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Contos-->Lendas de Tol Ereasea (Baseado na obra de JRR Tolkien) -- 08/08/2002 - 18:14 (Victor Barone) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Capítulo 1



Ælfwine sentou-se sob uma grande faia, descansando de sua jornada. Sobre ele, as folhas da árvore pareciam adornadas em ouro e verde profundo, um ouro esverdeado refletido pela luz do sol poente. Enquanto mantinha suas costas no tronco e seus dedos correndo através da turfa macia e das finas raízes, ele novamente pensou na boa fortuna que o levara até a costa branca da ilha. E se perguntou o porquê de ter sido salvo do afogamento nas profundezas do mar no qual havia estado por tanto tempo; para ser lançado nas costas destas terras por onde as lendas caminhavam sob o céu.

- Sorte? – havia dito Pengolod. – Um mero acaso ter sido carregado sobre as ondas até as costas destas terras? Não. Isso poderia ocorrer se a sorte o tivesse lançado em alguma parte das costas cinzentas da Terra Média. Mas por todas as Eras, desde que Ulmo ancorou Tol Eressea neste lugar, nenhuma vez a “sorte” trouxe um filho dos Homens a este local. Não, apesar dos propósitos estarem obscuros, fostes trazido entre os Eldar por mais do que mera sorte. -

O povo élfico, antigo e esquecido, salvo talvez pelos contos infantis, socorreu-o antes que fosse novamente arrastado pelas ondas. E lhe contaram histórias de Eras nas quais o mundo era ainda novo e fantástico. Das três famílias élficas eles lhe falaram, e do escurecimento de Valinor, onde os deuses ainda habitavam. Canções ele ouviu, repletas de sofrimento e beleza, da rebelião dos Noldor e da trágica guerra contra o antigo Inimigo do qual todos os povos livres fugiam. E, quando ouviu sobre a Guerra da Ira, e do resgate dos Eldar e dos Pais dos Homens em Beleriand, Aelfwine perguntou.

- Se a Terra Média está realmente redimida dos demônios de Morgoth, e ele foi, afinal, totalmente derrotado, então porquê a Terra Média não tornou-se um jardim compartilhado por Elfos e Homens? Porquê os Eldar abandonaram aquelas terras, deixando-as para as tolices dos Homens? -

Pengolod sorriu tristemente.

- Os Eldar não abandonaram a Terra Média. Sim, muitos entre os Noldor aceitaram o perdão dos Valar e retornaram ao abrigo, aqui na Ilha Solitária. Ainda assim, muitos, além do povo de nossa família, Moriquendi, ficaram para trás. Aquele não é o local de nosso descanso e moradia, mesmo sendo as terras onde nascemos. Por muitas Eras os Quendi caminharam por entre as árvores que nasceram no que hoje são as Terras Mortais. -

- Quando os Eldar partiram afinal? – Perguntou Ælfwine. – E porquê? -

- Após o fim da Terceira Era, o tempo dos Homens surgiu, então os últimos entre os meus irmãos seguiram para o mar, para Avallone. E o porquê? É melhor deixarmos este conto para aquele que tem observado esta história se desenrolar e a entende com mais profundidade, Mestre Elrond. - Respondeu o Elfo.

Assim, dias depois, Ælfwine viu-se sozinho na estrada que conduzia ao abrigo daquele outro sábio. Para norte ele viajou, de Tavrobel, através da grande cidade de Avallone, então para oeste, em direção ao coração da ilha. Mas parou melancolicamente, as vistas das torres brancas de Avallone, desejando visitar a cidade e ver os pálidos navios élficos, ancorados no cais. Queria cavalgar as ondas sobre o corpo orgulhoso daqueles cisnes! Mas, Avallone podia esperar. Por agora, limitava-se a sentar por entre as faias, cansado e faminto, enquanto saboreava a doçura do entardecer daquela estranha terra. Mesmo o ar que respirava possuía qualidades mágicas, como se estivesse impregnado das flores e das coisas verdes que cresciam em abundância. Abrindo os olhos, olhou por sobre as grandes árvores que se estendiam pela estrada, repletas de folhas de tonalidade cinza prateadas e douradas. Como os Elfos a chamavam? Malinorne?

Seu devaneio foi quebrado pelo som de cascos que troavam do leste. Muitos cavaleiros faziam a curva na estrada próxima, e entre eles havia um grande garanhão cinzento, sobre o qual se destacava uma dama élfica de inigualável beleza. Os cavaleiros diminuíram a marcha e pararam próximos a Ælfwine, olhando-o curiosamente. Um Elfo alto, de cabelos negros, e que trazia uma estrela em seu peito, pendurada por uma fina corrente, falou.

- Agora vejo sentado aqui uma maravilha como a qual não vejo a anos incontáveis. A menos que esteja enganado, este viajante é um Atani. Saudações a este encontro! Que adventos estranhos podem ter trazido um filho dos Homens a Ilha Solitária? -

- Nenhum advento estranho me trouxe aqui, apenas a boa sorte, embora Pengolod pense de outra forma. - Replicou Ælfwine.

- Acredito que Pengolod, o Sábio, veja este prodígio de maneira bem particular. Seu nome? -

- Sou Ælfwine, Senhor. Procuro pela casa de Elrond, Senhor do Saber, como foi-me indicado por Pengolod. -

Com um sorriso discreto, o Elfo virou-se para a dama que permanecia sobre o garanhão.

- A sorte não guia este homem! O que acha Celebrian? Há alguma chance deste encontro ocorrer? -

O sorriso da bela dama soou como uma chuva prateada.

- A casa de meu Senhor Elrond está onde uma pedra possa ser lançada. – Ela disse. – Mas ao Elfo você encontrou, Ælfwine! Você está diante de Elrond e sua esposa. Sou Celebrian. E estes são os Elfos de nossa Casa. -

Elrond desmontou graciosamente e segurou o homem pelos ombros.

- Venha Ælfwine! Precisas de novas vestimentas. Ser aliviado de seus ferimentos e saciado com vinho. Então, nos contará a sua história, e porquê Pengolod enviou-o. E, caso possa lhe ser útil, o serei. -

Eles cavalgaram ao longo da estrada e, realmente, em distância menor do que uma pedra poderia ser lançada, nas dobras de uma colina coberta por árvores, ele pode ver um grupo de casas, pequenas e grandes, que se espalhavam pelas encostas entrecortadas por riachos e pequenas cachoeiras. Elrond e Celebrian levaram-no a maior edificação, uma casa de madeira e pedra branca, onde foram recebidos por muitos Elfos. Ælfwine foi levado a um aposento com uma cama convidativa, e uma grande bacia cheia de água quente e limpa. Após ter se banhado, foi conduzido a um grande salão, onde uma mesa comprida estava recheada de alimentos. Elrond guiou-o para uma cadeira alta, próxima a sua, e fez com que bebesse e comesse.

Após ter sua refeição, Ælfwine contou a história de sua chegada a Eressea; de como navegara do Velho Mundo; e de como viu-se perdido até que o horizonte desabou por baixo de seu navio; relembrou seus companheiros abandonado a embarcação, apavorados; falou da tempestade que finalmente partiu o casco em pedaços; e da imensa onda que o ergueu e o levou delicadamente até a praia.

Elrond e seus companheiros ouviram, maravilhados, a história de Ælfwine.

- Então Pengolod não estava errado. Apenas a sorte não o traria aqui entre os Eldar. Algum grande propósito, que ainda não percebo, repousa por trás deste evento. Mas diga, porquê Pengolod enviou-o? -

E Ælfwine falou sobre sua permanência na casa de Pengolod, e dos contos que ouvira sobre a Primeira Era, e de seu assombro frente a história oculta do Mundo. Por ultimo, ele expôs suas dúvidas sobre o desaparecimento dos Eldar durante os anos após a derrota de Morgoth, e de sua partida da Terra Média.

- Pois me parece que se os Eldar tivessem permanecido, muitas desgraças poderiam ter sido evitadas, e a história do Homem poderia ter sido menos trágica. – Ele disse.

Elrond olhou-o gravemente.

- As respostas que você procura são antigas, e elas mesmas estão envoltas em tristezas e mágoas. Contar-lhe tudo a respeito delas levaria muito tempo, e você tem viajado por longos dias. Deseja mesmo começar nesta noite? -

Aelfwine respondeu positivamente com um meneio de cabeça, e Elrond convocou seus convidados até o grande salão, onde havia fogo. Quando todos estavam acomodados, Elrond dirigiu-se a Aelfwine, e começou a falar.

- Muitos dias se passaram desde a época destes contos da Segunda e da Terceira Era de Arda... -

Ælfwine olhava-o maravilhado, e ouviu sobre a fundação de Numenor; sobre os Mirdain e o estabelecimento de Eregion; sobre a criação dos Anéis de Poder e do Um Anel; sobre a Guerra entre os Elfos e Sauron, da ruína de Eregion; do Akallabeth; da Aliança Final e de sua vitória; sobre a fundação de Gondor e Arnor e do desastre das Gladden Fields; das guerras contra o Rei Bruxo, e da queda de Arnor; do fracasso da linhagem de reis de Gondor; da Guerra do Anel; e de muitas outras coisas que ocorreram posteriormente.

Muito tarde, naquela mesma noite, Ælfwine retirou-se para os jardins nos fundos da casa de Elrond, onde floresciam elanor e niphredil. Por longo tempo ele manteve-se pensativo, em tristeza, considerando tudo quanto lhes disseram os Eldar, e todas as tragédias que os cercaram. Após um tempo, encontrou uma clareira nos jardins, onde erguiam-se três monumentos moldados em branco marfim e adornados com detalhes de ouro. Incapaz de ler as runas escavadas na pedra, ele sentou-se, imaginando o seu propósito.

Por quanto tempo permaneceu ali não se pode dizer, mas subitamente se levantou e olhou ao seu redor, percebendo que a noite havia caído. As estrelas brilhavam gentilmente no céu, mas para sua surpresa, os monumentos pareciam ter adquirido um brilho de luz clara, em contraste com a escuridão da noite. Neste momento, viu que não estava sozinho. Ao seu lado estava Elrond, observando os monumentos, com um sorriso triste. Seus olhos cinzentos brilhavam sob as estrelas e faziam-no parecer distante daquela realidade.

Então, olhando para Ælfwine, ele perguntou.

- Ouvistes suficientes histórias do passado? Ou desejas todo o conhecimento que pesa sobre a memória dos Eldar? -

O homem sorriu.

- Tenho ouvido muitas maravilhas desde que cheguei a estas costas. Mas minha memória tem espaço para mais. E ainda não ouvi a resposta para a pergunta que fiz a Pengolod; porquê você seu povo deixaram as terras mortais? -

- Talvez nem todos o tenham feito. – Respondeu Elrond. – Talvez alguns permaneçam escondidos em montanhas longínquas, ou em vales verdes desconhecidos, como espíritos ou fantasmas do passado. Mas você deve ter a sua dúvida esclarecida. É o destino de nossa raça desaparecer frente ao domínio dos Homens, e deixar-lhes o controle da Terra Média. Com as belezas criadas pelos Três Anéis desaparecidas quando da destruição do Um Anel, muitos do meu povo decidiram partir rumo a oeste antes mesmo que a Terceira Era finda-se. A Quarta Era e as Eras seguintes são tempos do Homem. -

- Mas frio e triste se tornou o mundo sem os Elfos, e pobre de sabedoria e conhecimentos. - Argumentou Ælfwine.

Elrond ergueu sua cabeça, e seus olhos brilhavam enquanto observava o amigo.

- O próprio Pengolod poderia ter-lhe falado sobre a passagem dos Eldar. Enquanto o propósito de sua vinda a Eressea não torna-se claro, inclino-me a pensar que talvez você tenha sido enviado para ouvir estas histórias do passado, e leva-las de volta ao seu povo, para que então as memórias dos Eldar, assim como nossos feitos e sofrimentos não sejam totalmente esquecidos quando o mundo envelhecer. Por esta razão, Pengolod enviou-te a mim, a não ser que esteja enganado. -

Eles permaneceram sentados, quietos, por certo tempo, sob a luz clara das estrelas.. Com um brilho pálido, Isil surgiu sobre as suas cabeças. Como se agradecessem a esta fonte de luz, as três estátuas de pedra brilharam ainda mais na noite. Aelfwine levantou-se e disse, apontando para os monumentos.

- E o que são estas pedras? – Perguntou. – Parecem pedras fúnebres. Não vi nada como elas em minha estada aqui, embora não ache certo que as Terras Imortais possuam túmulos. -

Uma expressão saudosa cruzou a face de Elrond, e ele disse.

- Pois túmulos elas são. Aqui descansam grandes heróis cuja memória cultivamos em honra, e cuja passagem é repleta de uma tristeza que durará enquanto durar Arda. -

- Quem descansa aqui? Como podem morrer nas Terras Imortais? -

- As terras não são imortais, - respondeu o Elfo, - nem os que aqui vivem. Os Eldar e os Valar viverão até que Arda desapareça. As terras não possuem nenhuma virtude especial. -

Elrond olhou-o novamente.

- Na manhã seguinte de nossa partida dos Portos Cinzentos, cruzamos a noite Tol Morwen. Então, paramos em honra daqueles que viveram nas terras de Beleriand, e aos que haviam perecido nas guerras da Primeira Era.

Prosseguimos por mais um tempo e logo entramos na Estrada Escondida, e o mundo fundiu-se perante nós. Então, alguns olharam pela última vez pelas bordas do navio para uma última visão da Terra Média. E não foram poucas as lágrimas que rolaram naquele momento.

Apesar de todo o sofrimento, não amamos menos a Terra Média. Mas os Portadores dos Anéis não derramaram lágrimas. Frodo manteve-se na proa, com o vento varrendo-lhe a face, e Bilbo sentou-se ao seu lado. Eles, ao menos, partiram sem tristeza, olhando sempre para o Oeste.

Depois de um tempo os mares tornaram-se calmos novamente, e navegamos pelas nuvens enquanto uma chuva fina caía. Ilhas passavam sob nós, pequenas e escuras, e algumas vezes pudemos vislumbrar os esqueletos de antigos navios encalhados nas costas. E imaginamos a quem teriam pertencido, Homens ou Elfos, viajantes que passaram por tormentas apenas para caírem no fim do mundo. A chuva causava uma sensação agradável, e logo sentimos no ar um odor de flores. –

- Aye, - interrompeu Aelfwine, - as ilhas pelas quais passei também me pareceram esquecidas pelo tempo, e eu temi percorre-las. Mas a chuva que se abateu sobre o meu barco não era agradável e nem leve. E também não senti o odor de nenhuma flor, até que despertei nas costas destas terras. -

- Sim, você não foi destruído, como seu navio, e a Eressea acabou sendo trazido. – Replicou Elrond. - Quando emergimos por entre as formações de nuvens, pudemos ver diante de nós uma ilha verde, rodeada por extensas praias brancas, e além a Montanha Sagrada, cravada no céu. Agradecidos ficamos com esta visão, de tal forma que muitos começaram a cantar.

