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Textos_Juridicos-->Anistia: Voto do ministro Eros Grau - ADPF 153/DF -- 19/05/2010 - 12:26 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Voto do Relator Ministro Eros Roberto Grau - Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153/DF) - Plenário do STF‏

Quando a Corte Suprema por 7 x 2, negou seguimento à Ação para reforma a Lei de Anistia (Lei 6.863, de 1979)


ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 153

DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. EROS GRAU
ARGTE.(S) : CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS
ADVOGADOS DO BRASIL - OAB
ADV.(A/S) : FÁBIO KONDER COMPARATO
ADV.(A/S) : RAFAEL BARBOSA DE CASTILHO
ARGDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA
ADV.(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
ARGDO.(A/S) : CONGRESSO NACIONAL
INTDO.(A/S) : ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA
ADV.(A/S) : PIERPAOLO CRUZ BOTTINI E OUTRO(A/S)
INTDO.(A/S) : CENTRO PELA JUSTIÇA E O DIREITO
INTERNACIONAL - CEJIL
ADV.(A/S) : HELENA DE SOUZA ROCHA E OUTRO(A/S)
INTDO.(A/S) : ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANISTIADOS
POLÍTICOS - ABAP
ADV.(A/S) : ADERSON BUSSINGER CARVALHO E
OUTRO(A/S)
INTDO.(A/S) : ASSOCIAÇÃO DEMOCRÁTICA E
NACIONALISTA DE MILITARES
ADV.(A/S) : EGON BOCKMANN MOREIRA E OUTRO(A/S)
V O T O
As preliminares
01. A este tribunal incumbe, na arguição de descumprimento
de preceito fundamental, aferir a compatibilidade entre textos
normativos pré-constitucionais ou atos normativos municipais
e a Constituição, se e quando controversa tal compatibilidade,
desde que não seja possível, a fim de que se a questione, a
propositura de ação direta ou de ação declaratória. Refiro
neste passo, por tudo, o acórdão lavrado na ADPF/MC n. 33,
Relator o Ministro Gilmar Mendes.
2
No que concerne à matéria atinente às preliminares, vou me
valer, em linhas gerais, para ser breve, do quanto observou
Sua Excelência o Procurador Geral da República em seu
parecer de fls.
02. Quanto à primeira delas, suscitada pela Advocacia Geral
da União --- ausência de comprovação de controvérsia
constitucional ou judicial quanto ao ato questionado ---, a
norma veiculada pelo inciso I, do parágrafo único, do artigo
1º, da Lei n. 9.882/99, prevê o cabimento da ADPF quando for
relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei
ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os
anteriores à Constituição. Há, aí, ampliação da regra do caput
do artigo 1º, de sorte a admitir-se a ADPF autônoma para
questionar lei ou ato normativo de qualquer ente federativo em
face de preceito fundamental constitucional.
Esta ADPF amolda-se tanto à hipótese do caput do artigo 1º da
Lei n. 9.882/99 (lesão a preceito fundamental por ato
material, do Poder Público, de não promover investigações e
ações penais por indevida aplicação da lei), como também à do
seu parágrafo único, inciso I (lesão por produção de ato
normativo federal que teria conferido indevidamente anistia a
autores de crimes não passíveis de receberem o benefício).
Aqui não se tratando de ADPF incidental --- já que não se
pretende discutir, paralelamente a qualquer outro processo
judicial, matéria relativa à validade de ato normativo --- é
desnecessária a comprovação da existência de controvérsia
3
judicial atinente à aplicação do preceito constitucional. Basta
a demonstração de controvérsia jurídica (em qualquer sede)
sobre a validade da norma questionada (ou da sua
interpretação).
Está satisfatoriamente demonstrada a existência de polêmica
quanto à validade constitucional da interpretação que
reconheça a anistia aos agentes públicos que praticaram
delitos por conta da repressão à dissidência política durante a
ditadura militar.
A divergência em relação à abrangência da anistia penal de
que se cogita é notória mesmo no seio do Poder Executivo
federal, tendo sido aportadas aos autos notas técnicas que a
comprovam. Esta Corte, ela mesma diagnosticou a presença de
controvérsia sobre a interpretação a ser conferida à anistia
penal da Lei n. 6.683/79. Confiram-se os votos prolatados na
Extradição n. 974 [Informativos ns. 519 e 526 do STF]. Isso é
suficiente para que resulte demonstrada a controvérsia
instaurada. Rejeito a preliminar.
03. A Advocacia Geral da União e o Senado Federal invocam
também a preliminar de ausência de impugnação de todo o
complexo normativo relacionado ao tema. A inicial haveria de
ter questionado o § 1º do artigo 4º da Emenda Constitucional
n. 26, de 1985.
Ocorre que essa preliminar confunde-se com o mérito, será a
seu tempo examinada.
Rejeito-a pois.
4
04. Mais, a ADPF seria incabível por estar voltada contra lei
cujos efeitos se esgotaram na data da sua edição. Nada porém
impede que leis temporárias sejam questionadas mediante
ADPF. Adoto, ainda neste ponto, razões expostas no parecer do
Procurador Geral da República. Preliminar rejeitada.
05. No que tange a preliminar do Ministério da Defesa, relativa
à falta de indicação das autoridades responsáveis pelos atos
concretos de descumprimento de preceitos fundamentais, a
fixação da interpretação pretendida pela Arguente, se vier a
ser fixada, abrangerá todos os agentes públicos de uma ou
outra forma relacionados à persecução penal, juízes,
tribunais, membros do Ministério Público e agentes da Polícia
Judiciária que aplicaram, aplicam e podem vir a aplicar a Lei
n. 6.683 em sentido incompatível com a Constituição em ações
judiciais e investigações sob sua competência.
