Usina de Letras
Usina de Letras
134 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62239 )

Cartas ( 21334)

Contos (13264)

Cordel (10450)

Cronicas (22537)

Discursos (3239)

Ensaios - (10368)

Erótico (13570)

Frases (50636)

Humor (20031)

Infantil (5436)

Infanto Juvenil (4769)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140810)

Redação (3307)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6194)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->A GRANDE AVENTURA DE CELSO RANGER -- 19/06/2000 - 10:09 (José Renato Cação Cambraia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O sol ardia a cabeça nua de Celso Ranger. Estava sem o seu chapéu negro. Ranger podia vê-lo dali, se levantasse a cabeça, mas isso estava muito difícil para ele fazer. Não por preguiça, nem por cachaça. Ranger estava amarrado no chão do deserto, fazendo um X com o corpo. Estava ali há muito tempo. Mal conseguia praguejar, velho costume que adquirira ao trabalhar como vendedor de porcos em Nassau. Naquele tempo, há uns quinze anos atrás, sua vida era basicamente cachaça, prostitutas e porcos. Criava e vendia muitos, dava pra pagar o supermercado, sustentar sua mulher, Iomar, e seu filho, o pequeno Jasper. Iomar era uma pernambucana grande, forte, nada delicada. Porém era "deliciosa", na palavra certeira escolhida por Jacivaldo, o marido da irmã de Celso Ranger, portanto seu cunhado. É claro que Jacivaldo nunca se referiu à bela Iomar nesses termos na frente do cunhado, pois se o fizesse, Ranger o mataria com um só golpe no nariz. Sentiu o gosto da língua seca, que parecia um calango vivo dentro da sua boca. O sol impiedosamente fritava seu couro, então começou a se lembrar daquilo que foi a sua vida até ali.
Lembrou-se de como começou a ganhar dinheiro, de início trabalhando, dando um duro danado, criando porcos, e logo depois descobrindo um modo mais fácil: enganando, ludibriando, passando a perna, vendendo aquilo que não tinha, comprando o que não ia pagar. Roubava gado, vendia ouro falso, contratava serviços já com a desculpa pronta para o calote, e os incautos caíam como patinhos no tiro ao alvo do parque de diversões. Era um pilantra, o rei dos negócios escusos, devia até a alma (literalmente). Quando um qualquer resolvia acertar as contas, Ranger se aproveitava do nosso inepto e injusto sistema legal, invertendo as situações e se safando, incólume, dos processos que lhe metiam constantemente. Um safado, como tantos outros, que surgem hoje em dia como zumbis hipnotizados pela ganância e pelo dinheiro fácil (uma família de abutres o observava, e Celso Ranger tentou afugentá-los com gritos, mas só saíram gemidos).
Ontem foi resolver uma questão fora do vilarejo, em Santálvares, onde tinha uma filial do seu frigorífico, o Frigorífico Ranger. Disse à Iomar que iria passar toda a tarde por lá, e à noite ainda ia para Platina, negociar algumas matrizes (visitar algumas meretrizes, na verdade, era aniversário da Loreca, a dona do bordel, e ela tinha prometido uma grande festa, com meninas importadas de Santálvares e Caballia), e só voltava amanhã. Iomar sempre ficava aliviada com as saídas do marido, é claro.
No deserto, Celso Ranger estava vesgo de tanta sede, já podia sentir o cheiro dos abutres, que se aproximavam cada vez mais. A terra queimava e o silêncio só era quebrado pelo vento. Pensou em Iomar e Jasper, e depois no tiroteio. Durante o tiroteio não pensou em nada, pois assim que a Loreca cancelou a festa por causa da morte repentina do Coronel Dionor, dono de Platina, ele se viu obrigado a voltar pra casa. Naquela mesma tarde, Jacivaldo pensava em Iomar, como sempre fazia na hora da sesta. Que coisa, sabia que aquilo não era certo, mas pensar não mata. Foi até a casa de Celso Ranger para avisá-lo que estava na hora de oferecer aquele dinheiro para o Binato, que estava quebrado e tinha que vender a casa por qualquer quantia. Iomar disse ele não está, foi para Santálvares, entra, Jacivaldo. Ela estava com um vestido de trabalho de casa, lavando roupa. Jacivaldo, que normalmente era submisso e covarde, teve uma reação que nem ele mesmo compreendeu, mas que sabia que iria completar todo o vazio de sua alma, pegou a mão de Iomar, puxou o corpo dela contra o seu e eles se beijaram, profundamente. Iomar, que há muito tempo não recebia um carinho sequer, recebeu-o em seus lábios com ardor. Nem repararam que no alpendre, espumando como um cão raivoso, com os olhos quase estourando de espanto e ódio, vermelho como o capeta, estava Celso Ranger, que acabava de chegar para assistir à cena e explodir – Eu te mato, filho da – e atirou com seu 38, censurando e ao mesmo tempo intensificando o palavrão. Jacivaldo pulou mais de susto do que de ágil, mas foi rápido o bastante para rolar até a área de serviço, nos fundos da casa, correr para o barracão do trator, alcançar a espingarda de espantar pardais e, sem saber se estava ou não carregada, disparar contra a figura monstruosa que se precipitava para cima dele, o tiro fazendo mais barulho do que outra coisa, pois a fera nem sentiu, e ainda revidou com um balaço certeiro bem no meio da testa de Jacivaldo, que girou rápido, levantando os braços e caindo de costas, sem dar um pio. Celso Ranger virou-se lentamente e olhou para Iomar, que, com a mão na boca, segurando o espanto, chorava. Tonteou e caiu, pois as bolinhas de chumbo que seu cunhado disparou com a espingarda furaram seu pescoço como uma peneira.
Celso Ranger, agora ali ao lado dos abutres, pensando nesses e nos muitos outros pecados da sua vida, lembrou-se de que tinha morrido, e já fazia muito tempo. Os abutres bicavam seu corpo no final da tarde, mas como acontecia com o fígado de Prometeu, na manhã seguinte ele se recompunha. Sempre pensava que não podia ficar pior, mas sabia que ia piorar cada dia mais, até o fim da eternidade, pois aquele era o lugar que ele mesmo reservou durante toda a sua vida.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui