos articulados, mas que perderam de vista a sua veraz significação ontológica.



Torna-se claro que as coisas só são, realmente, enquanto se dão na proximidade do próprio Ser, tomado como aquilo que funda e abre toda a abertura histórica, embora ele-mesmo não se reduza a uma tal abertura.



Perspectivando à luz da tese heideggeriana as vivências quotidianas do “Homo Superfulus“, que habita cada vez mais cada um de nós nestas duas últimas décadas, não podemos deixar de afirmar, peremptoriamente, que a palavra e a linguagem jamais são invólucros onde as coisas podem ser empacotadas para o comércio daqueles que as utilizam; não se podem consumir do mesmo modo que os triviais produtos que esta sociedade consumista nos apresenta e nos “pressiona” a angariar, sem que tenhamos a mais lúcida consciência disso, nos tão frequentados hipermercados, onde as palavras, e os livros que as encerram, são comercializadas de modo similar e, quiçá, com o mesmo estatuto do quilo de arroz.



O pensamento ocidental esqueceu, de facto, a máxima fundamental: é na linguagem e, portanto, nas palavras, que as coisas nascem e verdadeiramente são. Afirmar a existência, dizer que uma coisa é, significa falar do ser das coisas, como somente a Linguagem originária pode fazê-lo. Impõe-se-nos, por isso, como estritamente necessária, a refutação da tese que defende a existência de uma arbitrariedade entre o que se diz e o que é, quer dizer, entre o Dizer e o Ser, porque em cada sentença que proferimos o Ser é efectivamente nomeado.



Devemos recusar, sem reservas, a tendência de certo modo nominalista da sociedade contemporânea, particularmente registada depois do grande advento da Publicidade que tem feito crer ao comum dos mortais - que vagueiam com as suas mentes errantes por este universo de quase arbitrariedade semântica - que as coisas ou objectos da experiência não têm realidade intrínseca fora da linguagem que as descreve e as faz falar.



A linguagem opera o des-velamento das significações do Mundo, não havendo, portanto, dois planos: o do percebido e o do conhecido; o do falado e o do expresso. A palavra não introduz um sentido num conteúdo. Pelo contrário, é o conteúdo que se revela significante na linguagem. É forçoso, propõe-nos o filósofo da Floresta Negra, que destruamos a perspectiva metafísica: a linguagem não se torna significante a partir dos objectos compreendidos pelo pensamento e significados, em seguida, pelas palavras; são, antes, os objectos que adquirem a sua plena capacidade de significação a partir da linguagem falada.



O sentido do Discurso, que Heidegger define em Sein und Zeit como sendo «a articulação significativa da compreensão do ser-no-mundo no sentimento de situação»[4], nunca é construído, mas sempre descoberto. O mundo mostra-se-nos investido de significações utilitárias e poéticas. Daí que a linguagem seja tomada como uma leitura hermenêutica da experiência, expressão que assume uma vasta e originária significação ontológica, ao indicar a manifestação do carácter linguístico do Acontecimento do Ser.



O homem compreende sempre o Mundo no interior de um projecto interpretativo, cuja linguagem é a sua única justificação. Muito embora as coisas existam fora do gesto falado, o Mundo, esse horizonte inteligível que abre acesso aos entes, só existe, em sentido autêntico, na e pela interpretação efectuada pela e através da linguagem. Apenas onde há linguagem há Mundo, quer dizer, uma esfera em permanente transição de decisão e de obra, de acção e de responsabilidade, mas também de arbítrio e de con-fusão.



A análise existencial não é, definitivamente, senão um estudo do homem no universo do Discurso. O Da-sein determina o modo como o próprio homem se interpreta como ente que fala, e falar equivale a fazer surgir o Ser do real: a linguagem é um modo do Ser, uma estrutura da Ek-sistência. Porém, não é um existencial entre outros, mas o existencial fundamental no qual todos os outros ganham corpo. A linguagem não é somente uma possibilidade do Da-sein, mas uma determinação essencial do ser-homem, não obstante constituir, a um tempo, a sua grandeza e a sua miséria.



O discurso do Mundo é, inextrincavelmente, uma palavra do Ser. E a Ek-sistência é o discurso que reflecte esta linguagem fundamental: «a linguagem é a casa do ser», na qual o homem habita e, deste modo, ek-siste, pertencendo `a verdade do Ser que ele próprio vigia. Em Unterwegs zur Sprache, Heidegger afasta toda a falsa interpretação desta metáfora, que aliás é muito mais do que uma simples metáfora: uma casa recolhe passivamente aqueles que abriga, enquanto a linguagem tem o poder efectivo de trazer à luz, de des-velar a essência do Ser e o ser do Homem.



A importância crucial conferida pelo filósofo à linguagem na citada passagem de Briefe Über den Humanismus - e que urge recuperar face a este premente esquecimento da autenticidade da linguagem que conduz, em cada Discurso, a que as palavras remetam meramente para o viso de si próprias e não mais para o Ser, tese que não podemos deixar de reiterar - resulta justamente da firme convicção segundo a qual a linguagem é própria do homem, não apenas porque para além de todas as suas outras faculdades o homem também tem a genial capacidade de falar, de comunicar inteligivelmente através das palavras, mas sobretudo porque apenas por intermédio desta irredutível via, ele tem acesso privilegiado ao Ser.







II. LINGUAGEM E ACONTECIMENTO DO SER



«Por isso (…) foi dado ao homem a língua, o mais perigoso dos bens (…) para que ele dê testemunho do que ele é (…)».



Hölderlin



Segundo o mesmo princípio, a função da linguagem é deixar que o Ser seja. Jamais poderemos obnubilar que não é mais o homem que determina o Ser, mas o Ser que, através da linguagem, se revela ao homem e o determina. Face à significação atribuída a este modo específico de re-velação, o homem surge-nos apenas como o portador da linguagem - em virtude de a linguagem não radicar na essência do homem, mas manifestar uma essência histórico-ontológica fundamental, sendo segundo esta essência que ela é dita como a “Casa do Ser” - e como tal tem a função, sendo ele o único, de mostrar o Ser por seu intermédio.



Revelando esse extraordinário poder de manifestar a originariedade e primacialidade da Existência, de fazer advir o Ser à luz, de o dês-ocultar, de o colocar na não-latência e com ele a essência do homem, a linguagem afigura-se como a única morada onde o Ser pode ser realmente acolhido e posteriormente mostrado na sua nudez primordial.



A linguagem do Ser suporta a nossa linguagem de todos os dias: o Ser é o não-dito e o não-falado de que se alimenta a nossa palavra. O encontro com o para além das palavras é possível porque o Ser, essa Alma da linguagem, é o lugar da nossa permanência. A linguagem que nos faz comunicar com o Mundo e com os outros homens exprime sempre algo de diferente do que se diz, ou seja, exprime as relações ocultas que as palavras mantém com o Ser, quer dizer, com aquilo que em si mesmo é e não necessita de nada para que seja.



A linguagem é um acontecimento (Ereignis) que, ao manifestar-se, produz a indicação e a língua. A palavra é a marca do acontecimento interior à linguagem e a escrita o depósito da Tradição do Ser. Por isso, ao interrogar-se o Ser, a Linguagem arranca constantemente a palavra ao peso significativo da tradição e a escrita aos limites do signo para a fazer regressar à presença originária que permitiu a sua manifestação. Neste sentido, a Linguagem reside na diferença interior à palavra do Ser que se inscreve entre o acontecimento o qual, ao mesmo tempo, desvela e oculta a letra ou a palavra que morre no limiar da coisa.



A ideia de uma linguagem transparente ao espírito é seguramente uma ilusão de representação. Há sempre para além uma palavra essencial que o coloca na presença, mas que não pode ser captada como palavra porque o acontecimento do Ser é a sua marca concomitantemente oculta e des-velada.



Se em Sein und Zeit a Linguagem já ocupava uma posição peculiar, na medida em que, como signo, revelava a própria estrutura ontológica da mundaneidade, em obras posteriores, Der Ursprung des Kunstwerkes e Hölderlin und das Wesen der Dichtung, mostra-se ao filósofo, nesse caminho de des-contrução da concepção vulgar de Linguagem (tão-só como um meio de comunicação), como o modo próprio do abrir-se na abertura do Ser, enquanto é pensada como Poesia, a Arte originária da palavra: «Segundo a concepção corrente, a linguagem surge como uma forma de comunicação. Serve para a conversação e para a concertação em geral, para o entendimento. A linguagem não é apenas – e não é em primeiro lugar – uma expressão oral e escrita do que importa comunicar. Não transporta apenas em palavras e frases o patente e o latente visado como tal, mas a linguagem é o que primeiro trás ao aberto o ente enquanto ente. Onde nenhuma linguagem advém, como no ser da pedra, da planta e do animal, também aí não há abertura alguma do ente e, consequentemente, também nenhuma abertura de não ente e do vazio.»[5]



