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cronicas-->Notícias para Milene -- 12/06/2002 - 11:53 (António Torre da Guia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
----- PARREIRINHA DA ALFAMA

----- O Fado estava lá, na viela turística, mas faltavas-me Tu, real, Severa dos meus dias, Amália dos meus sonhos e fada definitiva da minha rota entre as coisas do mundo e da vida.

----- Ouvia eu o fadista íntimo:

--------------- Deixai-me morrer assim
--------------- Contigo dentro de mim...


----- PARREIRINHA DE ALFAMA
----- Ouro no ouvindo pela deliciosa Fada do Pintadinho

----- "Deitar cedo e cedo e erguer, dá saúde e faz crescer", ditado de antanho, mesurável pela conveniência social que incentiva os indivíduos ao dealbar saudável, prontos e aptos para a labuta quotidiana.

----- Em Lisboa, de 10 para 11 de Junho, após o dia consagrado ao maior dos vates de quantos a língua portuguesa contém, o preceito cumpria-se quase exemplarmente, não fosse o "Fado dos Fados" andar à cata de motivo e recado para informar os seus Leitores. E assim se foi pelo desfio das horas conta a conta cumprindo integralmente a volta ao rosário da realidade.

----- Às dez horas da manhã da camoniana data, o relvado frontal à perolífera Torre de Belém estava pleno de ex-combatentes, homens que houveram dado prova inequívoca de indesmentível lealdade à pátria, quando a soberania portuguesa ainda pairava sobre as ex-colónias. De soldado a general, aglomeravam-se ali centenas de cidadãos em fraterno e solidário convívio para prestarem homenagem à memória e honrarem os companheiros mortos há 28 anos, cujos nomes indistintamente se inscrevem sobre lajes de mármore coladas às paredes do forte belenense, junto ao monumento que se ergue à lembrança dos vivos e temporiza, em abraço histórico, a tragédia e a glória.

----- "Fados dos Fados" assistiu à cerimónia, sentindo-lhe o enlevo e o significado, partilhou do piquenique bem regado pelas mais diversas castas do precioso sumo português e, como se ex-combatente também já tivesse sido, irmanou-se na amena lide em saudosa cavaqueira, até que o esplêndido sol começasse a despedir-se.

----- Dali, inspirado pelos solavancos da alma, após rápido e reparador sono sobre o joelho, foi-se à função, levando a pele ao emocional encosto da noite de fado, acompanhado por um fadista a sério, exímio cicerone, e pela distinta simpatia da Micha, uma senhora de se lhe tirar o chapéu e reverenciar a fluência com que domina a língua de Isabel II.

----- Alfama, como escolha e prioridade primeira, apelou-nos ao retiro da Parreirinha. Desde há largos e bons anos se consta que ali mora a mais castiça e inolvidável voz daquele mourisco bairro, a da Fada do Pintadinho, aquele clássico de fado puro que coloca a garganta da intérprete em suspensão sobre a palavra, alongada em melodia, e que requer domínio absoluto sobre as cordas vocais para que o efeito auditivo nos caia angélico na orelha e pingue como ouro nos sentidos.

----- D.Argentina Santos, anfitriã serenemamente estóica - há mais de meio-século que labuta entre guitarras - trajando de preto digno e sóbrio, mulher sem arreios ou invenções de mézinhas santas, recebeu-nos com um cordial "boa-noite", sentada à sua mesa de comando, donde dirige com eficiente sobriedade o serviço, por forma que os doutos ingredientes do espírito se reunam e o fado sobretudo aconteça, tocando com mestria a sensibilidade dos aficcionados e dos curiosos.

----- O ditado que citamos no início serve para enfocar e reflectir-se na Parreirinha. O dia tinha deveras cansado Lisboa. Apenas uma mão cheia de clientes, entre os quais duas beldades mágicamente gregas a florir a exígua salinha, acabavam de ouvir uma ronda.

----- A empregada de mesa, um assombro de particularidade humana e a léguas de qualquer avesso preconceito de mau uso e costume, serviu-nos com esmero café e whisky.

----- Escutamos então o desfio de três fados por uma intérprete de voz forte e segura, já decerto préviamente avisada da nossa presença, pois notamos-lhe nítido empenho elaborado e entrega na actuação: ah boca linda! As duas gregas, que eram de pór grego qualquer grego, eram dadas, abertas, sorridentes e, como batiam bem o inglês, a nossa amiga Micha dispós-se a esclarecê-las sobre a essência fadista e pendor característico: fado, bálsamo dolorido que coloroformiza as mágoas do espírito e conforma as almas doentes de amor. As meninas da terra de Zorba colocaram os lábios em "o" e com ar de espanto acenavam "sim, sim" com cabeça.