A observação no parecer do Procurador Geral da República é,
também neste ponto, correta: “[a] ausência de qualquer
dificuldade na identificação das autoridades e órgãos
responsáveis pela prática dos atos questionados não impede
que se advirta, todavia, que essa exigência de identificação é
relativizada em relação à pretensa ADPF autônoma: nessa
modalidade, realiza-se um controle objetivo da conformidade
constitucional do ato normativo, sendo genéricos os efeitos do
pronunciamento judicial em relação ao descumprimento de
preceito fundamental. (...) Vale aqui o quanto se reconhece às
5
ações diretas de (in)constitucionalidade: que não há réus ou
legitimados passivos, pois é a validade constitucional de
normas o que se discute. Em precedentes, o STF, ao julgar
procedente a alegação de descumprimento de preceitos
fundamentais, aceitou os efeitos genéricos naturais ao
controle objetivo de constitucionalidade. Na ADPF nº 101/DF
(Relatora Ministra Cármen Lúcia, julgamento em 24/06/2009),
proposta pelo Presidente da República, combatiam-se os
efeitos das decisões judiciais que autorizaram a importação de
pneus usados. Na ADPF nº 130/DF (Relator Ministro Carlos
Britto, julgamento em 30/04/2009), proposta pelo Partido
Democrático Trabalhista – PDT, pedia-se a declaração da
revogação total da Lei de Imprensa (Lei 5.250/1969). O STF
satisfez-se com tal formulação e soube reconhecer sem
dificuldade as autoridades e órgãos destinatários das
providências cabíveis”.
Esta preliminar também é rejeitada.
06. O Ministério da Defesa afirma por fim, contra o cabimento
da ADPF, a inutilidade de eventual decisão de procedência.
Isso por que os crimes --- ainda que não anistiados ---
estariam prescritos. Caso viesse a ser julgada procedente, dela
não resultaria nenhum efeito prático.
Sucede que a matéria da prescrição não prejudica a apreciação
do mérito da ADPF, visto que somente se ultrapassada a
controvérsia sobre a previsão abstrata da anistia abrir-se-á a
oportunidade de apuração da prescrição. A preliminar é,
6
destarte, rejeitada.
Afastadas todas elas e tendo como presentes os requisitos da
ação, dela tomo conhecimento.
07. Registre-se, contudo, que o pedido constante da inicial ---
item 5, alínea b --- menciona “os crimes comuns praticados
pelos agentes da repressão contra opositores políticos, [sic]
durante o regime militar (1964/1985)”.
Ora, como a anistia foi concedida a todos que cometeram
determinados crimes “no período compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979”1, não alcançou
crimes praticados após 15 de agosto de 1979 [= praticados
entre essa data e 1985]. De modo que o pedido resulta
parcialmente impossível: esta Corte não teria como declarar
por ele não alcançado período de tempo ao qual o artigo 1º da
Lei n. 6.683 não refere. Passo porém ao largo dessa
circunstância, até porque a ela nada foi oposto e o
prejudicaria, o pedido, apenas parcialmente.
A inicial: primeiras considerações
08. A inicial compreende duas linhas de argumentação: [i] de
uma banda visa à contemplação de interpretação conforme à
Constituição, de modo a declarar-se que a anistia concedida
pela lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos
crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra
1 Artigo 1º da Lei n. 6.683/79.
7
opositores políticos, durante o regime militar; [ii] d’outra, o
não recebimento da Lei n. 6.683/79 pela Constituição de
1988.
Afirma inicialmente que determinada interpretação do preceito
veiculado pelo § 1º do seu artigo 1º seria com ela
incompatível, a interpretação a ele conferida “no sentido de
que a anistia estende-se aos crimes comuns, praticados por
agentes públicos contra opositores políticos, durante o regime
militar”.
Por isso o pedido é de “interpretação conforme à Constituição,
de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais,
que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou
conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos
agentes da repressão contra opositores políticos, durante o
regime militar (1964/1985)”.
A Associação Juízes para a Democracia [AJpD] afirma, em
razões aportadas aos autos, que neles se trata de delinear o
conceito de crimes políticos e crimes conexos com estes,
previstos na Lei n. 6.683/79, para que seja determinada a sua
extensão.
09. A redação do texto seria, segundo a inicial,
propositadamente obscura (a inicial menciona a redação da
norma). E assim seria porque “se procurou” [sic] estender a
anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado
encarregados da repressão. Daí porque a norma [o texto, digo
eu] seria obscura e tecnicamente inepta [fls. 13 inicial]. Vê-se
8
bem que, nos termos da inicial, a obscuridade da norma (do
texto) pretenderia esconder o que “se procurou”. O que “se
procurou”, segundo a inicial, foi a extensão da anistia
criminal de natureza política aos agentes do Estado
encarregados da repressão.
10. Permito-me, neste passo, deixar bem vincados dois pontos,
o primeiro dizendo com o fato de que todo, todo e qualquer
texto normativo é obscuro até o momento da interpretação.
Hoje temos como assentado o pensamento que distingue texto
normativo e norma jurídica, a dimensão textual e a dimensão
normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma
a partir dos textos e da realidade. Permitam-me, senhores
Ministros, uma breve digressão, que não será vã, eis que
voltarei a ela na parte final deste voto, incisivamente.
A interpretação do direito tem caráter constitutivo --- não
meramente declaratório, pois --- e consiste na produção, pelo
intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de
normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado
caso, solução operada mediante a definição de uma norma de
decisão. Interpretar/aplicar é dar concreção [= concretizar] ao
direito. Neste sentido, a interpretação/aplicação do direito
opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o
caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em
outros termos, ainda: a sua inserção na vida.
A interpretação/aplicação vai do universal ao particular, do
transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [= do
9
direito] no mundo do ser [= mundo da vida]. Como ela se dá no
quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado
semântico do texto no contexto histórico presente, não no
contexto da redação do texto.
Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do
universal ao singular, através do particular, conferindo a
carga de contingencialidade que faltava para tornar
plenamente contingencial o singular2. As normas resultam da
interpretação e podemos dizer que elas, enquanto textos,
enunciados, disposições, não dizem nada: elas dizem o que os
intérpretes dizem que elas dizem3.