É neste sentido que a Linguagem é, para Heidegger, “Poesia em sentido essencial”: «porque a linguagem é o acontecimento em que, para o homem, o ente como ente se abre, a poesia, a Poesia em sentido estrito, é a poesia mais original, no sentido essencial. A linguagem não é, por isso, Poesia, por ser a poesia primordial (Urpoesie), mas a Poesia acontece na linguagem, porque esta guarda a essência original da Poesia.» [6]









III. A LINGUAGEM COMO POESIA ESSENCIAL







«Gerado no teu seio



O divino menino e em volta dele



O filho da amiga, chamado João



Pelo pai mudo, o audaz



A quem foi dado



O poder da língua,



Para interpretar (…)»



Hölderlin



Posto que a abertura do Mundo se dá sobretudo na linguagem, é nela que se pode perscrutar a autêntica inovação ontológica, uma vez que nos é dito que a «linguagem é poesia no sentido essencial», [7] ou como Heidegger refere, em Einführung in die Metaphysik [8], «a linguagem é poesia originária (Ur-dichtung) em que um povo diz o Ser» e, inversamente, a grande poesia, pela qual um povo entra na sua História, inicia a configuração da linguagem.



Dizer que a linguagem é Poesia, apenas no sentido essencial, significa afirmar que o falar autêntico é criação, abertura, inovação ontológica, uma vez que nem todo o falar é criação, já que comummente se torna um mero instrumento de comunicação que se limita a articular e a desenvolver, a partir do seu próprio interior, a abertura já aberta.



Na linguagem essencial instituem-se os mundos históricos em que o estar-aí e o ente se relacionam entre si nos vários modos de presença humana no Mundo, o que faz da linguagem, tomada na sua dimensão poética, «o fundo que rege a História do homem», porque, afinal, «o que perdura fundam-no os poetas». Fundar o que permanece ou fundar o permanecente significa desvelar o Ser para que o ente apareça, só pelos poetas alcançado por serem os únicos capazes de nomear os Deuses e todas as coisas, naquilo que em si mesmas são.



O nomear do poeta não consiste, porém, em atribuir um nome a uma coisa anteriormente conhecida mas, ao invés, falando, o poeta celebra a palavra essencial e celebrando-a, o ente passa a ser nomeado no que é; através desta nomeação, torna-se conhecido enquanto é, pois a poesia é, na sua essência, a “fundação do Ser pela palavra” e esta fundação é doação livre. Quando os Deuses são nomeados originariamente pelo poeta e a essência das coisas se torna palavra, a própria existência humana é inserida num contexto firme e é colocada sobre o terreno desta fundação.



A Poesia é, radicalmente falando, não um fenómeno de Cultura ou a expressão de uma “alma natural“, mas a obra suprema da linguagem, enquanto dada como projecto de iluminação na abertura, na clareira (Lichtung) do Ser. O dizer do poeta é este mesmo projecto de iluminação onde é dito como o ente chega à abertura. Este dizer que em si mesmo é poema, nomeia o Mundo e a Terra assim como o espaço de jogo do seu combate. Precisamente por isso, cada língua é o surgimento do dizer no qual, para um povo, se abre historicamente o seu Mundo e onde é salvaguardada a veracidade da Terra no seu oferecimento original.



A poesia é - onde a língua manifesta a sua essência, que é o dizer do Ser de todos os entes - essencialmente pensamento. Pensamento não significa aqui qewria, determinação do conhecer como atitude teórica, ou tecnh, tomada no sentido da reflexão ao serviço do fazer e do produzir, ou praxiz, mas aquilo que pertence (gehören) e escuta (horen) o Ser. «Numa palavra, o pensamento é o pensamento do Ser» [9].