----- A luz ambiente baixou de novo para a última ronda do serão. O guitarrista, de óculos inclinados "à la ponte du nez", e José Maria de Carvalho, alvíssimo de história, acompanhantes dedilhadores em apreço, colocaram-se no altar. Dona Argentina Santos acobertou-se com o xaile, cingiu-o elegante e avançou até defronte a nós, oferecendo-se inteira e límpida à observação. Os instrumentos partiram nos arpejos e o càntico da experimentada artista destinava-se-nos. Não havia dúvida: a requintada arte de bem cantar o fado tal e qual é, e deve ser, estava ali a dois palmos de nosso olhar, perpassando-nos os ouvidos, roçando-nos delicadamente os sentimentos, em arroubos de exercício vocal sublime, vindos genuínos da ladaínha chã, emanante do modo de ser assim e assim assumir total a personalidade castiça com refinado molde e trato.

----- Que belo, trazer de Alfama cheirinho no cérebro. Argentina Santos é inimitável e a dificuldade em sê-lo é que não tem seguidoras que consigam chegar a tamanha suavidade. É ímpar a banhar as palavras de melodia, sejam elas quais forem. Deu-nos ideia de filigrana cantada. A expressão da mágoa sai adoçada e faz repousar a tristeza dos versos apetitosamente no ouvido. A vontade de fechar os olhos invade-nos para que se capte o embalamento da melopeia e se lhe traduza sem perda alguma os eflúvios que se soltam em cachos de sortilégio. O gozo auditivo toma-nos como pluma delicadamente a passar-nos sobre o raciocínio. Não era preciso mais: ao cabo de três interpretações, Argentina Santos tinha-nos provado como é gostoso ouvir e sentir quem tão bem canta.

----- Deixamos a Parreirinha extasiados e com vontade de lá voltar muitas mais vezes. Está-se bem e à típica Parreirinha de Alfama não esmorece o zelo de ser o que é: fado integral.

----- Azulejo:

----- Se bem do corpo me tiras
----- Gemidos duma guitarra
----- É no Tejo sem mentiras
----- Que chego à boca da barra!

----- ENTREVISTA
----- À guisa de biografia

----- Argentina Santos, leva já mais de setenta e cinco airosas voltas ao sol, e também por milagrosa sarça fadista, há mais de meio-século que se conserva acesa nas belas madrugadas de Lisboa. A sua Parreirinha teima resistir ao amarelecimento e é o mais antigo retiro típico em função permanente. A Fada do Pintadinho ostenta no corpo e na alma momentos imperecíveis e de sedimentada memória.

----- É vastíssimo o currículo que honra a sua voz e a torna obra prima da mão natural da existência: a mulher implante-se sem rogos no frondoso altar daqueles que permanecem vivos para sempre e em luar perpétuo.

----- Através do ouvido e das mãos de "Fado dos Fados", leiam o que de si diz a carismática cantadeira alfamada, ao correr da ilustração fotográfica que inserimos.

----- "Chamo-me Maria Argentina Pinto Santos, ando em setenta e muitos, e canto há mais de cinquente anos, tantos quantos aqui tenho estado de vela ao Fado, minha casa de sempre e que presumo seja definitiva: a minha verdejante e aprazível «Parreirinha».

----- Porque o ouvido das gentes me apreciam a voz, sinto que Lisboa me ama e o país me estima. A minha carreira carrega dezenas de anos a cantar, a meu jeito que, dizem-me com convicção, é único e irrepetível.

----- Já fui vezes sem conta ao estrangeiro, espectáculos que fui levando por esse mundo fora, dentre os quais destaco a actuação na catedral de Marselha e no Teatro Champagne Limoge, bem como também em Itália. Apresentei-me por diversas na TV. Saliento uma recente homenagem no Coliseu dos Recreios, que contou com a presença do presidente da República. Do meu repertório fazem parte letras da autoria de saudosos compositores, como Raul Ferrão, Filipe Pinto, Linhares Barbosa. Todos me conheciam pela dona da «Parreirinha».

----- Tenho orgulho que a minha casa de fados seja a mais antiga de Alfama, meu adorado sítio e que por coisa alguma trocaria. Aos oito anos já ganhava a minha vida. Nasci na Mouraria, à entrada da Rua do Capelão, onde em tempos também nasceu e viveu talvez a maior de todas as fadistas: Maria Severa. Aos dez anos já vivia em Alfama. Naqueles tempos, na Mouraria, havia muitas casas de fado e eu ainda me lembro de ir fazer recadinhos às senhoras, comprar macinhos de tabaco e rapé.

----- Comecei pois de pequenina a lutar pela vida. Fiquei órfã muito nova e tive que trabalhar para poder sobreviver. Fiquei sem pai com dois anos. Uma infància dura e a entrada na vida dos adultos, tristemente marcada pela morte de minha mãe, então com catorze anos de idade.

----- Cedo a luta e o rigído labor tomaram conta de mim. Praticamente criei-me sozinha, apesar de ter dois irmãos mais velhos. Cada qual foi para seu lado. Eu ainda fiquei em casa da minha madrinha por uns tempos, até ela enviuvar. Não tive melhor remédio do que saltitar pelas vielas da Mouraria, em busca de uns tostões para sobreviver.