11. Se for assim --- e assim de fato é --- todo texto será
obscuro até a sua interpretação, isto é, até a sua
transformação em norma. Por isso mesmo afirmei, em outro
contexto, que se impõe “observarmos que a clareza de uma lei
não é uma premissa, mas o resultado da interpretação, na
medida em que apenas se pode afirmar que a lei é clara após
ter sido ela interpretada”4. Daí não caber a afirmação de que o
texto de que nesta ação se cuida seria, por obscuridade,
tecnicamente inepto.
Observo apenas, quanto a este primeiro ponto, aspecto ao qual
adiante retornarei. É que --- como a interpretação do direito
2 Sobre a interpretação do direito, vide meu Ensaio e discurso sobre a
interpretação/aplicação do direito, 5ª edição, Malheiros Editores, São
Paulo, 2009.
3 Meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, cit.,
pág. 86.
4 Meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, cit.,
pp. 74-75.
10
consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos
normativos e da realidade, de normas jurídicas --- cumpre
definirmos qual a realidade, qual o momento da realidade a
ser tomado pelo intérprete da Lei n. 6.683/79.
12. O segundo ponto a ser considerado está em que --- se o
que “se procurou”, segundo a inicial, foi a extensão da anistia
criminal de natureza política aos agentes do Estado
encarregados da repressão --- a revisão desse desígnio haveria
de ser procedida por quem procurou estende-la aos agentes do
Estado encarregados da repressão, isto é, pelo Poder
Legislativo. Não pelo Poder Judiciário. Também a ele adiante
voltarei.
Afronta a preceitos fundamentais
13. Permito-me examinar as duas linhas de argumentação
compreendidas na inicial na seguinte ordem: desde já a
atinente ao não recebimento da Lei n. 6.683/79 pela
Constituição de 1988; após, a que pretende uma interpretação
conforme a Constituição, de modo a declarar-se que a anistia
concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não
se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da
repressão contra opositores políticos, durante o regime
militar.
14. A Arguente afirma ser inválida a conexão criminal que
aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes
11
comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o
regime militar. Essa conexão criminal, que fundamentaria a
interpretação objeto da ADPF, não seria válida porque ofende
vários preceitos fundamentais inscritos na Constituição.
15. O primeiro deles seria o da isonomia em matéria de
segurança, destacado do artigo 5º, caput, da Constituição do
Brasil.
Sucede que a Arguente inicialmente não contesta
exclusivamente uma determinada interpretação do preceito
veiculado pelo § 1º do artigo 1º da Lei n. 6.683/79, mas o
próprio texto da lei. Ora, delineada a distinção entre texto e
norma, teremos a Arguente não investe, nesse passo, contra
uma determinada norma resultante da interpretação do texto
do § 1º do artigo 1º da Lei n. 6.683/79. O que, segundo ela,
afrontaria a isonomia seria o próprio texto, que “estende a
anistia a classes absolutamente indefinidas de crimes” e,
despropositadamente --- diz a inicial ---, usa do adjetivo
“relacionados”, cujo significado não esclarece e a doutrina
ignora, além de mencionar crimes “praticados por motivação
política”. A isonomia estaria sendo afrontada --- é verdade que
neste ponto a inicial menciona a “interpretação questionada
da Lei n. 6.683, de 1979” --- na medida em que nem todos são
iguais perante a lei em matéria de anistia criminal. Isso porque
uns “praticaram crimes políticos, necessariamente definidos em
lei, e foram processados e condenados. Mas há, também, os que
cometeram delitos, cuja classif icação e reconhecimento não
12
foram feitos pelo legislador, e sim deixados à discrição do
Poder Judiciário, conforme a orientação política de cada
magistrado”.
Que a Arguente investe neste passo contra o texto da lei, isso
é reafirmado na alusão ao § 2º do seu artigo 1º, que não é
objeto da ADPF.
É certo, pois, que o argumento da Arguente não prospera,
mesmo porque há desigualdade entre a prática de crimes
políticos e crimes conexos com eles. A lei poderia, sim, sem
afronta à isonomia --- que consiste também em tratar
desigualmente os desiguais --- anistiá-los, ou não,
desigualmente.
16. O segundo preceito fundamental malferido pela
interpretação questionada do § 1º do artigo 1º da Lei n.
6.683/79 estaria contido no inciso XXXIII do artigo 5º da
Constituição, que assegura a todos o direito de receber dos
órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de
interesse coletivo ou geral.
A Lei n. 6.683/79, segunda a Arguente, impediu que as
vítimas dos agentes da repressão e o povo brasileiro tomassem
conhecimento da “identidade dos responsáveis pelos horrores
perpetrados, durante dois decênios, pelos que haviam
empalmado o poder”. Diz ela que a lei, “[a]o conceder anistia a
pessoas indeterminadas, ocultas sob a expressão indefinida
‘crimes conexos com crimes políticos’, (...) impediu que as
vítimas de torturas, praticadas nas masmorras policiais ou
13
militares, ou os familiares de pessoas assassinadas por
agentes das forças policiais e militares, pudessem identificar
os algozes, os quais, em regra, operavam nas prisões sob
codinomes”.
Ocorre que o quê caracteriza a anistia é a sua objetividade, o
que importa em que esteja referida a um ou mais delitos, não
a determinadas pessoas. Liga-se a fatos, não estando
direcionada a pessoas determinadas. A anistia é mesmo para
ser concedida a pessoas indeterminadas.
17. Não vejo, de outra parte, como se possa afirmar que a Lei
n. 6.683/79 impede o acesso a informações atinentes à
atuação dos agentes da repressão no período compreendido
entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Permito-me neste passo reproduzir trecho do parecer do
Procurador Geral da República:
“É evidente que reconhecer a legitimidade da Lei da
Anistia não significa apagar o passado.