A face de Frodo parecia brilhar de contentamento, e talvez pela primeira vez, desde o seu retorno, ele esboçou um sorriso verdadeiro e confiante, e virou-se para Bilbo, comentando Olhe! Contemple nossa nova morada! E Bilbo olhou-o com a face envelhecida e acenou em concordância enquanto a brisa desmanchava seus fartos cabelos brancos. Por um tempo, Frodo , ele respondeu. Por um tempo .

Enquanto nos dirigíamos ao porto de Avallone, uma grande multidão reunia-se no cais, gritando e balançando seus braços em saudação. Sinos soaram e ecoaram pelas estradas e pelas torres, enquanto o sol surgia iluminando as bandeiras dos Eldalie. Muitas reuniões de boas vindas ocorreram naquele dia, e prazeroso foi meu primeiro olhar para Celebrian, que encontrava-se curada de males. –

Ele interrompeu sua fala com um sorriso, olhando para Ælfwine.

- Sim, muitos esperaram intermináveis anos para reunirem-se novamente aos seus. – E muitos outros esperaram mais tempo que eu para o reencontro. Um grande pavilhão branco foi erguido na praça central da cidade, onde muitos reuniram-se, alguns vindos mesmo de Valinor, para ver os recém chegados. Todos abriam caminho aos Portadores dos Anéis, principalmente aos Hobbits, e a Galadriel, ao seu lado.

E no final do pavilhão, havia uma grande plataforma, sobre a qual encontravam-se muitos Elfos. Enquanto nos aproximávamos, Galadriel deu um grito, e correu a frente; havia avistado Finarfin, seu pai, e ao seu lado, Finrod, que havia retornado de Mandos, além de outros de seu povo. Eras haviam se passado desde que haviam se visto pela última vez.

Entre o clamor e as lágrimas, um caminhou adiante pela plataforma de braços estendidos para os Portadores dos Anéis. Alto, com cabelos negros, vestia um robe prateado, e ostentava uma jóia que pendia em sua testa. Era Eonwe, a quem eu havia encontrado pela última vez durante a queda de Beleriand, nos últimos momentos da Primeira Era. A multidão silenciou quando ele falou: Bem vindos Frodo e Bilbo, a quem trago agradecimentos de Manwe! Nunca antes um membro das raças jovens caminhou por estas estradas, e Eras se passarão antes que outros o façam novamente. Poucos de tão grande valor pisaram estas terras. Seus feitos serão cantados em cações até mesmo nos picos de Taniquetil. Bem vindos! –

Os Hobbits, lisonjeados, ficaram vermelhos como carmesim, e gaguejaram agradecimentos, incapazes de encarar o brilho dos olhos de Eonwe. Olorin foi quem gentilmente guiou-os pelos ombros por sobre a plataforma, entre os poderosos de Arda, em meio a aclamações. Muitas taças foram cheias e esvaziadas no calor daquela noite. Queriam eles ou não, haviam se tornado grandes heróis. –

Elrond fez uma pausa, inclinando-se para olhar as estrelas. Ele sorriu novamente e continuou.

- Bilbo não cochilou um segundo enquanto durou a celebração. Ele gastou muito tempo naquela noite conversando com Finrod sobre Beren Erchamion. Sempre um amante de histórias era Bilbo. E Frodo, como de hábito, falava pouco, mas prestava atenção em tudo quanto ouvia. -

Ele parou de novo e levantou-se, caminhando até o primeiro monumento. Descansando as mãos sobre o seu topo, Elrond acenou com a cabeça, tristemente.

- Bilbo morreu um ano depois, no seu aniversário. Ele convocou Olorin e a mim, e viajamos com ele e Frodo até Avallone, onde o carregamos pelas escadas da Torre, até ao Aposento do Palantir. Olorin levantou-o para que pudesse observar a pedra. Velho e cansado ele estava, mas gastou suas últimas horas com visões de sua casa no Condado, de Hithlaeglir, da Montanha Solitária, e finalmente, de Aragorn em Minas Tirith, com sua amada Arwen. Então saímos na noite, para que ele pudesse ver as estrelas. Frodo havia começado a chorar, mas Bilbo abraçou-o com suas últimas forças dizendo Acalme-se agora. Meu pequeno papel nesta história foi desempenhado. Precisas continuar sem mim, como puderes. Não tema; pois eu não temo. Nunca houve um Hobbit mais sortudo do que eu, que tenha visto o quê eu vi, feito o que eu fiz, ou aprendido o que eu aprendi. A história é sua agora, até que você mesmo passe, e até que este mundo seja renovado, e nos encontremos novamente . E dizendo isso, fechou os olhos e passou calmamente pela morte. Mas Frodo levantou sua face coberta de lágrimas, e balançou sua cabeça levemente, como se concordasse.

Frodo viveu por muitos anos mortais em Eressea. Então, um dia, ele também convocou Olorin, e novamente viajamos a Avallone. Não para a Torre, mas até o cais, onde nos sentamos por longo tempo, olhando por sobre o mar. E no horizonte pudemos ver se aproximando um navio por entre as nuvens. Sua proa cortando os céus, e uma altiva cabeça de cisne observando ao longe. Então ele ancorou, e muitos Elfos escalaram suas muradas guiando-o até as docas. Após alguns minutos, uma figura de baixa estatura, com os cabelos totalmente brancos surgiu.

‘Sam! gritou Frodo. Finalmente você esta aqui. Tenho lhe esperado por longos anos. Não me diga que você teve medo de velejar?’

E Sam respondeu, Imploro ser perdão Mestre Frodo, não, não estava com medo. Mas não poderia deixar Rosie para trás. Tive que aguardar que ele se fosse primeiro .

‘Sinto muito Sam, disse Frodo, abraçando seu amigo. Eu sei que você a perdeu. Mas estou feliz em tê-lo aqui.

Nós retornamos para casa novamente, e jantamos com Frodo e Sam. Então, os deixamos a sós para que falassem. Os ouvimos conversando até a madrugada, e então ficaram quietos. Na manhã seguinte, os encontramos lado a lado, de mãos dadas, e em seus rostos havia uma tranqüilidade de quem apenas dorme um sono gostoso. Foi no dia 25 de março. E agora há três túmulos e três pedras funerárias em Tol Eressea, no jardim de Elrond. -

Elrond deu um forte suspiro e permaneceu silencioso ao lado das pedras. Então, se curvou solenemente, e dirigiu-se a Ælfwine.

- Venha, é tarde.



Capítulo 2



Ælfwine havia se acostumado a casa de Elrond, mas semanas depois, em meio à noite, quando o vento mudou, soprando forte do leste, trouxe consigo nuvens pesadas e negras. Dançando por entre as nuvens havia gaivotas, pairando sobre a casa, equilibradas pelas correntes de vento que redemoinhavam no céu. Seus gritos estridentes despertaram em Ælfwine um grande desejo de novamente respirar o ar salgado e caminhar pelas costas da ilha. Então, resolveu deixar a hospitalidade de Elrond e Celebrian, ainda que tenha sido dentro daquelas paredes que, pela primeira vez em sua vida, havia conseguido encontrar um profundo sentimento de paz. Os salões de Elrond eram como nenhum outro; mais antigos do que o conhecimento humano, e no entanto menos afetados pelo peso do tempo do que outros abrigos de senhores élficos. Era como se os aposentos tivessem ficado incólumes por Eras, e se um dia voltasse a visitá-los, mesmo que centenas de anos se tivessem passado, seria certo que os encontraria da mesma forma, intocados. Além disso, Elrond entendia o coração dos homens como ninguém nestas terras.

Então, em uma agradável manhã de sol, Ælfwine cruzou as portas da casa de Elrond, carregando um pequeno pacote e as saudações de seus anfitriões. Elrond observou-o gravemente, e então conduziu seus olhos cinzentos para o leste, como se quisesse vislumbrar os destinos para os quais a estrada conduziria aquele homem.

- O desejo do mar é dividido por Elfos e Homens, - disse – é difícil resistir ao seu chamado. Temo que você ainda não esteja pronto para deixar nossa ilha. Assim, peço que retorne assim que puder, ou quando o destino permitir. Serás bem vindo. -

- Sim. - disse Celebrian. – Venha quando puder. Sua estadia aqui é prazerosa, pois traz-nos lembranças de Eras passadas, de quando ainda habitávamos a Terra Média, e muitos filhos de Homens alegravam nossas casas. -

- Eu retornarei se puder. – Replicou Ælfwine. – Na verdade, nunca fui tão feliz quanto nestas semanas que se passaram. Se puder, visitarei sua casa novamente. -

Elrond sorriu generosamente, e seus olhos brilharam como estrelas em uma noite escura.

- Que assim seja, há sempre histórias a serem contadas, e canções a serem cantadas. Você teve apenas um sabor do farto banquete que é a sabedoria dos Eldar. Em apenas três semanas estaremos em pleno verão, e então muitos serão os convidados na casa de Elrond. E o primeiro dia é como nenhum outro para canções e histórias, de modos que a sua sede de conhecimentos será plenamente saciada. Venha então, se puder, e junte-se a nós para as boas vindas aos primeiros raios do sol. Então, realmente poderá sentir-se agradecido por sua estadia em nossa casa. -

- Eu agradeço. - Respondeu Ælfwine. – E retornarei, pois quem poderia recusar um convite tão generoso?- Ele curvou-se aos Elfos, segurou seus pertences, e ganhou estrada.

- Um momento! - Gritou Celebrian. – Não podemos deixar que parta sem lhe dar algo que lembre sua estadia na casa de Elrond. – Ela caminhou na direção do homem, sua mão estendida. Havia uma pequena faca, do comprimento de um dedo, protegida por uma bainha prateada que brilhava sob o sol. Era adornada por uma estrela de seis pontas, envolta em um círculo. Entre cada raio de sol estilizado havia uma pedra branca que cintilava a luz da manhã. Pegando a faca, Ælfwine impressionou-se com a beleza do presente.

- Tome cuidado! – Alertou Elrond. – É muito afiada, e manterá seu gume mesmo que seja muito usada. -

- Obrigado novamente! - Disse Ælfwine. – Mas porquê teria que usar este presente? Certamente ninguém me faria ciladas nestas terras, e mesmo que isso acontecesse, poderia uma arma tão pequena defender-me? Vejo-a como um artefato de grande beleza, e será preciosa para mim de agora em diante. -

Celebrian trocou um olhar com seu companheiro e sorriu.

- Isso não é para sua defesa. Apesar de que suspeito que poderás achar bom uso para ela. – Disse enquanto sorria, e seus olhos cinzentos brilharam com alegria.

- Até logo Ælfwine! Que sua viagem seja agradável, e que a estrada lhe traga de volta quando desejares visitar nossa casa de novo. -

Elrond e sua esposa voltaram-se para seus aposentos, galgando os degraus brancos, e atravessando as pesadas portas de madeira. Ælfwine parou por um momento, olhando-os, controlando a vontade de permanecer entre aqueles sábios. Então, embainhou a faca, colocando-a em um bolso de sua mochila, e apressou o passo pela estrada.



A estrada para Avallónë pareceu-lhe mais longa do que imaginara, e por onde caminhava, os pássaros do mar o seguiam, em balbúrdia sobre sua cabeça. Finalmente, aproximou-se da cidade élfica; cujas muradas, de pedra branca e rósea, estendiam-se perante seus olhos, e cujas muitas torres resplandeciam como picos nevados desenhados contra o céu, profundamente azul. Finalmente, as gaivotas abandonaram a perseguição, cruzando as paredes da cidade, de volta aos seus abrigos, no mar. Uma delas, no entanto, pousou no galho de uma árvore que se debruçava sobre a estrada. Olhou para baixo, enquanto Ælfwine passava, e então, com um forte trinado, alçou vôo novamente, fazendo caminho rumo ao oceano.

A estrada prosseguia seu caminho rumo as pontes de Avallónë. Como uma imensa pérola, a cidade se elevava em tons de cinza, branco e azul opala. Parecia frágil, tão adornada em prata e ouro era, mas quem nestas terras iria sitia-la? Sim, Ælfwine sabia que seria preciso mais do quê vontade ou força mortal para fazer ruir aqueles portões. Hoje, como em muitos dias, salvo quando raras tempestades fustigavam o mar encantado, as pontes de Avallónë permaneciam abertas, e muitos a cruzavam.

Em seu interior, Ælfwine parou para observar ao redor, e seu olhar repousou sobre a grande Mindon Anduliéva. Construída em pedra coral polida, a delgado torre elevava-se por quase cento e cinqüenta metros de altura, e seu topo abrigava um brilhante farol, cuja luz penetrava a escuridão mesmo em noites nebulosas. Ele lembrou-se quando em noites escuras, meses atrás, quando as tempestades e ondas fustigavam violentamente seu navio, havia sido a luz de Mindon, vislumbrada entre cortinas de chuva e vento, que o guiara na direção da ilha. Somente o brilho deste farol havia evitado que ele se rendesse a tempestade. Em um aposento, bem debaixo do farol, Ælfwine agora sabia, descansava um palantír, cujo foco apontava para as terras mortais, as quais os Elfos haviam deixado para trás, para sempre. Ele imaginou se a noite alguém se interessava em observar pela palantír as terras do leste, a tanto tempo abandonadas aos desejos dos homens.

Enquanto divagava pelas ruas da cidade, muitos paravam para olhá-lo, curiosos em ver aquele homem de cabelos encanecidos. Mas isso não incomodava Ælfwine; ele havia experimentado as mesmas expressões de surpresa em Tavrobel, e pelas estradas pelas quais havia viajado na Ilha Solitária. Ignorando o falatório ao pé do ouvido e os cochichos de "Atan", ele caminhou até chegar a uma grande praça, nas quais muitas fontes se espalhavam, seus esguichos mesclando-se como arco-íris filtrados pela luz do sol. A sua esquerda erguia-se Mindon, inacreditavelmente esguia para a sua altura, de modo que não se podia contemplá-la sem que uma vertigem surgisse em onda rápidas. A sua direita, as ruas desciam até o cais de Avallónë, onde dezenas de navios brancos descansavam nas docas. Nas proximidades, um pequeno grupo de crianças élficas, as primeiras que ele havia visto na ilha, dançavam por baixo de um esguicho de fonte.

Repentinamente, elas se deram conta de sua presença, e misturaram-se por entre as pernas da multidão, observando-o de longe. Encantado pela música de suas vozes, e por sua graciosidade quase etérea, ele ajoelhou-se entre eles e uma menina, exitantemente, se aproximou, tocando sua face. Quando seus dedos roçaram a barba do homem, a menina deu um grito de excitação, para deleite das demais crianças, que saltitaram e gargalharam, apontando Ælfwine. E ele sorriu também, pois havia entendido agora o propósito do presente de Celebrian. Há meses, desde que havia sido lançado as costas da ilha, ele ainda não havia visto um Elfo sequer usando barba.

As crianças retornaram aos seus jogos e ele levantou-se, prosseguindo seu caminho até o cais. O cheiro do oceano impregnava o ar, fazendo seu coração pular dentro do peito, enquanto se aproximava dos grandes e imponentes navios. Ele vagou pelas docas observando a beleza e simetria dos belos cascos. Nenhuma mancha sequer maculava-os, criando uma aura irreal naquela cena. Suas bandeiras brancas, azuis e verdes, tremulavam ao lado de flâmulas douradas e prateadas, gerando um murmúrio agradável que lhe era trazido pela brisa. Uma vez mais, os pássaros dos mar giravam sobre sua cabeça.

Ele continuou seu caminho ao longo do cais, e viu que se aproximava um imponente navio-cisne branco, o maior que ele havia visto. Suas bandeiras eram cinzentas, e ostentavam estrelas azuis, adornadas por asas brancas. Aproximava-se do cais, e muitos Elfos movimentavam-se pelo seu convés, limpando as lembranças do mar. Quando a embarcação se aproximou, ele pode perceber duas figuras que elevavam-se na proa. Então, com um grito de surpresa, Ælfwine correu na direção do que achava ser um Homem, pois ostentava cabelos embranquecidos pela idade, e uma longa barba. Ouvindo seu grito, ambos viraram-se para ele, e pelo brilho de seus olhos, que refletiam uma sabedoria primeva, Ælfwine percebeu que eram Eldar.

- Perdoem-me. - Murmurou ao se aproximar dos dois Elfos que já haviam desembarcado. - Devido a sua barba, achei que fossem minha gente; Filhos dos Homens. Mas vejo que me enganei. -

- E eu vejo que és realmente um verdadeiro Atani. Mas que estranhos acontecimentos permitiram a um homem atravessas a Estrada Escondida? - Replicou o Elfo barbado, cuja voz era profunda como o oceano. – Venha, sente-se conosco e conte sua história. Sou Círdan, o construtor de navios. -

- Chamo-me Ælfwine. - Respondeu o Homem. – E também quero ouvir sua história, pois nenhum Elfo que encontrei nesta ilha cultivava uma barba como a sua. – Ele sentou-se no cais, e, pela primeira vez, olhou para o segundo Elfo. Era muito alto, e seus cabelos eram negros. Sua face, profundamente delineada, trazia algum sofrimento ou tormento antigos. Trazia as mãos às costas, e não pronunciou uma palavra sequer.

- Mesmo um Elfo pode revelar algum sinal da idade, após a passagem de tantas Eras, e eu sou velho, mesmo aos olhos de meu povo. Poucos vivem nesta ilha que possam relembrar as águas de Cuiviénen. - Disse Círdan, olhando para as ondas, que chocavam-se monotonamente contra as pedras do cais.

- Cuiviénen? - Murmurou Ælfwine. – Este é um nome que tenho ouvido aqui, mas como eco de uma Era passada. Um lugar legendário, acredito. Cuiviénen existiu realmente? -

- Existiu. – Replicou Círdan, com um suspiro. – Uma terra de colinas verdes, penhascos repletos de bosques e cheia da doce música da água. Lembro-me das vozes quietas dos riachos correndo sob as folhas do outono…. Pareciam finas lâminas de prata dançando sobre o fluxo… Estas lembranças estão impressas em meu coração. Ainda hoje posso escutar a música das águas de Cuiviénen. As florestas verdes atraíram grande parte de meu povo, mas eu sempre me encantei com os sons das águas. -

Ele fez uma pausa, e seus olhos cinzentos brilharam como se estivesse vendo uma miragem distante.

- Por muito tempo vivemos ali em alegria, onde tudo parecia novo e maravilhoso. E errávamos pelas colinas e campos, dando nomes a tudo que víamos. As terras, as árvores, campinas e águas, de modo que tornaram-se parte de nós. Assim, foi despertado nos Elfos um desejo de preservar e amar Arda. Ela é parte de nós, e nós somos parte dela. -

- Se Cuiviénen era um lugar tão abençoado, porquê os Elfos saíram de lá? - Perguntou Ælfwine.

- Após um tempo, longo talvez na contagem dos Homens, a escuridão veio, ou mais verdadeiramente tenha nos encontrado. – Disse o Elfo. - Nuvens escureceram o céu e as colinas passaram a esconder coisas maléficas. Espectros escuros voavam na noite, cobertos de fumo e fogo, e muitos que caminhavam nos campos e florestas não voltavam. De vez em quando, os gritos de algum Elfo que havia sido agarrado cortava o ar enquanto nos encolhíamos a volta do fogo. E, mais que qualquer outra sombra que amaldiçoava os caminhos de Cuiviénen, estava o Cavaleiro Negro, que caçava nossa gente, e os levava vivos para lugares que não imaginávamos. -

Seus olhos coruscaram com raiva.

- Um dia, eu deixei nossas terras com Vilwë, e seguimos um riacho que descia pelas colinas. Eu forcei caminho por entre o junco enquanto ele procurava um novo caminho pelas árvores que se estendiam à beira d´água. Por um momento, havíamos esquecido a escuridão e o terror que caía sobre os Quendi. Mas então, ouvi um clamor vindo do campo, e Vilwë gritou em pânico. Quando me virei, dei-me com um cavaleiro sobre um garanhão negro, segurava Vilwë pelo pescoço, com apenas uma mão. Nossos gritos atraíram mais Elfos e ele acossou seu cavalo em minha direção.

Com um de nós ele se parecia, cabelos negros e olhos brilhantes, mas em sua boca havia escárnio. Nossos olhos se encontraram, e foi como se eu tivesse sido atingido por um tufão, pois naquele momento pude perceber a profundidade de sua corrupção; portas de ferro negro, muros de sombra e torres de pedras torturadas. Por nenhuma razão que pudesse entender, descobri que me odiava, e a todo o meu povo. Então, perseguiu-me até as águas mais profundas, onde me escondi entre o junco, sentindo toda a sua malícia. Quando passou, tentei arrancar meu amigo de seu abraço, mas ele gargalhou novamente e seu cavalo arrastou Vilwë por dezenas de metros, onde seu corpo foi abandonado diante meus olhos. -

Círdan calou-se por longos minutos, suas mandíbulas tensas pela lembrança dolorosa.

- Eu o vi novamente. Não em Cuiviénen, mas Eras depois. Mensageiros vieram de Eregion a Lindon, convocando-nos para um conselho. Um estranho havia chegado a Hollin, com promessas de presentes e ensinamentos maravilhosos. Nosso Senhor, Gil-Galad, enviou a mim e Elrond, e viajamos por muito tempo até chegarmos aquelas terras. Fomos levados ao Grande Salão de Celebrimbor, afim de nos encontrarmo-nos com Annatar, o Senhor das Dádivas. E lá estava ele, sentado com Celebrimbor e os Elfos de sua casa, rindo e festejando entre colunas de mármore e paredes revestidas de finas tapeçarias. Justo ele aparentava ser, com cabelos dourados e estatura nobre, um rei disposto a compartilhar as riquezas de seu saber aos que descem ouvidos aos seus conselhos. Assim que me sentei naquela mesa, ele pousou seus olhos nos meus, com um sorriso nos lábios, e minha mente quis convencer-me de que estava olhando para um velho amigo. Mas o falso véu que desceu sobre os olhos de Celebrindor e seu povo voou como gaze ao vento quando subitamente lembrei-me daquela imagem de Eras passadas; portas de ferro negro, muros e torres de sombras. E o reconheci, apesar de não saber seu nome, e tive uma reação de recuar, derrubando a cadeira sobre a qual estava sentado. Em minha raiva, não pude encontrar a voz, e tive ganas de buscar por minha espada para notar que não estava armado, havia vindo a um conselho. Eu o teria matado ali mesmo, em memória de Vilwë.

Mas, como era costume naqueles tempos, havia deixado minha espada ao lado de fora do Salão, e Elrond conteve-me. Ao chegar a porta do Salão, contive minha fúria e disse Não negociem com ele. Sigam seus conselhos e temerão o futuro . Mas Annatar respondeu Suponho que as boas maneiras sejam diferentes entre os que vivem entre as árvores. Água deve ser o seu sustento, e não os bons vinhos da nobre Eregion . E muitos riram, mas Elrond voltou seu olhar para o sorriso de Annatar, e viu que seus olhos queimavam e neles pode perceber seu ódio contra todos os que caminhavam livremente. Então, quando lhe contei minha história, ele acreditou, e aconselhamos Gil-Galad a fechar seu reino ao Senhor das Dádivas. Mas Celebrimbor, derrotado pelo orgulho e pelo desejo de conhecimento não deu crédito as minhas palavras . . . – Finalizou Círdan, sua voz desaparecendo sob a dor daquela lembrança, e sua cabeça pendeu para frente, até que seus olhos não puderam mais ser vistos.

- Você leu seus pensamentos? Como foi possível reconhece-lo? - Perguntou Ælfwine, quando Círdan recompôs-se.

- A habilidade é conhecida como Ósanwe entre o meu povo, e todos os povos livres podem utilizá-la em certo grau, caso possam identificá-la. Mesmo os Homens possuem certos traços desta habilidade, mas poucos são os que a dominam. O conhecimento da Ósanwe é difícil mesmo para os Elfos. - Replicou Círdan.

Eles permaneceram sentados, quietos no cais, cada um entregue aos seus próprios pensamentos. O Elfo dos cabelos negros permaneceu silencioso desde sua chegada, encarando a brisa marinha, que se fortalecia naquele momento. Certo tempo depois ele esfregou suas mãos fortemente, como se sentisse dores. Novamente Ælfwine falou.

Como puderam os Quendi escapar da escuridão que se abateu sobre Cuiviénen? – Perguntou. – Vocês fugiram de lá, rumo a outras terras? –

Círdan sorriu.

- Nós não fugimos. Não sabíamos para onde ir. Mas então, fomos encontrados por Oromë, e os Valar protegeram-nos até que fomos convocados para o Oeste, e Morgoth, o Senhor Negro, havia sido encarcerado em Mandos. Mas mesmo então, feras caminhavam na escuridão, e muitos dos que se afastavam do caminho que levava ao mar sumiram para nunca mais serem vistos. -

- O quê aconteceu aqueles que ficaram para trás? Será possível que algum enclave Quendi ainda se mantenha em meu mundo? Há muitas histórias de seres mágicos entre meu povo. Será possível que Elfos ainda vivam na Terra Média? – Inquiriu Ælfwine.

- Nós não sabemos o que aconteceu com os que ficaram para trás, apesar de que muitos acabaram reunindo-se posteriormente a nós, no Oeste. - Respondeu Círdan. – Alguns dizem que muitos acabaram sendo tomados por Sauron, a quem os Valar não encontraram quando Utumno foi destruída, e transformaram-se em sementes para a raça maldita dos Orcs. Outros vão além, e dizem que os Orcs foram criados a partir de animais selvagens, a quem Sauron deu a perspicácia de espíritos desconhecidos, e que foram posteriormente cruzados posteriormente com a raça dos Homens. Entre os que não foram corrompidos pela escuridão, diz-se que procuraram eternamente pelo Oeste, e acabaram se cansando das lidas do mundo até fundirem-se a seus hröar, seus corpos, tornando-se apenas fëar, espíritos, que ainda vagam pela Terra Média, como lembranças do passado.

Os Quendi amam a Terra Média, e muitos adiaram a partida. Esta foi, e ainda é a nossa natureza. Pedra e colina, árvore e folha, flor e caule, gota e riacho perfuram-nos até nossos corações, cada qual de forma e intensidade diferente. E amor nós demos em retorno, transmitindo nossa própria essência, dando e recebendo. Abandonar qualquer lugar no qual vivemos por muito tempo é uma tarefa dura, pois lá deixamos parte de nós.

Meras palavras não traduzem a profundidade deste sentimento. Homens não entendem isto; mesmo os Valar não compreendem inteiramente este aspecto de nossa natureza, chamando-nos voluntariosos ou rebeldes , apesar de sermos apenas o quê Eru desejou. Assim, Turgon não pode deixar Gondolin, mesmo sob o conselho de Ulmo, e Celebrimbor não pode abandonar Eregion, mesmo no final.

Eu mesmo quase retornei. - Confidenciou – Durante a longa jornada de Cuiviénen para o Oeste, nos deparamos com um portentoso rio, o Anduin, e acabei arrebatado pela alegria de sua música. Pulei em suas águas, deixando-me flutuar na corrente, e quase vi-me tentado a estabelecer-me em suas margens. Mas uma voz interior disse-me que meu destino era outro, e fez-me continuar a viagem. Assim, eu deixei para trás o Anduin, seguindo rumo a Beleriand.

Os Teleri foram a última casa dos Quendi a chegar àquelas terras e eu estava entre os últimos, mesmo entre os Teleri. Quando cruzei as Montanhas Azuis, entrando em Beleriand, meu Senhor Elwë desapareceu na floresta, e muitos ali permaneceram, procurando por ele, mas continuei a viagem, até as orlas da terra. Na distância pude ver os fogos e lanternas que bruxuleavam nesta ilha, que já navegava para oeste, levando os Vanyar, os Noldor e muitos de meu povo. Lamentei minha sorte, imaginando como iria cruzar o oceano. E então, uma voz veio a mim, e se era uma voz interior ou uma mensagem dos Valar nunca descobri, mas me dizia que ficasse naquela costa e que servisse de refúgio e conselho aos Quendi que me encontrassem, perdidos ou deixados para trás, até que o último de meu povo resolvesse deixar o mundo. Me regozijei então, pois amava o mar, e sua miríade de cores, temperamentos e vozes, e então estabeleci-me a Oeste do mundo, até que o último navio partiu, e nenhum outro pudesse passar a Oeste. –

- Como você sabe que não havia outros a partir? – Ponderou Ælfwine.

- Uma noite, - Círdan respondeu, - quando muitos anos já haviam se passado sem que nenhum dos meus chegasse a minha cidade, um grande vento soprou, e o mar encapelou-se. As cordas que seguravam um de meus barcos arrebentaram e o vento encheu suas brancas velas. Mas o navio não saiu do lugar. E do Oeste veio uma grande águia que dobrou suas asas e desceu para pousar exatamente no timão da embarcação. Ela olhou para mim com seus olhos brilhantes. Então, com um forte grito, alçou vôo ao ar e dirigiu-se novamente a Oeste, onde a súbita tempestade morria. Repentinamente eu soube que a hora havia chegado e todos quantos restavam poderiam finalmente partir. – Círdan fez uma pausa e sorriu para seu companheiro, que permanecia silencioso.

- Então, estes poucos remanescentes, Teleri e Noldor, os atrasados e rebeldes, reuniram seus pertences e embarcaram. Pois havíamos compreendido que nossa hora havia chegado, e todas as tristezas deviam ser esquecidas. E os portos ficaram silenciosos e vazios atrás de nós. -

O vento acariciou seus cabelos enquanto as aves do mar clamavam sobre eles. O navio-cisne batia seu casco contra as fracas ondas no cais, fazendo saltar ao ar milhares de gotículas de água salgada que se espalhavam pelo porto. O sol refletia-se nos cabelos de Círdan, e em seus olhos podia-se ver o mar.

Ælfwine franziu suas sobrancelhas, curioso.

- De que rebeldes você falou anteriormente? – Perguntou. – Eu escutei contos sobre a rebelião dos Noldor, e de seu banimento. Mas os antigos agravos foram esquecidos já que todos partiram depois da Terceira Era. -

- O banimento foi retirado de todos, a não ser de um, - respondeu Círdan, - um deixado para trás, sem que pudesse retornar. Mas na época em que o Último Navio deixou os portos, ele foi perdoado. - Círdan virou-se para seu silencioso amigo e disse. – Este, Ælfwine, é Maglor, filho de Fëanor. -



Capítulo 3



Ælfwine reagiu com surpresa ao anúncio de Círdan, pois diante dele estava um protagonista de atos lendários. Muitos haviam lhe contado histórias do poderoso Fëanor e seus sete filhos, e do mau causado por eles e por seu juramento amaldiçoado. Muitos haviam recitado com amargura as antigas leis, enquanto outras ainda haviam falado com ódio em seus corações. Para Ælfwine, as histórias despertavam pouca simpatia, e considerava que teria sido melhor se as sementes geradas pelas ações de Feanor e seus filhos tivessem morrido antes de germinar. Entretanto, ele olhava atônito para o alto e silencioso Elfo.

- Estou honrado por encontrá-lo Maglor, filho de Fëanor. - Ele disse. - Muitas são as histórias sobre você e sua gente. Confirmo novamente que aqui caminham lendas entre os vivos pois tenho ouvido que sua morte culminou com o fim da Primeira Era do mundo. -

Pela primeira vez Maglor falou, e sua voz soou surpreendentemente bela, como se o cantar de muitos pássaros, a música das águas e os sussurros dos ventos soassem em um só tema. Era um prazer ouvi-lo falar.

- Morto? - Disse Maglor, com um sorriso amargo. - Não, o destino não me presenteou com esta graça. E por mais que eu anseie por isso, não pude encontrar o caminho de meu irmão Maedhros, tirando minha própria vida. Mas como puderam as mansões de Mandos exigir de mim qualquer pena maior do que o conhecimento de que eu livremente me desfiz de um Silmaril, e a consciência das sementes geradas por este fato. -

Enquanto Maglor falava, suas mãos e ombros crispavam-se em tensão, e seu rosto assumia uma expressão amarga.

- Mas sobre estes acontecimentos não quero mais falar. - Disse o Elfo. - Eu retornei do Oeste a procura de cura, não de perdão, embora não tenha recebido nem uma coisa nem outra. Meu coração só encontrará paz se ao menos puder deixar meu passado para trás, esquecido. -

- Venha! - Disse Círdan. - É tarde, e nós ainda queremos ouvir sua história Ælfwine. Retiremo-nos aos meus aposentos e saciemos nosso apetite antes que nossas línguas se cansem de tanto falar. -

A casa de Círdan localizava-se a norte do cais de Avallónë, e suas janelas a leste se abriam sobre o porto. Muitos artesãos e carpinteiros navais se hospedavam ali, e o grande salão de jantar estava lotado. Ælfwine observou que enquanto muitos saudavam Círdan, poucos se dirigiam a Maglor, que em contrapartida, pouco falava aos presentes. Os três prosseguiram a uma mesa coroada por uma grande janela, da qual podiam apreciar as estrelas que começavam a surgir no céu. Ælfwine retomou a história de sua chegada a Tol Eressëa, e Círdan fez-lhe muitas perguntas. No entanto, Maglor permaneceu silencioso, comendo sem nem mesmo olhar para seu prato. Novamente, Ælfwine dirigiu-se a ele e falou.

- Você disse que ansiava pela morte. Me parece que não saciarás seu desejo nesta ilha. Porquê não parte para a Terra Média se anseia realmente encontrar seu destino? -

Maglor ergueu sua fronte até que seus olhos encontrassem os de Ælfwine, e a face do Elfo parecia como uma máscara de ódio, controlado a grande esforço.

- O Atani deveria parar de fazer tantas perguntas aos mais velhos. - Ele murmurou. - Na verdade, no final, não tenho estado totalmente separado de meu povo. Por um momento, no passado, fui bem recebido entre os que vieram depois, mas quando as Eras se passaram os nomes de meu pai e parentes foram menosprezados. Assassinos e criminosos lhes chamaram. Ainda que eu tenha encontrado pouca simpatia aqui, muitos fingiram cortesia. -

Maglor levantou-se abruptamente, puxando a mesa com força, e derrubando tudo sobre ela em grande confusão. E com os dentes travados em ódio disse a Ælfwine.

- Não me incomode mais. Minha história é apenas minha, e escolhi não contá-la a você nem a ninguém. Ninguém acreditaria no quê eu, um filho de Fëanor o Traidor tivesse a dizer. Desejo apenas ser deixado de lado com a paz que possa encontrar comigo mesmo. - E, com estas palavras, sua voz orgulhosa e poderosa quebrou-se no profundo desespero que revelava. Ele sentou-se novamente em sua cadeira, pedindo por uma nova taça de vinho.

- Paz! - Clamou Círdan. - Nos esquecemos do dever que temos para com nosso hóspede, e o vinho fez com que nossas línguas se tornassem livres dos grilhões da cortesia. Ælfwine! Perdoe Maglor por suas palavras; não é você o alvo de seu ódio. -

- Aye, - respondeu Ælfwine, - e em troca imploro que perdoe minha insaciável curiosidade humana, da qual não soube me prevenir. Maglor! Não tive intenção de lhe ofender. Agora, com sua licença, devo me retirar aos meus aposentos. Como uma criança devem os Eldar lembrarem-se de mim. Estou em uma sociedade educada, e deve livrar-me desta barba para ver novamente as ruas de Avallónë. -

Com isso, Ælfwine vasculhou sua bolsa de viagem, procurando em cada bolso, até encontra o presente de Celebrian. Sacando a pequena lamina de dentro da mochila, ele levantou-se e preparou-se para sair. Mas Maglor levantou sua cabeça e, vendo a faca, levantou-se de seu assento, com uma expressão de surpresa. Nas mesas vizinhas, os Elfos viraram-se, para ver Maglor, em toda a sua imponência, e de olhos chamejantes.

- Como você conseguiu esta lâmina? - Rugiu Maglor, avançando em direção ao homem.

- Foi um presente. - Gaguejou Ælfwine enquanto se movia, colocando uma mesa entre ele e o filho de Fëanor.

Novamente Maglor avançou, e com um movimento rápido, tomou a faca das mãos de Ælfwine que, tomado pena fúria, iniciou uma tentativa de retomar seu presente. No entanto, Círdan, silenciosamente, colocou-se entre os dois, olhando com curiosidade para Maglor. Segurando a faca em suas mãos trêmulas, Maglor cambaleou pesadamente para frente, apoiando-se em uma mesa. Seus olhos fecharam-se, e ele pendeu a cabeça como se carregasse um grande peso.

- Onde você conseguiu isso? – Perguntou delicadamente, sem erguer a cabeça.

- Eu já lhe disse, foi um presente! - Gritou Ælfwine. – Agora devolva-me! -

Maglor deixou a faca escorregar por suas mãos nervosas, retornando a sua cadeira. Quando levantou sua cabeça, Ælfwine surpreendeu-se ao ver lágrimas escorrendo lentamente dos orgulhosos olhos do Elfo.

- Quem lhe deu este presente? – Perguntou. – Você sabe o quê é isso?

- Foi dado a mim por Elrond e por sua esposa, Celebrian, quando eu deixei sua casa. Uma brincadeira eu supus; uma lamina afiada para livrar-me de minha barba, embora não tenham me dito isso. Eles sorriram ao me presentear, e Celebrian disse suspeitar que a usaria em breve. Somente depois pude perceber que minha barba mal feita era motivo de divertimento entre os Elfos. -

- Uma brincadeira? – Gemeu Maglor. – Uma brincadeira? Seria de muito mau gosto então. Celebrian é a filha de Galadriel. Dela poderia esperar tal “brincadeira”. Mas de Elrond? Terá ele também começado a me desprezar? Não, Não posso crer! Mas eles lhe deram como um presente! -

- Eu também reconheci esta lamina e sua bainha. - Disse Círdan. – Você a daria a Elrond se desconfiasse que ele a usaria com maus propósitos contra você, Maglor?. Elrond tem uma visão aguçada, e é sábio entre os Eldar. Tal presente não foi feito em tom de brincadeira. -

O construtor naval virou-se para Ælfwine com um leve sorriso nos lábios.

- Diga-me amigo dos elfos, Elrond sabia que você planejava vir a Avallónë? -

- Sim. - Respondeu Ælfwine. – Pássaros do mar vieram brincar sobre sua casa, e eu ouvi seus gritos no ar. Então, resolvi visitar esta cidade e, com pesar, deixei a casa de Elrond e sua esposa. -

Ælfwine franziu o cenho levemente.

- Não posso crer que Elrond e Celebrian tivessem intenção de magoar a qualquer um nesta ilha. E, enquanto viajava pela Estrada, rumo a esta cidade, com as gaivotas seguindo-me como se alimentassem de meus desejos, acabei dando-me conta do objetivo com o qual foi me presenteada esta pequena lâmina. -

Maglor tirou as mãos do rosto e olhou para Ælfwine.

- Esta lamina, - disse, - foi feita em Gondolin, através de antigas artes, por ninguém menos que Eärendil, filho de Tuor e Idril. Dele, foi repassada ao seu filho Elrond. Quando os postos na boca do Sirion foram assaltados por meus irmãos, eu retirei Elrond, e seu irmão, Elros, das ruínas daquele lugar. E ele levava esta lamina, e nada mais.

- Você tomou Elrond como refém? – Perguntou Ælfwine.

- Não! – Gritou Maglor, com os olhos em brasa. Mas então, o fogo de sua fúria retrocedeu novamente. – Você não ouviu? Talvez não tenha entendido... O quê você ouviu sobre o ataque aos portos nas bocas do Sirion? -

- Apenas que você e seus irmãos assaltaram aquele infeliz enclave e mataram sua própria gente em busca do Silmaril que estava em posse de Eärendil e Elwing. - Replicou Ælfwine.

Novamente a face de Maglor contorceu-se em fúria e ele esboçou um gesto como se fosse levantar, mas Círdan calmamente repousou uma mão sobre o ombro do filho de Fëanor, e gradualmente sua raiva aplacou. Ele olhou para baixo, na direção da faca, e com um suspiro, e então pousou a sua própria mão sobre a de Ælfwine.

- Eu não devia ter ficado tão surpreso em lhe você em posse dela. Parece que meu Juramento condena-me sempre ao abismo. E apesar de não ter seguido meus irmãos aos salões de Mandos, acabei condenado a sofrer de arrependimento em meu retorno. -

Ele olhou novamente para a faca sobre a mesa.

- Elrond... - ele suspirou tão levemente que seus companheiros ouviram aquela palavra apenas como uma leve brisa na tarde de Avallónë. Após um momento, ele aprumou-se novamente, como se tomasse uma decisão.

- Por Elrond, a quem eu amo como a um filho, a quem não vejo desde a Guerra da Ira, lhe contarei um pedaço de minha história. Tenho lhe ofendido com minhas palavras e minha raiva, e então poderei reparar parte do que houve aqui, de modo que possa perdoar as palavras deste filho de Fëanor. -

- Você não vê Elrond desde o fim da Primeira Era? Mas ele mora a apenas poucos dias de viagem daqui! – Exclamou Ælfwine.

- Não. – Respondeu Maglor. – Nem na Terra Média, apesar de eu saber onde ele se encontrava, e nem aqui eu o vi. Mesmo sabendo que ele procurou por mim, eu não o encontrei. Eu não podia! Minha vergonha é muito grande. Vergonha pelos feitos de meu pai, de meus irmãos, e meus. Não vivi mais entre os Noldor, a não ser por um breve período em Eregion. Não posso suportar!

Sim! Contarei um pouco de minha história, mas falarei apenas sobre o que eu sei. E não será parecido com o quê você tem ouvido. Apesar de eu ter sido enredado nas teias da malícia de Morgoth, sei mais do que tem sido cantado pelos arautos nas Eras que se passaram.

Meu pai esteve entre os maiores de todos os Elfos que já viveram. Era sutil de pensamento, habilidoso com as mãos, e profundamente abençoado pelas dádivas com as quais Eru o havia presenteado. Sua busca por conhecimentos e sabedoria beneficiou todo o seu povo, e aumentou a glória de Valinor. Mas Fëanor não era escravo de seus conhecimentos, e não acumulava os frutos de suas habilidades, mas os distribuía livremente a todos quantos o procurassem, Elfo ou a gente dos Valar. E, se ficou desgostoso quando meu avô uniu-se a Indis, dos Vanyar, e se não nutria grande amor por seus meio-irmãos, mesmo assim, naquele tempo, ao Meio Dia de Valinor, não acumulava intenções maléficas em seu coração.

Meus irmãos e eu éramos amigos de muitos dos filhos de Finarfin e Fingolfin, você sabia? Maedhros e Fingon, especialmente, mas todos éramos próximos. Fëanor nada fez para evitar isso, e mesmo com seus meio-irmãos era civilizado, apesar de frio, até Morgoth ser liberto de Mandos. Foi um grande erro dos Valar ter permitido que o inimigo vivesse entre nós. Pergunto-me se eles sentiram alguma culpa pelo que ocorreu depois, pois como poderiam os Elfos saírem ilesos da sombra de malícia de Morgoth? É claro que de início todos tiveram grande proveito de sua assistência, e ele parecia amistoso. -

Então Maglor levantou e olhou para o Salão de Círdan, para o mar ondulante, e para as estrelas que começavam a se mostrar no céu. Através das janelas podia-se ouvir uma voz que sustentava uma antiga canção sobre a glória de Valinor. Seus olhos pareciam fixos em alguma visão longínqua, de Eras passadas. Então, ele voltou o olhar para seus companheiros.