----- Lembro-me muitíssimo bem da Mouraria desse tempo, da rua do Outeiro, onde nasci, logo à entrada da rua do Capelão, das mesmas casas e ruas toscas e agrestes que ainda lá estão, do Largo da Guia, da "sopa do Sidónio"...Não me envergonho de dizer que todos os dias lá ia comer o meu pratinho.

----- Vim depois para Alfama à procura de um dos meus dois irmãos, com quem acabei por ficar a viver. Já nessa altura cantarolava, sobretudo, as letras das populares marchas de Verão. Até que um dia fui parar à «Parreirinha», com o meu primeiro marido, Alberto Rodrigues. A casa era muito antiga, com centenas de anos, e diariamente frequentada por poetas, escritores, fadistas, gente dos teatros e do mundo do espectáculo. Uma casa animada, com noites de fado e tertúlia, petiscos e bom vinho, desgarradas que duravam até de madrugada e enchiam as ruas de Alfama de cantares e risos animados.

----- A que é agora minha casa é de facto muito antiga. Dizem os entendidos que foi construída no tempo do terramoto de 1755. Mais tarde transformou-se numa carvoaria. Quando aqui cheguei era uma casa de pasto, frequentada, sobretudo, por poetas. Lembro-me de alguns como Fernando Teles, Henrique Sebo, Carlos Conde, Linhares Barbosa. Também vinham cá cantar a Berta Cardoso, a Lucília do Carmo, a Teresa Nunes, a Márcia Condessa. Todos paravam aqui à tarde, e eu ia fazendo os meus petiscos, pastéis e pataniscas de bacalhau, arroz, jaquinzinhos fritos. Começámos a cantar num canto da sala. Até que um dia houve uma desgarrada, na qual participei pela primeira vez. A partir daí nunca mais me deixaram sossegada.

----- Antigamente faziam-se muitas desgarradas, mas mais tarde acabei com esse hábito, pois vinham para aqui pessoas de fora que se metiam e cantavam letras inconvenientes e isso nunca me caíu bem. Passei então a cantar fados com letras escritas por mim própria, pelo meu companheiro e mais tarde por outros poetas que frequentavam a casa.

----- Dos fados que mais gosto de cantar destaco, sobretudo, os que falam de amor. Gosto também em particular de um fado dedicado a minha mãe, Maria Martinha, que cedo deixou a vida: "Eu vi minha mãe rezando...", um fado que me tornou conhecida e ainda hoje o canto... Também me pedem sempre para cantar o "Chafariz del Rei".

----- Dos maiores nomes do fado, aprecio e admiro, entre outros, Amália, Berta Cardoso, Lucília do Carmo, Celeste Rodrigues e tantas outras figuras ilustres que frequentaram a minha casa. A Amália vinha cá muito para ouvir a irmã cantar. Gostava da comida que eu fazia para o pessoal, da sopa da casa, de jaquinzinhos fritos. Era uma pessoa simples. Foi uma pérola que caiu do céu. Pode haver muita gente a imitá-lá, mas não passam das imitações.

----- Passou aqui pela casa muita gente com talento, gostei de quase todos os que aqui cantaram, desde a Maria da Fé, à Helena Tavares, à Natalina Bizarro. Quase todos os que mais tarde se tornaram célebres passaram por aqui. Agora cantam cá a Mariana Silva, o Luís Tomar, o Hélder Moutinho, a Vitalina Maria, entre outros, e eu também canto quando calha e posso... Dá vontade de rir, pois dá?.

----- O meu primeiro companheiro faleceu há trinta e sete anos, deixando-me só à frente dos destinos da casa. Mais tarde voltei a casar, mas acabei por enviuvar novamente. De uma forma decisiva o meu destino parecia impor-me que ficasse sozinha, mas nem por isso perdi a vontade de viver e lutar. Não tem sido fácil gerir esta casa, que felizmente está quase sempre cheia. Tenho clientes que já cá vinham quando andavam a estudar e hoje trazem os netos, famílias inteiras que vêm habitualmente cá há muitos anos. É preciso dar qualidade a essas pessoas. Confesso que não tenho uma cozinha espalhafatosa, mas sim tão só esmeradamente caseira e quase tudo me passa pelas mãos. Sou eu que compro, faço tudo e determino o que às minhas ajudantes. As pessoas podem ter a certeza de que aqui o que comem é limpo, fresco e bom. No fundo, não sei se gosto mais de cantar ou de cozinhar.

----- Vou três vezes por semana à praça, em transporte público, pois não tenho carro. Regresso a casa, confecciono o meu almoço e descanso um pouco. Por volta das quatro horas da tarde venho para a «Parreirinha». Moro aqui perto. Acabo por regressar a casa por volta da uma, duas da manhã. Tenho pouco tempo para ver Lisboa, mas quando vejo alguma coisa bonita fico entusiasmada, gosto muito desta cidade, pois sou alfacinha de gema e assim restarei."

----- "Fado dos Fados", deseja a Argentina Santos que a mesma saudável lide sempre se conserve harmoniosamente ao lado da sua magnífica voz. Tendo-a ela, teremos a "Parreirinha" sem nada a estranhar.

------------------ Torre da Guia -----------------
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