105. Nesse sentido, o estado democrático de direito,
para além da discussão acerca da punibilidade,
precisa posicionar-se sobre a afirmação e
concretização do direito fundamental à verdade
histórica.
106. Com a precisão habitual, o Ministro Sepúlveda
Pertence, em entrevista antes referida, afirmou que
viabilizar a reconstituição histórica daqueles tempos
é um imperativo da dignidade nacional. Para
14
propiciá-la às gerações de hoje e de amanhã, é
necessário descobrir e escancarar os arquivos,
estejam onde estiverem, seja quem for que os
detenha.
107. Romper com a boa-fé dos atores sociais e os
anseios das diversas classes e instituições políticas do
final dos anos 70, que em conjunto pugnaram – como
já demonstrado – por uma Lei de Anistia ampla, geral
e irrestrita, significaria também prejudicar o acesso à
verdade histórica.
108. O que se propõe, ao invés, é o desembaraço
dos mecanismos existentes que ainda dificultam o
conhecimento do ocorrido naquelas décadas. Nesta
toada, está pendente de julgamento a ADI nº 4077,
proposta pelo anterior Procurador-Geral da República,
que questiona a constitucionalidade das Leis
8.159/91 e 11.111/05.
109. O julgamento da ADI nº 4077 é sensível para
resolver a controvérsia político-jurídica sobre o acesso
a documentos do regime anterior. Se esse Supremo
Tribunal Federal reconhecer a legitimidade da Lei da
Anistia e, no mesmo compasso, afirmar a
possibilidade de acesso aos documentos históricos
como forma de exercício do direito fundamental à
verdade, o Brasil certamente estará em condições de,
atento às lições do passado, prosseguir na construção
madura do futuro democrático”.
15
O argumento de que se cuida, ancorado no inciso XXXIII do
artigo 5º da Constituição, não prospera.
18. O terceiro preceito fundamental afrontado pela
interpretação questionada do § 1º do artigo 1º da Lei n.
6.683/79 estaria contido nos princípios democrático e
republicano.
A inicial diz que “os que cometeram crimes comuns contra
opositores políticos, durante o regime militar, exerciam
funções públicas e eram, por conseguinte, remunerados com
recursos também públicos, isto é, dinheiro do povo”. Daí é
retirada a seguinte conclusão: “Nestas condições, a
interpretação questionada da Lei no 6.683 representa clara e
direta ofensa ao princípio democrático e ao princípio
republicano, que embasam toda a nossa organização
política” (negritos no original).
Mais, diz a inicial que a lei foi votada pelo Congresso Nacional
“na época em que os seus membros eram eleitos sob o
placet dos comandantes militares” --- aí a alusão a
senadores escolhidos por via de eleição indireta (os chamados
“Senadores Biônicos”) --- e ela, a lei, “foi sancionada por um
Chefe de Estado que era General do Exército e fora
guindado a essa posição, [sic] não pelo povo, mas por seus
companheiros de farda” (negritos no original).
Em consequência, “o mencionado diploma legal, para produzir
o efeito de anistia de agentes públicos que cometeram
crimes contra o povo, deveria ser legitimado, após a entrada
16
em vigor da atual Constituição, pelo órgão legislativo oriundo
de eleições livres, ou então diretamente pelo povo soberano,
mediante referendo (Constituição Federal, art. 14). O que não
ocorreu” (negritos no original).
Em segundo lugar, “num regime autenticamente republicano e
não autocrático os governantes não têm poder para anistiar
criminalmente, quer eles próprios, quer os funcionários que,
ao delinqüirem, executaram suas ordens”.
19. Não vejo realmente como possam, esses argumentos,
sustentar-se, menos ainda justificar a Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental.
Pois é certo que, a dar-se crédito a eles, não apenas o
fenômeno do recebimento --- a recepção --- do direito anterior
à Constituição de 1988 seria afastado, mas também outro,
este verdadeiramente um fenômeno, teria ocorrido: toda a
legislação anterior à Constituição de 1988 seria, porém
exclusivamente por força dela, formalmente inconstitucional.
Um autêntico fenômeno, a exigir legitimação de toda essa
legislação pelo órgão legislativo oriundo de eleições livres ou
então diretamente pelo povo soberano, mediante referendo.
Os argumentos adotados na inicial vão ao ponto de negar
mesmo a anistia concedida aos crimes políticos, aqueles de
que trata o artigo 1º da lei, a anistia concedida aos acusados
de crimes políticos, que agiram contra a ordem política vigente
no País no período compreendido entre 02 de setembro de
17
1961 e 15 de agosto de 1979. A contradição é, como se vê,
inarredável.
O que se pretende é extremamente contraditório: a ab-rogação
da anistia em toda sua amplitude, conduzindo inclusive a
tormentosas e insuportáveis conseqüências financeiras para
os anistiados que receberam indenizações do Estado,
compelidos a restituir aos cofres públicos tudo quanto
receberam até hoje a título de indenização. A procedência da
ação levaria a este funesto resultado.
Também este argumento, que diria com os princípios
democrático e republicano, não prospera.
O outro argumento --- “num regime autenticamente
republicano e não autocrático os governantes não têm poder
para anistiar criminalmente, quer eles próprios, quer os
funcionários que, ao delinqüirem, executaram suas ordens” ---
será considerado mais adiante, ao final deste voto.
20. O quarto preceito fundamental afrontado pela
interpretação questionada do § 1º do artigo 1º da Lei n.
6.683/79 seria o da dignidade da pessoa humana e do povo
brasileiro, que não pode ser negociada.
A Arguente diz que “o derradeiro argumento dos que
justificam, a todo custo, a encoberta inclusão na Lei no 6.683
dos crimes cometidos por funcionários do Estado contra
presos políticos é o de que houve, no caso, um acordo para
permitir a transição do regime militar ao Estado de Direito”.
18
Afirma-o para inicialmente questionar a existência desse
acordo --- “quem foram as partes nesse acordo”? indaga --- e
em seguida afirmar que, tendo ele existido, “força é reconhecer
que o Estado instituído com a liquidação do regime militar
nasceu em condições de grave desrespeito à pessoa humana,
contrariamente ao texto expresso da nova Constituição
Federal: ‘A República Federativa do Brasil [...] constitui-se
em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: [...] a dignidade da pessoa humana. (art. 1º,
III)” (negritos no original).
Trata-se, também neste ponto, de argumentação
exclusivamente política, não jurídica, argumentação que entra
em testilhas com a História e com o tempo. Pois a dignidade
da pessoa humana precede a Constituição de 1988 e esta não
poderia ter sido contrariada, em seu artigo 1º, III,
anteriormente a sua vigência. A Arguente desqualifica fatos
históricos que antecederam a aprovação, pelo Congresso
Nacional, da Lei n. 6.683/79. Diz mesmo que “no suposto
acordo político, jamais revelado à opinião pública, a anistia
aos responsáveis por delitos de opinião serviu de biombo para
encobrir a concessão de impunidade aos criminosos oficiais,
que agiam em nome do Estado, ou seja, por conta de todo o
povo brasileiro” e que a dignidade das pessoas e do povo foi
usada como “moeda de troca em um acordo político”.
21. A inicial ignora o momento talvez mais importante da luta
pela redemocratização do país, o da batalha da anistia,
19
autêntica batalha. Toda a gente que conhece nossa História
sabe que esse acordo político existiu, resultando no texto da
Lei n. 6.683/79. A procura dos sujeitos da História conduz à
incompreensão da História. É expressiva de uma visão
abstrata, uma visão intimista da História, que não se reduz a
uma estática coleção de fatos desligados uns dos outros. Os
homens não podem fazê-la senão nos limites materiais da
realidade. Para que a possam fazer, a História, hão de estar
em condições de fazê-la. Está lá, n’O 18 Brumário de Luís
Bonaparte5: “Os homens fazem sua própria história, mas não a
fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua
escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente,
legadas e transmitidas pelo passado”.
A inflexão do regime [= a ruptura da aliança entre os militares
e a burguesia] deu-se com a crise do petróleo de 1974, mas a
formidável luta pela anistia --- luta que, com o respaldo da
opinião pública internacional, uniu os "culpados de sempre" a
todos os que eram capazes de sentir e pensar as liberdades e a
democracia e revelou figuras notáveis como a do bravo senador
Teotonio Vilela; luta encetada inicialmente por oito mulheres
reunidas em torno de Terezinha Zerbini, do que resultou o
CBD (Comitê Brasileiro pela Anistia); pelos autênticos do
MDB, pela própria OAB, pela ABI (à frente Barbosa Lima
Sobrinho), pelo IAB, pelos sindicatos e confederações de
trabalhadores e até por alguns dos que apoiaram o movimento
5 Karl Marx, s/ indicação de tradutor, Editorial Vitória, Rio de Janeiro,
1956, pág. 17.
20
militar, como o general Peri Bevilácqua, ex-ministro do STM [e
foram tantos os que assinaram manifestos em favor do
movimento militar!] --- a formidável luta pela anistia é
expressiva da página mais vibrante de resistência e atividade
democrática da nossa História. Nos estertores do regime viamse
de um lado os exilados, que criaram comitês pró-anistia em
quase todos os países que lhes deram refúgio, a Igreja (à
frente a CNBB) e presos políticos em greve de fome que a
votação da anistia [desqualificada pela inicial] salvou da morte
certa --- pois não recuariam da greve e já muitos estavam
debilitados, como os jornais da época fartamente documentam
--- de outro os que, em represália ao acordo que os
democratas esboçavam com a ditadura, em torno da lei,
responderam com atos terroristas contra a própria OAB, com o
sacrifício de dona Lydia; na Câmara de Vereadores do Rio de
Janeiro, com a mutilação do secretário do combativo vereador
Antonio Carlos; com duas bombas na casa do então deputado
do chamado grupo autêntico do MDB Marcello Cerqueira, um
dos negociadores dos termos da anistia; com atentados contra
bancas de jornal, contra O Pasquim, contra a Tribuna de
Imprensa e tantos mais. Reduzir a nada essa luta, inclusive
nas ruas, as passeatas reprimidas duramente pelas Polícias
Militares, os comícios e atos públicos, reduzir a nada essa luta
é tripudiar sobre os que, com desassombro e coragem, com
desassombro e coragem lutaram pela anistia, marco do fim do
regime de exceção. Sem ela, não teria sido aberta a porta do
Colégio Eleitoral para a eleição do “Dr. Tancredo”, como
21
diziam os que pisavam o chão da História. Essas jornadas,
inesquecíveis, foram heróicas. Não se as pode desprezar. A
mim causaria espanto se a brava OAB sob a direção de
Raimundo Faoro e de Eduardo Seabra Fagundes,
denodadamente empenhada nessa luta, agora a desprezasse,
em autêntico venire contra factum proprium.
22. Leio trechos de depoimento de Dalmo de Abreu Dallari6,
que sofreu --- ele mesmo relata --- prisão e sequestro pela
ousadia de não transigir e não calar, empenhado em localizar
desaparecidos, salvar torturados, libertar patriotas vítimas de
prisão arbitrária, pregando sempre a restauração democrática.
Assim, diz ele, chegou-se à Lei da Anistia:
“Nós sabíamos que seria inevitável aceitar limitações e
admitir que criminosos participantes do governo ou
protegidos por ele escapassem da punição que
mereciam por justiça, mas considerávamos
conveniente aceitar essa distorção, pelo benefício que
resultaria aos perseguidos e às suas famílias e pela
perspectiva de que teríamos ao nosso lado
companheiros de indiscutível vocação democrática e
amadurecidos pela experiência. (...) A idéia inicial de
anistia era muito genérica e resultou no lema ‘anistia
ampla, geral e irrestrita’, mas logo se percebeu que
seria necessária uma confrontação de propostas, pois
6 Depoimento prestado à Fundação Perseu Abramo,
http://www2.fpa.org.br/conteúdo/dalmo-dallari
22
os que ainda mantinham o comando político logo
admitiram que seria impossível ignorar a proposta dos
democratas, mas perceberam que uma superioridade
de força lhes dava um poder de negociação e cuidaram
de usar a idéia generosa de anistia para dizer que não
seria justo beneficiar somente presos políticos e
exilados, devendo-se dar garantia de impunidade
àqueles que, segundo eles, movidos por objetivos
patrióticos e para defender o Brasil do perigo
comunista, tinham combatido a subversão, prendendo
e torturando os inimigos do regime. Nasceu assim a
proposta de ‘anistia recíproca’. De início, procurou-se
limitar a anistia aos perseguidos políticos, dizendo-se
que não deveriam ser anistiados os que tivessem
cometido ‘crimes de sangue’. Isso foi, afinal,
sintetizado numa enumeração de crimes que não
seriam anistiados, compreendendo, segundo a lei da
anistia (Lei n. 6683, de 28 de agosto de 1979), os que
tivessem sido ‘pela prática de crimes de terrorismo,
assalto, sequestro e atentado pessoal’. Em sentido
oposto, beneficiando os que abusando de uma função
pública tivessem cometido crimes [.] (F)oram
abrangidos os que tivessem cometido crimes políticos
ou ‘conexos’ com esses. Assim, aquele que matou
alguém numa sessão de tortura estaria anistiado
porque seu principal objetivo era combater um
adversário político. O homicídio seria apenas conexo
23
de outro crime, a ação arbitrária por motivos
políticos, que seria o principal. Assim se chegou à Lei
da Anistia”.
23. Tem razão a Arguente ao afirmar que a dignidade não tem
preço. As coisas têm preço, as pessoas têm dignidade. A
dignidade não tem preço, vale para todos quantos participam
do humano.
Estamos, todavia, em perigo quando alguém se arroga o direito
de tomar o que pertence à dignidade da pessoa humana como
um seu valor [valor de quem se arrogue a tanto]. É que, então,
o valor do humano assume forma na substância e medida de
quem o afirme e o pretende impor na qualidade e quantidade
em que o mensure. Então o valor da dignidade da pessoa
humana já não será mais valor do humano, de todos quantos
pertencem à humanidade, porém de quem o proclame conforme
o seu critério particular. Estamos então em perigo, submissos
à tirania dos valores. Então, como diz Hartmann7, quando um
determinado valor apodera-se de uma pessoa tende a erigir-se
em tirano único de todo o ethos humano, ao custo de outros
valores, inclusive dos que não lhe sejam, do ponto de vista
material, diametralmente opostos.
7 Ethik, 3. edição, Walter de Gruyter & Co., Berlin, 1949, pág. 576
(“Jeder Wert hat – wenn er einmal Macht gewonnen hat über eine Person
– die Tendenz, sich zum alleinigen Tyrannen des ganzen menschlichen
Ethos aufzuwerfen, und zwar auf Kosten anderer Werte, auch solcher,
die ihm nicht material entgegengesetzt sind”).
24
24. Sem de qualquer modo negar o que diz a Arguente ao
proclamar que a dignidade não tem preço [o que subscrevo],
tenho que a indignidade que o cometimento de qualquer crime
expressa não pode ser retribuída com a proclamação de que o
instituto da anistia viola a dignidade humana. De resto, ao
acordo político que resultou no texto da Lei n. 6.683/79 e
cujas partes a Arguente indaga quais teriam sido, retornarei
linhas adiante.
O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para
afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos
agentes políticos que praticaram crimes comuns contra
opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar,
esse argumento não prospera.
A interpretação conforme a Constituição e os crimes
conexos
25. No que concerne à segunda linha de argumentação
enunciada na inicial, sustenta-se que determinada
interpretação do preceito veiculado pelo § 1º do artigo 1º da
Lei n. 6.683/79 é incompatível com a Constituição. Essa
interpretação, incompatível com a Constituição, seria a de que
a anistia estende-se aos crimes comuns, praticados por agentes
públicos contra opositores políticos, durante o regime militar.
Daí o pedido de “interpretação conforme a Constituição, de
modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a
anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou
conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos
25
agentes da repressão contra opositores políticos, durante o
regime militar (1964/1985)”.
A conexão criminal implicaria uma identidade ou comunhão de
propósitos ou objetivos nos vários crimes praticados. Se o
agente é um só, a lei reconhece a ocorrência de concurso
material ou formal de crimes (Código Penal, artigos 69 e 70);
se os agentes forem vários há, tendo e vista a comunhão de
propósitos ou objetivos, co-autoria (Código Penal, artigo 29). E
também há conexão criminal quando os agentes criminosos
atuaram uns contra os outros, embora aqui se trate de regra
de unificação de competência, de modo a evitar julgamentos
contraditórios; não há, então, norma de direito material.
Por isso os crimes praticados por agentes públicos contra
opositores políticos durante o regime militar seriam crimes
comuns. Não eram crimes contra a segurança nacional e a
ordem política e social [decreto-lei 314/67, decreto-lei 898/69
e Lei n. 6.620/78]. A repressão a esses crimes era
implementada mediante a prática de crimes comuns, sem que
houvesse comunhão de propósitos e objetivos entre agentes
criminosos de um e de outro lado. De outra banda, além de a
regra de conexão ser unicamente processual no último caso,
“os acusados de crimes políticos --- diz a inicial --- não agiram
contra os que os torturaram e mataram, dentro e fora das
prisões do regime militar, mas contra a ordem política vigente
no País naquele período”.