A Poesia é uma forma de pensamento e este, por seu turno, é por essência, poetizar (dichten).É, pois difícil distinguir neste momento a linguagem autêntica, o pensamento e a Dichtung. Em última análise, e não obstante as diferenças conceptuais que possam evidenciar, estes três elementos acabam por se tornar homólogos, homologia que é estabelecida por uma comunidade essencial: das Sein, o Ser.











IV. A INSTAURAÇÃO POÉTICA DO SER E DA VERDADE PELA POESIA







«Muito aprendeu o homem. Dos Celestiais muito nomeou,



Desde que somos um Diálogo



E podemos ouvir uns dos outros»



Hölderlin



Dispondo desse poderoso “instrumento” de des-velamento - a Linguagem - a Poesia afigura-se como sendo uma forma de alhqeia, tal como a arte genericamente considerada. Por isso, em vez de banirmos os Poetas da cidade, como havia pretendido Platão, urge requerê-los por serem os únicos que privilegiadamente dispõem da genial capacidade de instaurar uma ordem durável, ao nomearem as coisas que permanecem inacessíveis ao vulgo.



Dizendo o que é o ente na radicalidade do seu Ser, a Poesia instaura-o; e tal instauração possui o carácter de ser um dom fundante e inicial, rebatendo toda a familiaridade da aparência. Fundando poeticamente tudo o que é, o homem funda-se a si mesmo. Compreendemos, assim, porque é que o Das-ein é poético (dichtrich) e em que sentido é dito que «de um modo poético habita o homem sobre esta Terra». Habitar poeticamente significa: estar na presença dos Deuses e ser tocado pela proximidade das coisa.



O fundamento do “ser-aí” (Da-sein) humano é, pois, poético, como o próprio acontecer da linguagem primordial que é poesia como fundação do Ser. Se compreendermos esta essência da Poesia dada como linguagem primordial de um povo historicamente concebido pela qual diz o seu ser, percebemos, ao mesmo tempo, que a essencialidade da linguagem tem que ser compreendida a partir da essência da poesia, tal como a essência da poesia é compreendida a partir da essência da linguagem.



Então teremos de afirmar que a linguagem não é apenas criação e inovação ontológica, como já se havia referido, mas, sobretudo, a sede, o lugar do acontecimento do Ser como o abrir-se das aberturas históricas em que o Da-sein está lançado. É a linguagem que “rege o nosso estar-aí” e, por esta razão, dependemos dela de um modo umbilicalmente profundo: «a linguagem não é mais um instrumento disponível para o homem, mas aquele acontecimento que dispõe da maior possibilidade de ser homem». Enquanto tal apropria-se de nós, na medida em que com as suas estruturas, delimita, desde o início, o campo da nossa possível experiência do Mundo: só na linguagem as coisas nos podem aparecer e só no modo como ela as faz aparecer; é a palavra que proporciona o Ser da coisa e todo o falar concreto, autêntico, pressupõe que a linguagem já tenha aberto o Mundo e que também, a nós, nos tenha colocado nele.



Toda a problematização da linguagem e, em rigor, todo o seu uso ôntico, requerer que ela já nos tenha falado. A linguagem é, acima de tudo e originariamente, mais do que uma faculdade de que dispomos; é um “dirigir-se a nós”, sem o qual não poderíamos falar. Se isto significa, antes de mais, que todo o falar autêntico é fundamentalmente uma escrita, não quer dizer, no entanto, que o homem seja um ouvinte passivo, uma vez que a linguagem não é, acidentalmente, um “dirigir-se a nós“. Pelo contrário, é nesse “dirigir-se a nós“, que somos os seus ouvintes e respondedores privilegiados, que consiste a sua própria essência.



A linguagem, afirma Heidegger em Sein und Zeit [10], «tem necessidade da fala humana, embora não seja um produto da nossa actividade linguística». Ela é o anúncio, o apelo, a mensagem e nós, homens, somos usados por ela como ”mensageiros da voz do Ser“. A linguagem não se dá senão no falar do Da-sein e, todavia, é verdade que tal falar encontra já delimitadas as suas possibilidades e os seus contornos na própria linguagem, ainda que não como uma estrutura rígida que o obrigue, mas como um apelo a que responde. É neste sentido que devemos entender porque é que Heidegger retoma do ”poeta do poeta“, o romântico Hölderlin, a caracterização do homem como Diálogo, porque é que o ser do homem se funda na linguagem e porque é que só acontece verdadeiramente no Diálogo.