- Após Morgoth ser liberto, meu pai passou a ser perturbado por sonhos premonitórios. – Ele disse. – E resolveu que iria mesclar e preservar a luz das duas Árvores, assim elas nunca iriam morrer por completo. Muitos anos dos Valar durou este trabalho, e pela primeira vez Fëanor conheceu o fracasso.

Quantos cristais quebradiços ou opacos ele produziu não saberia dizer; mas foram muitos. Mas, um dia, ele ergueu uma tenda entre as Árvores e, quando a multidão veio para ver o quê ocorria, ele apenas enterrou-se ainda mais no trabalho, cercado por lentes e espelhos enquanto as horas transformavam-se em dias. Então, após conseguir mesclar a luz das Árvores, ele finalmente emergiu da tenda, sua face e mãos enegrecidas e chamuscadas, seus olhos vermelhos e cansados, mas carregava uma caixa negra em seus braços. Dirigiu-se a sua casa, e foi seguido por muitos.

Finalmente, no seu aposento mais profundo, ele abriu a caixa diante de sua família, e pudemos ver três grandes jóias que brilhavam com a luz viva das Árvores. No escuro, elas resplandeciam com uma luminescência grandiosa, em tons de ouro e prata, mas na luz, cintilavam e faiscavam como se arco íris estivessem capturados em seu interior. Assim eram os Silmarils, o maior de todos os seus trabalhos, e o mais amado. -

- Alguns dizem que sua criação contou com um toque de Morgoth. - Disse Ælfwine. – Eu também tenho ouvido que Morgoth era um de seus maiores conselheiros, e que teria sido através de sua ajuda que Fëanor pode alcançar seu objetivo. -

- Falsidades! - Reagiu Maglor. – A blasfêmia de Morgoth, sempre atentando com suas teias de decepções, procurando estabelecer o conflito entre as casas dos Noldor, jogando um contra o outro e disseminando as sementes da inveja e da confusão. Muitos ouvidos escutaram os sussurros maliciosos do Senhor Negro, e como é dito, murmúrios geram murmúrios, e assim tais mentiras se perpetuaram entre o povo de Tirion.

Mas meu pai não teve tratos com Morgoth, apesar de suas palavras terem encontrado caminhos tortuosos até os seus ouvidos, instigadas por outros, e não antes que sua malícia tenha sido revelada. Ninguém desprezava Morgoth mais do que meu pai e o Coração Negro nunca foi bem vindo em nossos aposentos. Na verdade, Fëanor nunca tomou conselhos com Morgoth, ou aceitou sua assistência na criação dos Silmarils ou em qualquer dos seus trabalhos. Meu pai trabalhou sozinho, e quando precisava de alguma assistência contava apenas com seus filhos ou com aqueles em quem confiava, membros de sua Casa. –

Maglor fez uma pausa, e sorriu amargamente antes de continuar.

- Verdade seja dita, se Fëanor recebeu alguma inspiração alheia a sua na criação dos Silmarils, esta veio de alguém a quem ele aprendeu a odiar além de todos os demais, salvo o próprio Morgoth. Na época do festival, pouco tempo depois da libertação de Morgoth, uma grande festa foi oferecida na casa de meu avô. Enquanto a luz das árvores se mesclavam, e os pilares brancos brilhavam através das janelas como se fossem torres de luz, meu pai entrou no grande salão e deparou-se com uma dama alta, vestida em branco, e cuja face parecia ter capturado as luzes de Telperion e Laurelin. Quando se aproximou dela, viu que não se tratava de outra senão Galadriel, filha de Finarfin. Colocando de lado se orgulho, ele a comprimentou com palavras delicadas, e implorou por uma mecha de seu cabelo, o qual definiu como o mais fantástico e maravilhosos de todos os trabalhos criados pelas mãos dos Noldor . Mas ela recusou, dizendo Você pede por uma parte de mim mas não é capaz de doar uma parte de você ao meu pai, seu irmãos ou as suas crianças. Quando a Casa de Fëanor puder sentar em paz e amizade com as Casas de Fingolfin e Finarfin, então poderei lhe dar este presente, mas não antes . Então, ela levantou-se deixando meu pai envergonhado e furioso. Mesmo então, por mais duas vezes ele pediu por uma mecha de seus cabelos, e outras duas vezes ela negou-lhe. Então meu pai disse Nunca mais eu pedirei nada a meus meio-irmãos ou as suas Casas . Assim, talvez movido pela vontade de criar algo que empalidecesse até mesmo o esplendor dos cabelos de Galadriel, ele considerou a luz das Árvores e como aquela maravilha poderia ser embebida em um cristal imperecível. -

- Me parece que seu pai começou a amar acima de todas as coisas os trabalhos de suas mãos. – Disse Ælfwine. – A não ser a você e seus irmãos. Pelo roubo destas jóias foi feito o temeroso juramento sobre o qual tenho ouvido. Não foi o Juramento e a cobiça sobre os Silmarils que ocasionou a rebelião dos Noldor? -

- Eu não duvido que muitos digam isso. - Replicou Maglor. – Mas, novamente, não foi bem assim. Por muito tempo as mentiras de Morgoth encontraram caminhos secretos através das ruas de Tirion, até chegarem a ouvidos propensos a escutá-las. Para a Casa de Fëanor foi dito que seus meio-irmãos planejavam contra ele, mas a Finarfin e Fingolfin, a história dizia que Fëanor desejava reinar entre os Noldor. Outros sussurravam que os Valar haviam aprisionado os Noldor para evitar que eles atingissem seu ápice e governassem as terras além mar.

Finalmente, nós ouvimos sobre a chegada dos Homens, a quem os Valar presenteariam com a Terra Média, como vassalos, negando aos Noldor seu direito aquele lugar. Esta última intriga revoltou Fëanor, que via alguma verdade naquelas palavras. Os Valar, é claro, não negavam a chegada dos Hildor, mas não entendiam a confusão e o ressentimento no coração dos Noldor. Nestes tempos, os conselhos de Finwë foram tomados por tempestades de ódio e acusações, apesar de meu avô tentar manter a paz. E o mal estar entre Fëanor e seus meio-irmãos tornou-se ódio, e nós fomos afastados de nossos primos. Não foram os Silmarils que causaram a rebelião. Foram as mentiras de Morgoth que nos levaram ao abismo.

Então os Noldor conceberam a criação de armas, couraças e escudos, sem dúvida sob a inspiração de Morgoth. As ruas de Tirion tornaram-se militarizadas, e muitos passaram a ostentar os brasões de suas Casas. Assim parecia a Caranthir, Celegorm e Curufin muito prazeroso ostentar seus escudos adornados enquanto diziam a todos quanto pudessem ouvi-los que os Valar haviam nos privado das coisas que fizemos e amamos e nos mantinham como escravos e servos, como os Vanyar, que habitavam com seus mestres.

Muitos murmuravam estas palavras e então, quando finalmente Fingolfin enviou mensageiros a Fëanor, convocando-o a reprimir as ações de seus filhos contra os Valar, Fëanor revoltou-se, rejeitou o meu conselho e o de Maedhros, e tomou a palavra de seus filhos como a sua própria. Pouco depois meu pai quebrou a paz ao sacar da espada contra seu meio-irmão, e nossa Casa foi banida de Tirion, mesmo enquanto os Valar recomeçaram a caça a Morgoth. Assim fomos nós enredados nos planos de Melkor. E aos ouvidos de meu pai as mentiras do Inimigo tornaram-se verdades devido ao seu banimento, e quando Finwë colocou de lado seu reinado, unindo-se a nós no exílio.

Assim, Fëanor prosseguiu com os Conselhos sobre os erros e injustiças que ele considerava terem sido impostos a nossa Casa, e Caranthir, Curufin e Celegorm propuseram abertamente uma rebelião aos ouvidos de meu pai. Se alguém aconselhava o contrário, Caranthir taxava-o como desleal e muitas palavras amargas foram trocadas entre os meus irmãos. Eu e Maedhros não desejávamos deixar Aman, assim como Amrod e Amras. –

- Ainda assim todos se rebelaram, e todos proferiram o Juramento de retomar os Silmarils. – Argumentou Ælfwine. – E estas palavras foram proferidas de coração leve, e sem pressões. -

Maglor gargalhou sem humor e seu rosto tornou-se escuro.

- Sem pressão você disse? De coração leve? Você não compreende a dor e a confusão daqueles tempos. De coração leve? Nós havíamos cedido aos intentos de Morgoth, cuja mente era tão antiga e perspicaz quanto a do próprio Manwë! Nossos destinos haviam sido determinados, não pelos Silmarils, ou por nossa escolha, mas pela vontade do Inimigo Negro. Se os acontecimentos estivessem resumidos apenas ao roubo dos Silmarils, os Noldor não teriam se rebelado, e a vontade de Finwë talvez tivesse prevalecido sobre a de Fëanor até que os Valar dominassem Morgoth.

Mas não foi o caso. Morgoth destruiu as Árvores, lançando Valinor no que parecia uma escuridão infinita. A alegria e contentamento de Aman havia sido destruídas como bolhas de sabão e em seu lugar só havia medo e dúvida. Para muitos parecia que havia pouco a se deixar para trás. –

- Então partissem! Se rebelassem se fosse o caso! - Interrompeu Ælfwine. – Mas por quê o Juramento? -

Ao ouvir estas palavras, lágrimas voltaram a escorrer pelos olhos de Maglor, formando caminhos pela nobre face do Elfo.

- O Juramento! Mesmo agora eu posso ouvi-lo; as palavras de meu pai, então as minhas e as de meus irmãos como tochas flamejantes em Tirion. Por quê, você pergunta? Quando as Árvores foram destruídas, meu pai estava em Valmar, convocado a participar do festival de Manwë. Nossa Casa ficou para trás, apenas para ser conspurcada por escuridão e dúvidas. Então, notícias vieram falando sobre uma sombra. Algum poder, mais escuro que a própria noite, acercara-se de nossos domínios fazendo com que todos fugissem aterrorizados. Mas meu avô permanecera, fazendo com que meus irmãos e eu protegêssemos nosso povo. Irei buscar os Silmarils e segui-los! Ele disse. Mas não nos seguiu. Sozinho, permaneceu de fronte as nossas portas, espada em punho, para enfrentar Morgoth e o poder negro, que mais tarde descobrimos tratar-se de Ungoliant. Sozinho ele permaneceu e sozinho ele caiu, terrivelmente queimado por Morgoth e coberto por inúmeros ferimentos. E suas mãos estavam atadas por teias! Ele foi morto sem chance de defesas, sua espada jazia quebrada no solo. E nós havíamos fugido, deixando-o para trás, sozinho!

Talvez Caranthir, Celegorm e Curufin tivessem mantido o Juramento apenas pelo roubo dos Silmarils. Mas Maedhros e eu? Não. Nós proferimos o Juramento enlouquecidos pela dor e pelo ódio, desejosos de perseguir os assassinos de Finwë, e destruidores da luz de Valinor. Nós não poupamos nossas palavras, e repetimos o Juramento de nosso pai tendo em mente apenas vingarmo-nos de Morgoth o Amaldiçoado. Nós falamos sem pensar, nossas mentes cobertas pela dor. Nós não estávamos ao lado de nosso avô, e ele morreu fazendo o que nós tivemos medo de fazer! –

- Se vocês tivessem ficado para combater ao lado de Finwë, algo teria mudado? – Perguntou Círdan gentilmente. – Salvo talvez que você e seus irmãos teriam perecido também. -

- E talvez o mundo teria ganho se isso ocorresse! Se eu tivesse escapado àquele cruel destino apenas para viver até o dia de proferir o Juramento, muito mau teria sido evitado. – Ponderou Maglor, e levantou uma taça de vinho, esvaziando-a de um só gole. Novamente ele passou a manga de sua túnica por sobre os olhos. -

Então nos rebelamos. – Prosseguiu. – E mesmo durante os tumultos, as Casas dos Noldor não entraram em concordância, tão turbulentos estavam os sentimentos. Partimos de Tirion em três hostes, com Fëanor a frente. Deixamos Tirion para trás sem sabermos nem mesmo em que direção seguir. Então, após muito debate, resolvemos prosseguir até Alqualondë, e persuadir os Teleri a juntarem-se a nós ou ao menos permitirem-nos que usássemos seus navios para que pudéssemos cruzar o oceano. Mas os Teleri não desejavam deixar Aman, e nos negaram seus barcos, talvez pensando que reconsideraríamos nossa decisão. Mas, devido ao Juramento, havíamos sido banidos e não deixaríamos que ninguém entro nós reconsiderasse. Tão desesperados estávamos, tão determinados, que simplesmente decidimos avançar sobre as docas para tomarmos os barcos por nós mesmos.

Meu pai deixou que o sangue falasse mais alto em suas veias e, com meus irmãos, caiu sobre a cidade tentando capturar os navios. Mas um alarma soou e muitos entre os Teleri correram para as docas para encontrar-nos de posse de seus navios. Apesar de serem muitos, em sua maioria estavam armados apenas com facas, ganchos e arcos. Nós tentamos recuar mas nos vimos bloqueados pela multidão que havia nos encurralado no cais. A princípio, nós apenas entramos em confronto corporal com os Teleri, tentando achar uma saída dali. Então, um dos Teleri adiantou-se e, com um grito, jogou sua faca contra meu pai. Celegorm avançou com sua espada em punho, matando-o. Por um longo momento tudo ficou quieto, mas então uma grande luta eclodiu, e muitos foram mortos de ambos os lados antes que pudéssemos abrir caminho por entre a turba.

De minha parte, usei apenas o escudo, e as bordas de minha espada, procurando defender-me dos ataques. Maedhros agiu da mesma forma, tentando evitar um derramamento de sangue ainda maior. Mas, ouvindo o barulho dos gritos na cidade, uma grande parte de nossa hoste correu em nosso socorro, e encontrando os Teleri armados reiniciaram, sob as ordens de Caranthir, um novo ataque as docas. Eu implorei a meu pai que interviesse, mas ele empurrou-me de lado gritando que os Valar haviam subornado os Teleri, instigando-os. Mesmo então, com as ruas estreitas, fomos forçados a um novo recuo. –

Maglor pareceu estar novamente a beira das lágrimas, e sua voz soava entrecortada enquanto falava.

- Neste momento a hoste de Fingolfin chegou e, deparando-se com nossa Casa, enredada em um violento combate, avançou com espadas em punho. Maedhros corria por entre os Noldor, urgindo-os a baixar as armas, mas seus apelos perdiam-se por entre o clamor da luta. Vi-me novamente nas docas, coberto pelo sangue de nossa gente, Noldor e Teleri. E então, contemplei uma estranha visão. Pois Galadriel estava lá, e lutava com os Teleri, contra seu povo. Com uma voz clara ela gritou para Fëanor, Que loucura o dominou para que avances contra a sua gente, assassinando-os a sangue frio? Pare, ou terás em mim e em todos os que aqui presenciam estes crimes, inimigos eterno. Esta será a recompensa de seus atos! Mas meu pai gargalhou, pois já tinha em sua posse os navios. Para finalizar minha agonia, acabei sendo atingido nas costas. Minha ultima visão foram os soldados Noldor empurrando os Teleri para a morte, lançando-os de cima do alto penhasco que se erguia sobre as docas. -

Por entre lágrimas, Maglor virou-se e disse:

- Perdoe-me Círdan, pois o sangue de seus parentes mancha meu passado. – E enterrou o rosto entre suas mãos, soluçando copiosamente. -

Círdan inclinou-se sobre o Elfo, segurando suas mãos trêmulas entre as suas. Levantou-lhe a face e beijou sua testa ternamente.

- Eu já sabia sobre a Matança entre as Famílias muito antes de nosso primeiro encontro, - ele disse – e ainda que você nunca tivesse me contado a sua história, em algum momento neguei nossa amizade? Pelo seu nome, tens sido estigmatizado como “o filho de Fëanor”, e marcado pelos feitos de seus parentes, ainda que seu nome mesmo não seja marcado pelo mau. Pelos seus olhos eu vejo que o que falas é verdade, mas mesmo que não fosse, não foi você perdoado, e trazido do leste? Coloque de lado suas culpas Maglor, pois não as merece. -

- Não as mereço? E o que me diz da segunda matança entre as famílias? – Ele clamou. – Quando Beren recuperou o Silmaril da Coroa de Ferro nós não celebramos seu feito como um ato digno de honra. Entre meus irmãos prevaleceu a decisão de enviar um mensageiro a Thingol, reclamando a Jóia. E então, Maedhros e eu reprimimos por um tempo a idéia de um levante contra Thingol e sua rainha. Mas, quando o Rei foi morto, e o Silmaril passou para as mãos de Lúthien para Dior o Justo, não pudemos mais conter Celegorm, Caranthir e Curufin. A Casa de Fëanor assaltou Doriath e destruiu o reino em nome do Juramento. Embora Maedhros e eu tenhamos permanecido para trás com a maioria dos homens de nossas Casas, ainda assim nada fizemos para evitar que nossos irmãos derramassem novamente o sangue dos parentes. Devido a isso fomos ainda chamados desleais por nossos irmãos, e jogados na lama pois eles havias assassinado Dior e seu povo. -

- Ainda assim não derramaste o sangue dos seus, assim como não quebrastes o seu Juramento. - Replicou Círdan. O antigo Elfo fixou seus olhos em Maglor. – Não poderias conter seus irmãos em nenhum de seus atos. -

- Não poderia? - Suspirou Maglor. Seus olhos refletindo a luz vermelha dos candeeiros do grande salão e do fogo que ardia em seu coração. - O Silmaril escapou a ruína de Doriath nas mãos de Elwing, e retornou as bocas do Sirion. Celegorm, Caranthir e Curufin poderiam ter seguido com o restante de nosso exército, mas novamente Maedhros e eu nos recusamos. -

- Mas mesmo assim vocês atacaram os Portos, se ouvi corretamente. - Disse Ælfwine. – E também é dito que parte de seu povo se rebelou e decidiu lutar entre os refugiados que ali se encontravam. -

- Uma meia verdade finalmente. - Respondeu Maglor. – Por longo tempo discutimos nós, os cinco irmãos sobreviventes, mas Maedhros e eu mantivemo-nos firmes, e Caranthir chamou-nos covardes. E quando com o passar do tempo parecia que nossa opinião prevaleceria, então, novamente, o debate aflorou, e palavras amargas foram trocadas antes que todos retornassem aos seus acampamentos. Mas, dias depois, uma mensagem de Caranthir chegou, e dizia em poucas palavras Nós vamos recuperar o Silmaril e cumprir nosso Juramento. Se vocês não são covardes sigam-nos e regozijem-se com nossa vitória. Mas, se recusarem e desonrarem nossa Casa não estarão mais entre nossos parentes. Lembramos que são filhos de Fëanor, o maior entre os Noldor. Se a sua memória e a de Finwë significam algo para vocês, então sigam-nos´. -

Os olhos de Maglor turvaram-se como se viajassem no tempo, e sua voz soava como se viesse de Eras passadas.

- Nós seguimos. Juntamo-nos aos membros de nossa Casa. Quando alcançamos os Portos a batalha já havia começado, e refugiados seguiam pelas estradas como mendigos. A retaguarda do exército de nossos irmãos observou nossa aproximação, e soaram trompas. Eu pude ouvir por sobre sobre o clamor da luta os gritos que Elwing, que em um ato desesperado, lançou-se no mar levando o Silmaril em seu seio. Fracasso! E então avancei com o estandarte de Fëanor e todos abriram caminhos por entre o que restava da batalha. E avançamos para a cidade, abrindo caminho pela retaguarda dos exércitos de nossos irmãos. Maedhros e eu não ficamos pesarosos quando descobrimos que eles haviam caído na batalha pois vimos isso como a sua libertação frente aos desígnios de Morgoth.

Então, tomei Elrond e seu irmão, Elros, como filhos adotivos pois ninguém sabia que eram filhos de Eärendil e Elwing. Eu os amei como a meus filhos, e eles, em troca, me deram seu amor, e cresceram sob meus cuidados. –

- Você os resgatou, e aos remanescentes de seu povo! – Clamou Ælfwine. – Mas porque se recusas a ver Elrond ou aos Noldor? -

Maglor caiu em silêncio por um momento, mas Círdan olhou para o amigo com um sorriso amargo. Então, levantando outro copo de vinho, Maglor disse.

- Grande foi a Guerra da Ira. E para minha grande alegria, após muitos anos de sofrimentos e batalhas, Morgoth fora derrotado. Mas nosso Juramento acordara novamente para a recuperação dos Silmarils. Enquanto a hoste preparava-se para partir rumo ao Oeste, Maedhros e eu debatemos. Ele pretendia encontrar os Silmarils, enquanto eu queria apenas cruzar o mar a procura do julgamento de Manwë, mesmo que isso custasse a minha promessa. Maedhros estava decidido e resolveu ir em busca de seu destino com ou sem a minha ajuda.

Temendo por sua vida, tentei detê-lo. Segui-o enquanto se aproximava do campo. Mas havia luz e guardas, e Maedhros engatinhou até o local onde os Silmarils estavam guardados. Ele ergueu-se rapidamente atacando os guardas, e matou dois na força de sua loucura. Mas, outros dois reagiram e no final eu senti que não poderia ficar ali assistindo a sua morte. Sacando minha espada eu derrubei um enquanto ele derrotava o último guardião, e entrava na tenda para se apoderar da caixa na qual repousavam os Silmarils. Assim cumpri meu juramento, e ao mesmo tempo matei um membro de meu povo. Chorei amargamente enquanto um alarme soava, e pus-me de pé junto a Maedhros desejando a morte. Mas Eönwë não permitiu que fossemos mortos, e fugimos com dois Silmarils.

A uma distancia segura do acampamento, as margens do oceano, nós paramos. O solo sob nossos pés estava quebrado, e fios de fumaça subiam das fendas, pois Beleriand estava morrendo, e uma larga porção de suas terras encontravam-se agora sob as ondas. Maedhros abriu a caixa e as Jóias brilharam com a luz das duas Árvores. Em nós pegamos cada um uma jóia em nossas mãos. –

A voz de Maglor tremeu novamente e uma sombra de loucura brilhou em seus olhos.

- Já esteve diante de um Silmaril, Ælfwine? – Ele gemeu. E abriu sua mão direita, com a palma virada para cima. Gravada na pele, como se tivesse sido marcada a ferro, estava a impressão de uma jóia oval. Maglor fechou seus olhos e disse. - Elas queimaram! Como as chamas do sol, elas queimaram nossas mãos, pois haviam sido feitas em Valinor, e nós, pelos nossos feitos, havíamos perdido o direito de possuí-las! Enquanto eu gritava em agonia, Maedhros cambaleou para a frente, na direção de uma das fendas fumegantes e, com um Silmarill nas mãos, deixou-se cair em busca de uma morte aparadora. Enquanto labaredas eram cuspidas das fendas a minha volta, a pedra queimava minha mão, e eu lancei-a o mais longe que pude, no mar.

Enlouquecido pela dor e pelo sofrimento, fugi as cegas, e por longo tempo evitei a companhia de qualquer criatura viva. A Elrond não poderia voltar, pois minha vergonha era e ainda é muito grande. A dor causada pelo Silmaril despertou em minha mente a memória de todos os maus feitos nascidos em nome do nosso Juramento. Apesar de que eu tenha eventualmente retomado meu senso e minha necessidade por companhia, não pude, e não posso ainda encará-lo, assim como a qualquer um a quem conheci naqueles tempos. –

Círdan levantou-se de seu assento e pos as mãos sobre os ombros de Maglor.

- Assim, agora Maglor, você contou-nos, após tanto tempo, a sua história, e posso dizer-lhe que aguardei muito tempo para ouvi-la. Irás continuar a esconder-se no passado? Você tem habitado nesta cidade por muito tempo, e jamais cruzou suas portas. Você, que temeu o julgamento, julgou a si mesmo e condenou-se a um banimento voluntário. Bem, eu não concordo. Acho que o que está feito, esta feito. Você fez o que lhe era possível para se esquivar da malícia. Seja lá o que você tenha feito, foi perdoado, pois se não fosse assim não teria lhe sido permitido retornar ao Oeste. Você ainda nega a autoridade dos Valar? -



Capítulo 4



Maglor contraiu-se perante o toque de Círdan, como se a mão sobre os seus ombros estivesse tomada por brasas incandescentes. Ele buscou novamente pela jarra sobre a mesa, servindo-se cambaleante de mais uma taça de vinho. Ignorando as gotas do líquido, que escorriam por suas mãos. Ele ergueu a taça e sorveu avidamente seu conteúdo.

- O que é isso que me dizes Círdan? - Perguntou. - Meu pai e meus irmãos sentam-se silenciosos nas Mansões de Mandos. Eles não foram libertos, nem mesmo Maedhros! Este é o julgamento dos Valar! Que somos culpados, todos nós. Culpados além de qualquer redenção. Culpados por guiarmos nosso povo para a rebelião e o morticínio. Nossos reinos no exílio foram destruídos e nossas terras, sobre as quais nossas casas estavam fundeadas, afundaram e ruíram sob o peso das ondas, como tivessem sido limpas dos pecados dos que ali habitaram. Quem sou eu para negar este julgamento? -

Lágrimas desciam pelos seus olhos, deixando estradas úmidas em seu rosto. Maglor apertou os punhos, pesaroso e ferido, enquanto encarava o olhar de Círdan. Novamente procurou por sua taça, mas suas mãos estavam trêmulas, e o vinho derramou-se pela mesa. O copo tombou e Maglor ergueu suas mãos manchadas com o escarlate da bebida. - Sangue - Ele murmurou enquanto tentava se levantar. Mas suas pernas falharam e desabou sob a mesa, como se tivesse sido atingido por um golpe.

Círdan observou o sonolento Elfo, seus olhos repletos de piedade. Então, convocou dois de seus marinheiros e ordenou que levassem Maglor aos seus aposentos. Ele observou enquanto os homens erguiam gentilmente o corpo cambaleante, e então sentou-se ao lado de Ælfwine.

- Tão nobre Elfo reduzido a isso. - Disse pesaroso. - Vivendo aqui como um ermitão, falando apenas com poucos dos meus homens. Por muito tempo temos convivido aqui. Sua aflição e vergonha estão impressas em sua alma, e ele não pode livrar-se desta sina. Ælfwine, desde que eu o conheço ele jamais contou sua história. Mas mesmo agora, que finalmente tomou coragem para falar, temo que não consiga enxergar a própria cura. -

- Sua história é triste além do que possamos imaginar. - Disse Ælfwine. - Ainda que difira das histórias que ouvi na casa de Pengolod. Ele disse a verdade? -

O fogo que crepitava na grande lareira refletiu-se nos olhos cinzentos de Círdan, pousados sobre o homem que sentava-se ao seu lado.

- Muitos dos que contam histórias do passado relatam apenas o que ouviram de outros. Mesmo Pengolod não esteve presente durante a maioria destes eventos. Assim, eu presenciei quando Celegorm, Caranthir e Curufin caíram sobre Doriath. Eram tempos confusos, e palavras passavam de boca em boca, modificando-se enquanto o tempo corria. Maglor disse a verdade - Sustentou o Elfo. - Não vejo engodo em suas palavras, apenas dor. Ele não poderia mentir para mim. Nos conhecemos há muito tempo. -

- Como Maglor veio habitar com você nos Portos Cinzentos da Terra Média? - Perguntou Ælfwine. -

- Ele disse-me que havia vagado por muito tempo, sozinho, coberto de sofrimento, e retornou após Maedhros ter-se matado. - Respondeu Círdan. - Naqueles dias ele pouco falava, a não ser para dizer que jamais voltaria as costas salgadas, lamentando-se de saudades pelo Oeste, que dizia ter perdido para sempre. Aos poucos, acalmou-se, e em segredo habitou entre os Silvan, nas florestas aos pés das Ered Luin. Chamava a si mesmo Randir, e instalou-se sob as árvores daquelas terras que eram as únicas sobreviventes de Beleriand.

Quando Sauron ergueu-se, durante a Segunda Era, e assolou Eregion com seus imundos exércitos de orcs, Maglor enfureceu-se. Apesar do ataque não ter atingido aos Noldor de Lindon, muitos a quem ele amava encontravam-se estabelecidos em Ost-in-Edhil, e Celebrimbor era seu sobrinho. Então, reuniu tantos Elfos quantos lhe foi possível, e ergueu-se contra o legado de Morgoth com uma pequena força, cruzando as montanhas para ajudar Eregion.

Randir e suas forças lutaram bravamente, deixando para trás a tranqüilidade de suas casas, viajando muitas léguas até Eriador. Mesmo assim, no final, não poderiam fazer frente aos exércitos de Sauron. Os cavaleiros de Randir adentraram as ruas de Ost-in-Edhil em uma manhã estranhamente escura. Os Elfos das montanhas olharam a cidade, maravilhados. Fora construída sobre uma colina verdejante, em memória da antiga Tírion. A cidade era cercada por muralhas brancas, e suas avenidas eram pavimentadas com grande blocos de pedras cinzentas, emolduradas por árvores e canteiros de flores. Suas forjas eram instaladas em robustas construções emolduradas por domos prateados que ostentavam compridas chaminés que nunca deixavam de expelir fumaça branca. Os edifícios de trabalho eram agrupados juntos, na parte norte da cidade, mas em seu centro, e nas proximidades da murada oeste, elevavam-se grandes torres, cada qual coroada por belos cristais representando a marca da Casa que a possuía. E o símbolo da Casa de Celebrimdor era uma citrina dourada, sobre a qual erguia-se a Estrela de Fëanor.

Os rumores sobre a dimensão dos exércitos de Sauron haviam acabado de chegar a sala do conselho de Celebrimdor, e os preparativos para a guerra já estavam em andamento. Mensageiros haviam chegado de Lindon e Lorinand, com promessas de auxílio. Mas ainda assim os Capitães de Eregion estavam receosos. Enquanto debatiam a melhor estratégia, Randir surgiu, em trajes empoeirados pela estrada, e com o rosto coberto por um capuz. Ele tentou convencê-los a recuar, talvez para as mansões dos Anões, seus aliados, ou ao menor enviar as crianças e as mães, ao norte ou ao leste.

Um dos Capitães ridicularizou-o, ordenando que recuasse para as árvores do norte se não tivesse estômago para a luta. ´Não deixaremos para trás o quê construímos aqui´, disseram.

Então, Randir desfez-se de seu disfarce, revelando seus cabelos soltos e avermelhados, e sua face tomada pela raiva. ´Ambarusso´, sussurrou um dos conselheiros, e muitos reconheceram o visitante. ´Não ame em demasia as coisas feitas por suas mãos´ advertiu Maglor. ´Isso aprendi uma Era atrás, no Norte. Uma lição aprendida duramente sob as névoas de falsidade do Senhor Negro´. E novamente ele suplicou aos Capitães para que enviassem os jovens e as mulheres, acompanhadas por poucos soldados, e Celebrimbor curvou-se a sabedoria de seu tio e enviou a salvação muitos sob a guarda do novamente disfarçado Randir. Mau partiram para norte, e as forças de Sauron caíram sobre a cidade. -

Círdan suspirou pesadamente.

- Somente mais tarde vieram as notícias de que Elrond e Celeborn não haviam chegado a tempo, e que Eregion caíra. Celebrimbor foi cruelmente torturado e assassinado. Seu corpo foi empalado e ostentado como estandarte entre os exércitos de Sauron. Poucos escaparam a queda da cidade, salvo os que seguiram com Randir e seu povo.

O bando de Randir não se demorou em Lindon após entregar as mulheres e crianças, mas voltou a Eriador, para atormentar as forças de Sauron onde quer que as encontrassem. Eu me lembro de histórias de Randir, histórias que falavam dos ataques desesperados e violentos que ele liderava contra acampamentos de orcs, para em seguida desaparecer sem deixar rastros. De fato, foi dito que eles se arrastaram rumo ao acampamento das forças de Sauron e de lá roubaram o corpo de Celebrimbor, deixando em seu lugar o corpo de um Capitão orc, coberto por uma gaze branca. Não foi pequena a sua participação na longa guerra contra Sauron, e nos últimos momentos daquela Era havia se tornado um grande Capitão, comandante de um robusto grupo de Elfos Sindar na Batalha de Dagorlad.

Quando as linhas de Oropher foram rompidas pelas forças de Sauron, onde no que depois ficou conhecido como Pântano dos Mortos, o Inimigo assaltou a hoste de Gil-Galad, e o Rei com muita dificuldade, pode conter o ataque. Mas Randir e suas forças movimentaram-se pelo flanco dos exércitos do Senhor Negro, dividindo-os. Cercada, a soldadesca de Sauron acabou passada a fio de espada, até o último orc. Mas mesmo após a batalha, Randir não encontrou-se ou aceitou os agradecimentos de Gil-Galad ou de seu arauto, Elrond. Após a guerra, desapareceu novamente.

Durante a Terceira Era, Randir novamente perambulou por Eriador, ajudando as forças remanescentes de Arnor em sua guerra contra Angmar. Mas quando Elrond e Glorfindel vieram em assistência aos Dúnedain, e finalmente os exércitos do Rei Bruxo foram derrotados, ele desapareceu. É dito que mais tarde, ainda na Terceira Era, Randir novamente combateu contra os servos de Sauron, mas após a Guerra do Anel, retornou aos Portos. -

Círdan suspirou novamente e levantou-se para olhar pela grande janela que emoldurava o oceano abaixo. As estrelas refletiam-se em seus cabelos acinzentados enquanto ele respirava profundamente o ar salgado da costa. Então, dirigiu-se novamente a Ælfwine, e falou.

- Uma noite, - ele disse, - eu caminhava por entre as árvores de um bosque próximo as muralhas dos Portos quando ouvi uma canção de incomensurável beleza. E fui atraído até Randir, que entoava uma melodia de Valinor na língua dos Noldor. Sua voz era doce como o mel e eu, que conhecera Daeron, nunca havia escutado tal beleza. Então compreendi, e aproximei-me chamando-o por seu verdadeiro nome. De início, Maglor não falou, mas eu disse ´Como Randir você é meu amigo e isso não se modificará com seu nome´. Com isso ele respondeu, ´Mas meu nome é uma maldição para mim e para todos a quantos amo´. Mas eu disse, ´Seu nome é sua herança, use ele ou não. Mesmo Turin aprendeu esta lição´. Desta forma tornamo-nos amigos e ele não ostentou mais o nome de Randir, mas mesmo assim nunca revelou a mim as coisas que disse a você esta noite. -

Ælfwine abriu a boca para falar novamente, mas Círdan ergueu a mão com um sorriso, interrompendo-o.

- É tarde, e hora de descanso. Você é meu convidado e podemos falar deste e de outros assuntos outra hora. Maglor jaz em sua cama, e você deve descansar também. Como dizemos aqui, “a manhã pode trazer novas notícias”. E agora, a manhã não esta longe. -



Mas, ao amanhecer, Ælfwine não viu Círdan ou Maglor. Nenhum dos dois apareceu nos dias seguintes, e Ælfwine gastou seu tempo explorando a cidade élfica, e conversando com sua gente. Em um belo pátio ajardinado, abaixo da Mindon Anduliéva, descobriu uma elevação verde sobre a qual crescia uma bela árvore branca. Suas folhas tinham a forma de pontas de lanças, e pareciam emitir um brilho prateado, enquanto suas raízes eram lisas e claras. Antiga lhe pareceu, de modos que nem mesmo conseguia abraçar-lhe o tronco. Mas ainda assim lhe pareceu jovem, como um broto que rebenta na primavera. Por muito tempo esteve Ælfwine sob seus galhos, escutando a música que o vento criava entre suas folhas, como um cálido suspiro que parecia dizer-lhe coisas de um passado remoto, e de um futuro ainda porvir. A cada dia, Ælfwine retornava a árvore para ouvir a esta música, e sentir o aroma de seu ar verde, mas na maioria do tempo apenas sentava-se sob a sua sombra e divagava olhando os raios do sol criando formas nas folhas.

Foi sob a árvore que Círdan surgiu novamente em uma tarde. O marinheiro caminhou em sua direção com um sorriso, e disse:

- Não me surpreendo em encontrarte aqui. Eu mesmo venho as vezes para contemplar, mesmo que apenas em minha visão mental, aquilo que nunca vi durante minha vida. -

- E do que se trata? - Perguntou Ælfwine, ainda sonolento devido ao calor do verão, e deleitado pela dança da luz entre as folhas.

- Da Árvore Prateada, é claro. Uma das Duas Árvores de Valinor. - Disse Círdan. - Você não sabe? Descansas sob Celeborn, uma muda de Telperion, um presente antigo dos Valar. De todas as árvores do mundo é a que mais lembra a original, é o que se diz. - Suas sobrancelhas eriçaram-se, e sua voz tornou-se pensativa enquanto ele olhava para o leste. - Esta pode ser a última de sua linhagem a leste de Pelennor, talvez em toda Arda. -

Silenciosamente, os dois caminharam afastando-se da árvore, embora Ælfwine tenha se sentido estranhamente relutante em fazê-lo, como se apenas sob as suas sombras ele pudesse se sentir totalmente satisfeito e livre de todas as mazelas. Mas este sentimento se foi assim que atravessaram as ruas de Avallónë e aproximaram-se do porto. O vento mudou de direção, soprando do oeste. Olhando para cima, Ælfwine pode ver novamente os pássaros marinhos amontoando-se sobre ele, subindo e mergulhando por entre as casas com seus gritos ásperos. Círdan olhou para cima com um sorriso, enquanto as gaivotas dirigiam-se para o cais onde uma figura solitária estendia-se de pé.

Maglor olhou surpreso, e então levantou-se para cumprimentar Círdan e Ælfwine.

- Devo me desculpar por meu comportamento. - Ele disse. – Temo que não tenha me comportado de forma honrada, e nem dado ao nosso hóspede o respeito que merecia. -

- Não tens porque se desculpar. - Respondeu Círdan. – Por embebedar-se após um grande esforço para revelar-nos o que esteve por tanto tempo oculto? Nah, desculpas não são necessárias. Por Eras de longo e doloroso silêncio? Sua tristeza é apenas sua, e se escolheres cultivá-la, não é assunto de minha alçada. Mas espere! Há ainda uma rudeza pela qual você ainda não foi perdoado. Ainda não respondeste minhas indagações. -

- Perdoe-me? - Replicou Maglor. – Que indagações seriam estas? Minha memória sobre aquela noite é pouco clara. -

- Duas indagações eu lhe fiz. - Disse Círdan carrancudo. – Primeiro, perguntei-lhe se continuarias escondendo-se no passado. Pois é isso que tens feito por Eras, e como és meu amigo pesa-me presenciar sua dor. Por ultimo, mas não menos importante, perguntei-lhe se mesmo agora você contraria a vontade dos Valar. Pois tens julgado a si mesmo, ignorando que foram eles que o julgaram permitindo sua entrada nas Terras Imortais. Vê? Pareces julgar-se culpado enquanto, ao que parece, os próprios Valar já consideraram o seu arrependimento. E a estas duas indagações, pelas quais não obtive respostas, adiciono agora uma terceira: Maglor, o que farás agora? Finalmente contaste sua história, por tanto tempo guardada. Nenhum segredo permanece. O que farás agora? -

O rosto de Maglor endureceu-se, como se ele tivesse saboreado aquelas perguntas e sentido um gosto amargo em sua boca.

- Sugeres que eu embarque agora mesmo e parta para Valinor em busca do julgamento e do perdão dos Valar? - Disse.

- Não hoje. - Gracejou Círdan. – Apesar de ser uma escolha sua. No entanto, tens aceito a hospitalidade deles por Eras. Talvez seja hora de agradar aos seus anfitriões. Mas não sugiro tal viagem neste momento. Talvez em breve. Ælfwine foi convidado a celebrar a chegada do Verão, assim como eu. Irá nos acompanhar? Deixará Avallónë finalmente, ao menos por uma noite, para ver o que se esconde atrás de suas muradas? -

Maglor permaneceu estático diante de Círdan, sem compreender. Então, sua face tornou-se pálida.

- Quer que eu viaje até a Casa de Elrond? – Perguntou incrédulo. – Para encarar a quem eu privei de sua própria gente, apenas para abandona-lo com o intuito de matar um guarda sem motivo melhor do que roubar um Silmaril, pelo qual eu nem ao menos tinha direito? -

- Sim. Elrond, a quem você amou, e que o amou também. E se você realmente o abandonou, não lhe deve alguma explicação? -

- Mas que explicação poderia eu lhe dar? – Desesperou-se Maglor.

- Podes começar pelo que falou a mim. - Respondeu Ælfwine secamente. – Pois apesar de não ser a única história que você poderia contar é, certamente, a única que você precisa contar. Além disso, porquê gastar sua saliva falando com um homem, se é a Elrond que deve explicações. -

- Para mim isso parece destinado a ocorrer, se não profetizado. - Emendou Círdan. – Por qual outro motivo teria Elrond presenteado Ælfwine com a pequena faca, a não ser para despertar a sua atenção? Por isso fiz minha primeira e terceira perguntas. Irás abandonar seu exílio, e juntar-se a nós nesta viagem a Casa de Elrond? Partiremos em dois dias. Quanto a minha Segunda pergunta, deixo para que responda a você mesmo. – E com isso Círdan virou-se e afastou-se do cais.

Ælfwine fez o mesmo, seguindo o orgulhoso e sábio Elfo.



Os três viajantes cruzaram a pé os portões de Avallónë ("Pois Maglor nunca viu as belezas da ilha, e eu não quero apressá-lo sobre um cavalo", argumentara Círdan), acompanhados apenas pelos pássaros do mar, que trinavam estridentemente sobre suas cabeças. Da mesma forma que haviam seguido Ælfwine em sua jornada rumo a cidade, também agora acompanhavam o trio enquanto caminhavam para oeste. Carregavam pequenas mochilas e trajavam capas acinzentadas, presas ao pescoço por broches de aquamarina, o símbolo da guilda de marinheiros de Círdan.

A estrada era boa, e o grupo viajou em paz. Algumas vezes, foram ultrapassados por elfos montados, alguns finamente trajados, que seguiam aparentemente a mesma direção. Com saudações eles passavam, velozes, deixando para trás apenas os sons dos guizos dos cavalos. Em uma ocasião, uma carruagem surgiu pela Estrada e um Elfo convidou-os a subir. Mas Círdan respondeu com humor: “Vá em frente, amigo! Não estamos com pressa, principalmente por viajarmos em tão boa companhia!", disse apontando para cima, para os pássaros que os acompanhavam em círculos. O Elfo sorriu e atiçou suas rédeas, seguindo caminho.

Apesar da estrada ser mais longa do que eles esperavam, e apesar de terem parado por mais tempo do que planejavam para apreciar as belezas do caminho, chegaram às terras de Elrond às portas do verão. Pavilhões haviam sido erguidos nos campos, e as tendas multicores se espalhavam por todos os lados, como se fosse o acampamento de um grande exército. Foram recebidos por Gildir, um servo da Casa, que providenciou banho e vinho, enquanto outros procuravam um bom lugar para a tenda. Mas, quando perguntaram sobre Elrond, a face de Gildir tornou-se triste.

- O Senhor e a Senhora foram convocados para negócios urgentes. Não sabemos ao menos quando retornarão, nem mesmo se isso ocorrerá a tempo de participarem das festividades. -

Um suspiro surgiu do capuz que escondia a face de Maglor. Se foi de cansaço ou alívio, seus companheiros não puderam distinguir. Ainda que Maglor não tirasse seu capuz, caminhou entre os acampados e seus pavilhões. Mas, enquanto muitos cumprimentavam Círdan, ou encaravam com curiosidade Ælfwine, ninguém dirigiu a palavra ao filho de Feanor.

- Não mostrará sua face? - Provocou Círdan. – Vais continuar como um ermitão? -

- Mostrarei minha face quando encontrar Elrond. - Replicou Maglor. – Mas vejo aqui muitos servos das Casas de Finarfin e Fingolfin. Apesar de não temê-los, devo evitar conflitos no que parece ser um dia de paz e alegria. – Com isso, Círdan desenrolou de sua mochila uma bela capa azul celeste que, com uma rápida sacudidela, para o espanto de Ælfwine, rapidamente transformou-se em uma pequena tenda onde os três entraram.

O sol se pôs e as estrelas espalharam-se pelo céu claro, enquanto canções se elevavam por todo o acampamento. Enquanto a noite se adensava, o vinho começou a ser servido, as fogueiras acesas, e as cozinhas de campanha armadas. No entanto, a celebração teria início apenas após a meia noite, com o começo do verão. Após algumas horas de descanso, e com objeções por parte de Maglor, Círdan conduziu seus acompanhantes para o grande salão da casa principal, onde a celebração estava sendo preparada. Menestréis passeavam por entre a multidão, e canções eram elevadas, algumas leves e belas, cantadas por Elfos alegres como crianças, outras profundas, repletas de tradição e história, estas mantidas por faces nobres. Todos conheciam Círdan, que rapidamente desapareceu na multidão. Muitos estavam curiosos a respeito do Homem que havia chegado inesperadamente as costas da Ilha Solitária e tanto Ælfwine como Maglor, ainda oculto por trás de sua capa, foram saudados por grupos de Elfos que lhes ofereciam vinho, cerveja e suaves licores.

Com a madrugada aproximando-se, Ælfwine bebeu cuidadosamente uma taça de vinho resfriado. Maglor permanecia próximo e silencioso, ouvindo a todos, mas sem falar. Se lhe perguntavam o nome, respondia Rána, o Rebelde, e poucos dirigiam-lhe mais perguntas.

De vez em quando, Ælfwine hipnotizava-se com uma dama de incomparável beleza, alta como poucos Homens, com cabelos dourados como se os raios do sol tivessem ali encontrado morada, sua face serena e bela além de qualquer descrição. Seus olhos brilhavam como pontas de lanças. Ela vestia um sóbrio manto cinza, e sobre seus ombros havia uma fina corrente de prata que sustentava uma jóia solitária, branca, e cujo brilho era como a mais brilhante estrela na noite. Acompanhando a bela dama havia um Elfo também vestido de cinza. Mas, se o casal se aproximava, Maglor puxava mais a frente seu capuz, e tomava direção contrária. Em dúvida, Ælfwine inquiriu-lhe e ouviu como resposta apenas um sussurro.

- Galadriel. -



Muitas canções foram cantadas durante a noite, algumas por elfos sós, outras por grupos alegres. A música afetava a todos como uma bebida forte, e trazia visões de tempos passados, como se as palavras enchessem suas mentes com imagens e formas, histórias e lendas. Ælfwine levantou-se da almofada onde esteve sentado por alguns minutos, encantado com a beleza das canções, e viu uma colina verde sob um céu negro e estrelado. Aos pés da colina estavam muitos Senhores e donzelas, sentados em silencio. No topo da colina, duas donzelas estavam de pé, uma vestida em cinza profundo, e de seus olhos lágrimas escorriam, caindo ao solo. A segunda, vestida em muitos tons de verde e castanho, mantinha seus braços erguidos. Então, um coro de Elfos ergueu-se, cortando o infinito com um sentimento saudoso, embora Ælfwine não pudesse compreender as palavras.

Em seguida, uma voz solitária adensou-se enchendo todos os corações com doces palavras. Em sua visão, Ælfwine considerou perceber dois pequenos brotos surgindo ao lado das donzelas que permaneciam no topo da colina. Enquanto cresciam, os brotos rebentaram em ramos e folhas, rumo as estrelas que encharcavam o céu, que já clareava com sinais da manhã. Mas então um outro sentimento interrompeu a visão e Ælfwine viu-se novamente no grande salão, cercado por muitos Elfos que permaneciam silenciosos enquanto uma voz se erguia em belo canto. E surpreso, ele viu que era Maglor quem cantava.

Percebendo por sua vez que cantava sozinho, sua voz enfraqueceu-se, e ele se calou, mas nenhum outro som pode ser ouvido na casa. De fato, pareceu que a própria noite se calara. Maglor puxou sua capa, adensando a sombra em seu rosto, como se tentasse escapar de tantos olhos que o observavam. Mas então, dois Elfos se aproximaram, eram Galadriel e Celeborn.

- Você pode esconder-se nas sombras, mas por sua voz revelaste sua presença a mim e a muitos outros. Mostre-se Maglor! - Gritou Galadriel.

Lentamente, Maglor deixou cair seu capuz, e permaneceu de pé, alto e orgulhoso perante os dois Elfos.

- Minha Senhora Galadriel. – Disse de voz leve e com uma tênue reverência.

Então, Celeborn avançou com ódio no olhar.

- Porque teriam os Valar estendido sua graça permitindo que um filho de Fëanor viesse a esta ilha está além de minha compreensão. Ainda que esta seja a casa de minha filha Celebrian, não devo derramar o sangue da família e escurecer esta noite de festas. Muito tempo atrás, nas docas de Alqualondë, minha Senhora levantou armas e lutou contra seu pai e contra aqueles que tolamente marcharam sob suas bandeiras, derramando o sangue dos Teleri injustamente. E apesar de Eras terem se passado, não quero sua presença aqui, para manchar esta noite ou qualquer outra. – Clamou o alto Elfo. Mas Galadriel havia caído em silêncio.

- Esta Casa não é sua. – Replicou Maglor em cólera. – E apesar de ser filho de meu pai, não o segui ou a meus irmãos em todas as coisas. Mas veja Ælfwine! É como eu temia. Fui julgado sem ter sido ouvido. A marca do nome de meu pai permanece em mim ainda. Mas manterei a paz, e partirei ainda que seja prisioneiro nesta ilha, cercado por inimigos que me odeiam. -

- O quê você poderia dizer em sua defesa? – Gritou alguém por entre a multidão. – Que procura perdão? Que seus pecados foram menores dos que o de seus familiares? Que meu irmão não foi feito em pedaços por lâminas Fëanoreanas em Doriath? Se o tivéssemos condenado sem julgamento, mesmo assim não me parece que seria algo injusto. -

- Espere! – Gritou outro, e não era ninguém menos que Pengolod. – Eu não conheço este Elfo como Maglor. Mas como Randir, que conduziu as donzelas e crianças para fora de Eregion antes que a cidade caísse, levando-as a Lindon. Sei disso pois Celebrimbor enviou a mim e também a outros, juntamente com Randir, para ajudar na defesa dos refugiados! -

Murmúrios elevaram-se pelo salão em uma grande confusão de vozes, algumas advogando tolerância, outras clamando vingança e sangue. Então, uma poderosa voz esmagou todas as demais.

- Apenas a Mandos, e somente a ele, foi dado o direito de julgar matérias como esta; certo ou errado, inocente ou culpado, e qualquer grau que se estabeleça entre estes dois estados. Nenhum de vocês tem este direito. E vocês condenam Maglor sem que tenha sido ouvido! Então, quem será seu defensor? -

- Ninguém. - Respondeu Maglor. - Pois ninguém aqui conhece minha história, a não ser da forma como tem sido contada pelos que não a presenciaram, e eu não desejo falar a uma audiência tão enfurecida. -

- Nah! Eu conheço sua história. - Disse Ælfwine. – E se desejar, eu serei seu advogado. -

O anúncio do Homem causou surpresa a multidão, e não foram poucas as gargalhadas que espocaram em meio à turba.

- Sem querer ofender, alguém disse, - mas um simples Homem não teria a habilidade nem o discernimento necessários para distinguir a mentira e a verdade. -

- És agora o senhor da verdade e da mentira Belmir?. – Disse a mesma voz que iniciara a defesa de Maglor. – Deixem o Homem falar. Ao menos alguém aqui possui sabedoria. Ou você presume estar além da autoridade de Mandos? Talvez possas “discernir” melhor que ele sobre o que é certo e errado. -

Então todos os olhares pousaram sobre Ælfwine, que elevou uma taça de cerveja e entornou seu conteúdo. Depois, iniciou a história de Maglor, que havia ouvido uma semana antes. Sobre Fëanor e seus filhos ele falou, e sobre os Silmarils e Morgoth. Caminhou pelas ruas de Tírion, sobre a sombra de Bauglir, e chorou pela morte das árvores, assim como a de Finwë. Em pesar e loucura relembrou o Juramento e o início da rebelião. Ele seguiu sua trilha até as docas de Alqualondë, e deixou pegadas ensangüentadas pela Estrada de Beleriand. Durante a longa derrota, esteve nas florestas de Neldoreth, envolvido pelos gritos e pelo chocar das espadas. Então, regressou repleto de vergonha para as Bocas do Sirion, onde irmão lutou contra irmão. Por último, dois Silmarils brilhavam nas ruínas de Beleriand. Assim como a culpa e a angústia.

Ainda não havia amanhecido quando Ælfwine estendeu a mão para outra caneca de cerveja, e olhou para o salão silencioso. Galadriel olhava demorada e cuidadosamente para Maglor. Ela parecia o estar avaliando, procurando por alguma falha ou mentira. Então, ela também olhou para a multidão, e Celeborn parecia perdido em pensamentos.

Finalmente, Belmir quebrou o silêncio.

- Uma bela história. - Disse. – Tecida com perspicácia, ainda que errada em certos pontos. Você perdeu suas habilidades de contador de histórias Maglor, ou talvez tivesse sido melhor ter falado por si próprio. Porque devemos nós acreditar neste Homem se o que ele diz vai contra tudo o que sabemos? -

- E você sabe a verdade Belmir? - Replicou novamente o dono da misteriosa voz grave que vinha detrás da multidão. - Vivestes em Gondolin, certo? Não? Talvez em Hithlum, onde podes ter testemunhado estes eventos? Não. Sei que gastaste todos os seus anos sobre as folhas da Floresta Verde, a Grande, enquanto viveu na Terra Média. –

Belmir corou encolerizado, procurando no salão pelo dono daquela voz.

- É o bastante. - Gritou. – Não, não vivi em Beleriand ou Valinor. Mas ninguém precisa ver as estrelas para saber que elas brilham. De qualquer forma, ele está preso em suas próprias palavras. Pois em sua história, suas ações, assim como as de Maedhros foram idênticas; nem piores nem melhores. Maedhros, que morreu há tanto tempo, ainda não emergiu dos salões de Mandos. Assim também seria o julgamento de Maglor. -

A multidão murmurou, admirada com o argumento, e alguns, pensando que o assunto estava encerrado, olharam em raiva para Maglor. Mas alguém gargalhou, como se uma piada tivesse sido contada. A multidão abriu espaço, e um homem de barba branca, trajando um manto do mesmo tom, adiantou-se. Galadriel, surpresa, deixou escapar um suspiro:

- Olórin. -

- Belmir, és um grande arqueiro e batedor, mas não um bom advogado. Maedhros tirou a própria vida devido à angústia e dor quando o Silmaril queimou sua carne. Tirar a própria vida é uma perversão; uma falha na essência do fëa, e requer lenta cura e permanência longa em Mandos. Apenas isso já separaria o destino de Maglor do de seu irmão. Mas estou contente que concedas a Námo, por quem também conhecem como Mandos, o direito e a autoridade para julgar esta matéria. Alguém aqui é contrário a isso? - Perguntou Olórin em voz grave. Mas ninguém o respondeu.

- Ótimo! Então está decidido. - Disse. - Elrond! Venha! É tempo de cura e união. -



Maglor, que esteve sentado de cabeça baixa durante toda a discussão, levantou-se ao ouvir o nome de Elrond, e adiantou-se para abraçar o Elfo que surgia acompanhado por sua esposa, ambos com lágrimas nos olhos. Mas então, por detrás de Olórin, uma segunda figura, vestida em um manto azul, surgiu. E ao deparar-se com Maglor, revelou sua face nobre com um sorriso. Neste momento, a primeira luz da manhã adentrou o grande salão, e um raio de sol cruzou o pórtico, iluminando seu rosto.

- Não quero atrapalhar seu reencontro, Maglor. – Disse em voz clara. – Mas também tenho aguardado por muito tempo, desde aquele dia na costa, quando o Silmarill queimou nossa carne e nosso Juramento tornou-se vazio afinal. -

Maglor avançou incrédulo, a face pálida, e encarou seu irmão Maedhros, de pé diante dele. Enquanto se abraçavam, Galadriel pousou suas mãos nos ombros dos irmãos. Então virou-se e sussurrou algo a Celeborn, que então sacou uma longa adaga que estendeu para a esposa.

Em voz alta ela disse:

- Maglor e Maedhros! Por muito tempo nossas Casas tem estado em divergência. E por muitos anos meias verdades tem sido sustentadas como fatos. É hora de desfazermos este antigo erro. -

Com estas palavras, ela cortou uma longa trança, oferecendo-a a Maglor.

- Muito tempo atrás, seu pai pediu-me este presente, e eu o neguei. Talvez se não tivesse sido tão orgulhosa, as coisas pudessem ter ocorrido de outra forma. - Ela disse. – Nunca amei seu pai, mas você não tem culpa. Vocês são bem vindos entre nós. Venham! – E todos juntaram-se em uma canção para saudar a chegada do Verão e celebrar tão impressionantes eventos.





Ælfwine sentou-se junto a Olórin bebendo outra caneca.

- Boa cerveja. – Comentou. – E uma grande noite também! Chegou bem na hora, Senhor. -

Olórin bebericou cuidadosamente, cuidando para não manchar a barba.

- Senhor? - Resfolegou. – Podes me chamar Gandalf. E sim, a cerveja é muito boa, mas já experimentei melhores. Mas isso foi há muito tempo. A rixa entre as casas dos Noldor estava durando além do que seria desejado. -

- Aye. – Replicou Ælfwine. – E estou feliz por ter tomado parte neste processo de cura. A verdade é poderosa, mesmo quando dita por um Homem. -

- A verdade não é diferente, seja dita por Elfo ou Homem. - Disse Gandalf. – Você ficará aqui, com Elrond? Vejo que seus companheiros de viagem estão ocupados. – E ambos olharam para Maglor, Maedhros e Elrond, que conversavam animadamente. Então olharam para o Oeste.

- Se Elrond permitir, ficarei por um tempo. – Sussurrou Ælfwine.

- Ótimo! - Retrucou Gandalf também sussurrando. – Vou adorar a oportunidade de conversar com você mais tarde. Já faz muito tempo desde a última vez que falei com um Filho do Homem. -
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