A seguinte conclusão parcial é, destarte, extraída da inicial: a
norma veiculada pelo § 1º do artigo 1º da Lei n. 6.683/79 “tem
26
por objeto, exclusivamente, os crimes comuns, cometidos
pelos mesmos autores dos crimes políticos. Ela não
abrange os agentes políticos que praticaram, durante o
regime militar, crimes comuns contra opositores políticos,
presos ou não” [redação da inicial, fls. 16; negritos no
original]. Dizendo-o de outro modo: tem por objeto,
exclusivamente, os crimes comuns, cometidos pelos mesmos
autores dos crimes políticos; não abrange os crimes comuns
praticados contra opositores políticos, presos ou não, por
agentes políticos durante o regime militar.
A Associação Juízes para a Democracia apresentou razões
“pelas quais postula a procedência do pedido formulado, nos
termos do [artigo] 6º, § 1º da Lei 9.882/99, [sic] e no artigo
131, § 3º do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”.
Diz que se trata de delinear o conceito de crimes políticos e
crimes conexos com estes, previstos na Lei n. 6.683/79, para
que seja determinada a sua extensão.
26. Observo neste passo, parenteticamente, que não é
exatamente isso o que ocorre, visto que o § 1º do artigo 1º da
Lei n. 6.683/79 define crimes conexos aos crimes políticos:
“[c]onsideram-se conexos, para efeitos deste artigo, os crimes
de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou
praticados por motivação política”. Não me estenderei aqui em
debate acadêmico a respeito da distinção entre conceitos e
def inições, mas é certo que a def inição juridica explicita o
27
termo de um determinado conceito jurídico8. O § 1º do artigo 1º
da Lei n. 6.683/79 define crimes conexos aos crimes políticos
“para os efeitos” desse artigo 1º. São crimes conexos aos
crimes políticos “os crimes de qualquer natureza relacionados
com os crimes políticos ou praticados por motivação política”.
Podem ser de “qualquer natureza”, mas [i] hão de terem estado
relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão de terem sido
praticados por motivação política. São crimes outros que não
políticos; logo, são crimes comuns, porém [i] relacionados com
os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política.
27. A matéria há, porém, de ser examinada à luz da
Constituição. Por isso não me deterei no quadro da
infraconstitucionalidade senão para lembrar que a alusão a
crimes conexos a crimes políticos aparece já na anistia
concedida, em janeiro de 1916, a civis e militares que, direta
ou indiretamente, se envolveram em movimentos
revolucionários no Estado do Ceará (decreto 3.102, de 13 de
janeiro de 1916, do Presidente do Senado Federal).
Posteriormente isso se repete [i] no decreto 3.163, de 27 de
setembro de 1916, de Wenceslau Braz, Ministro da Justiça
Carlos Maximilano, decreto que concedeu anistia às pessoas
envolvidas em fatos políticos e conexos ocorridos no Estado do
Espírito Santo em virtude da sucessão presidencial estadual;
[ii] no decreto 19.395, de 6 de novembro de 1930, que
8 Vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito,
cit., págs. 237-238.
28
concedeu anistia a todos os civis e militares envolvidos nos
movimentos revolucionários ocorridos no país; [iii] no decreto
24.297, de 28 de maio de 1934, que concedeu anistia aos
participantes do movimento revolucionário de 1932; [iv] no
decreto-lei 7.474, de 18 de abril de 1945, que concedeu
anistia a todos quantos tenham cometido crimes políticos
desde 16 de julho de 1934 até a data de sua publicação, cujo §
2º do artigo 1º considera conexos, para os efeitos desse mesmo
preceito, “os crimes comuns praticados com fins políticos e
que tenham sido julgados pelo Tribunal de Segurança
Nacional”.
Outrossim, a expressão anistia ampla e irrestrita terá surgido
no artigo 1º do decreto-legislativo 22, de 23 de maio de 1956,
que a concedeu a todos os civis e militares que, direta ou
indiretamente, se envolveram nos movimentos revolucionários
ocorridos no País a partir de 10 de novembro de 1955 até 1º
de março de 1956.
28. Essa expressão, crimes conexos a crimes políticos, conota
sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei.
Sempre há de ter sido assim. A chamada Lei de anistia diz com
uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da
transição para a democracia. Tenho que a expressão ignora,
no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou os sentidos
correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal. Refere o
que “se procurou”, segundo a inicial, vale dizer, estender a
29
anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado
encarregados da repressão.
Esse significado, de conexão sui generis, é assinalado no voto
do Ministro Decio Miranda no RHC n. 59.834: “não estamos
diante do conceito rigoroso de conexão, mas de um conceito
mais amplo, em que o legislador considerou existente esta
figura processual, desde que se pudesse relacionar uma
infração a outra”. Lembre-se bem o texto do preceito do § 1º
do artigo 1º: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo,
os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes
políticos ou praticados por motivação política”.
29. A Arguente tem razão: o legislador procurou estender a
conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra
os que lutavam contra o Estado de exceção. Daí o caráter
bilateral da anistia, ampla e geral. Anistia que somente não foi
irrestrita porque não abrangia os já condenados --- e com
sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou,
veremos logo adiante --- pela prática de crimes de terrorismo,
assalto, seqüestro e atentado pessoal.
Parenteticamente transcrevo, neste passo, o que afirmou o
Ministro Julio de Sá Bierrenbach quando do julgamento pelo
Superior Tribunal Militar, em sessão do dia 6 de fevereiro de
1980, do Recurso Criminal n. 5.367, relator o Ministro Jacy
Guimarães Pinheiro:
“Em 28 de junho próximo passado, ao tomar conhecimento
do projeto da Lei da Anistia, que me foi trazido por um
30
jornalista, critiquei o § 2º do artigo 1º daquele projeto tal
como estava redigido. Se o Governo desejava excetuar dos
benefícios da anistia os indivíduos que praticaram crimes
de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal, não
deveria utilizar a expressão "os que foram condenados
pela prática” de tais crimes: melhor teria sido utilizar a
palavra denunciados, abrangendo todos os processados
por aqueles crimes que se constituiriam na exceção da Lei
da Anistia. Como todos sabemos, condenados são aqueles
cuja condenação transitou em julgado, isto é, quando não
mais cabe recurso à decisão judicial.