Por linguagem não se entende, portanto, um mero instrumento ou um meio de comunicação, mas a expressão representativa da veracidade do que é comunicado, sempre numa relação com a alteridade: «A linguagem é a casa do Ser» (Die Sprache ist das Hause des Seins), sendo por excelência os pensadores (die Denkenden) e os Poetas (das Dichtenden) os guardas (der Wacheter) desta habitação (dieser Behausung) [11], embora os poetas se apresentem numa relação de primazia sobre os pensadores, uma vez que a «poesia penetra toda a arte, todo o acto pelo qual o ser essencial (das Wesende) é desvelado no Belo» [12].



Significará esta afirmação que a Arquitectura (Bauen) e as Artes Plásticas (Bilden) devem ser necessariamente fundadas sobre a Dichtung? Serão todas as Artes meras variantes da arte da palavra? Temos de nos desviar deste impasse bizarro, na medida em que a Poesia é apenas um modo entre outros do projecto de iluminação do Ser. Todavia, sendo a sua essência a Linguagem, a Arquitectura e as Artes Plásticas só são possíveis, só advêm verdadeiramente em virtude da abertura operada pelo dizer e pelo nomear. Só por meio da linguagem podem ser efectivamente guiadas. Todas as artes são cada uma a seu modo Dichtung, no interior da clareira do Ser advindo em obra.



A Poesia é pensada precisamente a partir da poihsiz, isto é, como um dos modos de manifestação do Ser. A essência da Poesia apreendida a partir da experiência grega do pensar brota do Ser como do seu fundamento original. A questão da essência do poético, bem como a da Arte, não pode ser pensada senão a partir da questão do Ser. Quando o Ser não é mais compreendido no horizonte do tempo, a historicidade poética manifesta-se como o domínio próprio onde a verdade do Ser é colocada em obra. Longe de exprimir simplesmente uma cultura, a poesia torna possível toda a Cultura. Por conseguinte, se a Arte é na sua essência Dichtung, e a essência da Dichtung é precisamente a instauração da verdade



Isabel Rosete

Julho de 2006





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[1] Heidegger, UKW, in Holzwege, pp. 59 e 62.





[2] .”O que aqui se impõe como digno de questão reúne-se então no genuíno lugar da explicação, onde se toca a essência da linguagem e da Poesia, tudo isto, uma vez mais, tendo apenas em vista a pertença recíproca do ser e da palavra”, Martin Heidegger, “Zusätze”, in Holzwege, p. 74





[3] Martin Heidegger, op. cit., p. 82.





[4] Martin Heidegger, Sein und Zeit, p.201.





[5] Heidegger, UKw, in Holzwege, p. 59.





[6] Op. cit., pp. 59-60.





[7] Martin Heidegger, Hölderlin und das Wesen der Dichtung, p. 40.





[8] Martin Heidegger, Einführung in die Metaphysik, p. 37.





[9] Martin Heidegger, op. cit., p. 78.





[10] Martin Heidegger, Sein und Zeit, p. 13.





[11] Martin Heidegger, Lettre sur L’Humanisme, p. 45.



[12] Martin Heidegger, Essais et Conférences, p. 47.



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Categorias: Filosofia Contemporânea, Heidegger, Trabalhos Acadêmicos Ensaios e Artigos.

Tags:Arte, Estética, Heidegger, Poesia

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2 Responses to “Heidegger: A Arte como poesia essencial em que um povo diz o Ser”

2Ana Beatriz Says:

março 18th, 2009 at 12:19 am

Ameiiiiiii



1Almandrade Says:

março 9th, 2008 at 2:12 pm

O RETORNO E A DÚVIDA DA POESIA



A poesia é um conhecimento à parte da razão tecnocrata que rege a sociedade contemporânea, hoje em dia, o homem se defronta com outras oportunidades de linguagens, outros conhecimentos, que deixou de lado o hábito da leitura, principalmente a leitura de poesias. Diante da informática, da música popular, do discurso político, não há lugar para a poesia. Mas de repente um surto de poesia tomou conta da cidade, saraus, recitais, debates, publicações, vão se espalhando e ocupando pequenos espaços nos centros urbanos, bares, cafés, bibliotecas. Páginas na internet. Parece que a poesia voltou a fazer parte da cidade. Mais uma ilustração da crise da linguagem, do pensar e da cidadania? Afinal de contas, poesia passou a ser tudo que alguém escreve movido por uma “inspiração”, uma revolta, uma paixão, um discurso livre e aleatório, como: a frase da mesa do bar, o bilhete da namorada, o discurso de protesto, etc. O poeta que já foi expulso da cidade, volta ao cenário urbano na condição de sintoma da cidade grande.



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A POESIA E A CIDADE



“Os poetas nos ajudarão a descobrir em nós uma alegria tão expressiva ao contemplar as coisas que às vezes viveremos, diante de um objeto próximo, o engrandecimento de nosso espaço íntimo.”



(Bachelard)



Desde quando a cidade é objeto de trabalho de especialista, ela passou a ser um corpo fragmentado e perdeu sua geografia poética. Primeiro foram os filósofos que expulsaram os poetas de sua república, depois foram os técnicos que destronaram a filosofia. Custou caro ao filósofo aceitar que o saber foi uma invenção do poeta, que a eternidade da Grécia se deve primeiramente a um Homero e depois a um Platão. Nessa mudança de século, a filosofia acabou ressuscitando um Sócrates arrependido, solicitando do poeta seu retorno à polis . Pudera, em épocas de crise sempre se apela para o poeta, ele que nada sabe, foi adivinho do passado e é livre para falar de suas emoções. Mas ele nada pode resolver com relação aos equívocos dos especialistas do urbano, a não ser restaurar a poesia perdida.



A cidade de políticos e de técnicos tem problemas mais urgentes, para se preocupar com a poesia. Acreditava-se que a tecnologia era uma solução universal, mas se mantêm longe de dar respostas às demandas de habitação, segurança, transporte e educação. Não se canta mais a cidade, fala-se para lamentar seus problemas. A cidade precisa da poética e do pensamento. Quem se ocupa de conceitos sabe, sem negar a importância da tecnologia, que a cidade atualmente precisa mais do exercício da cidadania e das idéias, do que intervenções técnicas sem uma compreensão mais ampla dos seus problemas. As cidades modernas se ressentem da carência de uma nova idéia de planejamento urbano que não a veja exclusivamente como o cenário do mercado de trabalho. Pois a imagem urbana não se restringe àquilo que a percepção capta, é muito mais o que a imaginação inventa com a liberdade poética. As musas sabem que o poeta não vai salvar a cidade, mas ele é quem lida com a fantasia e o devaneio, indispensáveis para o sonho de uma outra expectativa de vida urbana.



A POESIA E A LÓGICA DA LINGUAGEM



“A poesia é uma arte da linguagem; certas combinações de palavras podem produzir uma emoção que outras não produzem, e que denominamos poética.”



(Valery)



O poeta vive num canteiro de obras. A musa, o acaso, a razão, o sentimento, os pensamentos abstratos são matérias primas para a sua poesia. Ele produz a partir da leitura de textos alheios, articulando idéias e costurando a linguagem. A poesia é um trabalho que exige de quem faz uma quantidade de reflexões, de decisões, de escolhas e de combinações. As leituras e as experiências modificam a escrita, as palavras não são totalmente espontâneas, como nas pinturas de um Pollock, há um trabalho e um cálculo da escrita. A linguagem poética difere da linguagem que utilizamos para a comunicação diária. Cada poeta explora a linguagem na busca de um acontecimento inesperado, de uma experiência singular. A linguagem cotidiana desaparece ao ser vivida, é substituída por um sentido. A poesia não, ela é feita expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser.



Numa época marcada pelo desaparecimento do durável, transmutação rápida dos valores, sem tradição poética, a poesia retorna como um lugar de experiências contraditórias, para atender uma necessidade de lazer e divertimento, do que uma vontade de saber. Os saraus, recitais e debates têm mostrado uma ausência de uma percepção mais ampla das contradições da cultura, particularmente da literatura. A poesia que já participou como protagonista nos movimentos de vanguarda nos anos 20 e 50/60, reaparece na cena urbana deslocada de sua materialidade para falar de aparências e emoções



Almandrade



Artista plástico, poeta e arquiteto



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(*) Recebido nesta data, por e-mail, de Efigênia Coutinho, presidente da AVSPE











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