Da forma em que estava no projeto, os condenados
definitivamente por crimes de assalto, seqüestro, atentado
pessoal e terrorismo não seriam anistiados, ao passo em
que os acusados pelos mesmos crimes, mas com processos
em curso, seriam contemplados com a anistia! O projeto
era injusto, pois beneficiaria os revéis, enquanto poderia
manter no cárcere indivíduos menos responsáveis pelo
mesmo delito, porém, já condenados. A celeridade da
Justiça, tão desejada por todos nós, segundo o projeto,
era contra os réus. Os condenados não seriam anistiados
enquanto aqueles, cujos processos arrastavam-se na
Justiça Militar, receberiam o benefício da anistia. Sem ser
jurista, nem ao menos bacharel em direito, fiz esta e
outras críticas construtivas ao projeto da lei na data em
que o mesmo foi publicado, acentuando que o projeto
ainda não havia passado no Congresso e que eu me
31
curvaria diante da decisão que fosse sancionada. Minhas
declarações, com um único propósito construtivo, evitar
iniqüidades, foram publicadas nos jornais de 1º de julho
de 1979. Três ou quatro dias depois, um dos líderes do
Governo no Congresso afirmava à imprensa que as
injustiças seriam corrigidas com indulto presidencial. O
projeto ainda não era lei, pois a mesma só foi sancionada
dois meses depois, em 28.8.79, e já admitia injustiças ...”
(negritos e grifos no original).
A propósito, lembre-se ainda que o STM, no dia 21 de
novembro de 1979, no julgamento do Recurso Criminal n.
5.341, relator o Ministro Faber Cintra, concedeu a anistia do
artigo 1º da Lei n. 6.683/79 a quem, condenado por delito
dela excluído pelo seu § 2º, já cumprira inteiramente a pena
que lhe fora imposta; isso em afirmando que o cumprimento
da pena acarreta a cessação da punibilidade, exclusivamente a
ela dizendo respeito, ao passo que a anistia diz com o fato
perdoado. No mesmo sentido, aliás, as decisões tomadas nos
Recursos Criminais n. 5.338, 5.459, 5.666 e 5.751 e na
Apelação n. 37.808.
A verdade é que a anistia da Lei n. 6.683/79 somente não foi
totalmente ampla por conta do que o § 2º do seu artigo 1º
definiu, a exclusão, a ela, dos condenados pela prática de
crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.
Não foi ampla plenamente, mas seguramente foi bilateral.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
32
30. Desta Corte coleciono algumas decisões que, de uma forma
ou de outra, importam ao quanto estamos, nestes autos, a
considerar. Faço-o sem esquecer o histórico aresto lavrado na
Ação Originária Especial n. 13, Relator para o acórdão o
Ministro Marco Aurélio, em 1992, na qual se cuidava do
seguinte: um Brigadeiro da Aeronáutica que a memória
nacional há de esquecer tentou usar uma unidade da FAB,
conhecida como PARASAR, para a prática de atos terroristas
na cidade do Rio de Janeiro; o Capitão Sérgio Ribeiro Miranda
de Carvalho impediu-o, contrariando ordens recebidas desse
brigadeiro; foi reformado, no posto que ocupava, por haver se
recusado a praticar atos de terrorismo (assassinato de
políticos e outros cidadãos --- transcrevo voto do Ministro
Marco Aurélio --- , explosão do gasômetro do Rio de Janeiro e
destruição de instalações de força e luz, atos que seriam
atribuídos aos comunistas, seguindo-se, como consectário, a
caça a estes últimos); como fora já punido com prisão de vinte
e cinco dias, sobrevindo a reforma de caráter punitivo, o
tribunal reconheceu a duplicidade punitiva, bem assim que a
segunda punição deveu-se a simples vindita, reconhecendo a
existência do “vício grave”, por duplicidade de punição,
mencionado no artigo 9º do ADCT da Constituição de 1988.
31. Importa em especial considerarmos, no entanto, em
relação ao caráter amplo das anistias concedidas entre nós, os
julgados que passo a rememorar, inicialmente os atinentes ao
caráter amplo das anistias.
33
31.1 Para começar, entre os acórdãos mais antigos desta
Corte, o Habeas Corpus n. 1.386, Relator o Ministro Piza e
Almeida, em 4 de julho de 1900, que, ao considerar a anistia
concedida pelo Decreto n. 310, de 21 de outubro de 1895,
interpretou-a de modo a aplicá-la a crimes de morte
praticados em 12 de outubro de 1896; diz o acórdão: “É
conseqüência do caráter geral da anistia que ela se estenda
aos delitos acessórios que se prendem ao crime político”.
31.2 No Habeas Corpus n. 34.866, relator o Ministro Luiz
Galloti, em 1957, afirmou o caráter amplo do Decreto
Legislativo n. 27, de 20 de junho de 1956; a anistia nele
concedida --- diz a emenda --- “não protege apenas a
participação em greve, mas também os crimes com ela
conexos, excluído o homicídio doloso”; isso porque o artigo 2º
do decreto legislativo expressamente os excluía do benefício.
31.3 No Recurso Criminal n. 1.019, relator o Ministro Ary
Franco, em 1957, estendeu a ato ocorrido após 1º de março de
1956, mas antes de sua publicação, os efeitos do Decreto
Legislativo n. 22, de 23 maio do mesmo ano, que anistiou de
modo amplo e irrestrito todos aqueles que houvessem
praticado atos entre 10 de novembro de 1955 e 1º de março de
1956, relacionados com o movimento ocorrido a 10 de
novembro de 1955.
31.4 No Recurso Criminal n. 1.025, relator o Ministro
Hahnemann Guimarães, em 1958 afirmou-se o caráter amplo
da anistia concedida aos jornalistas, em relação a delitos de
imprensa, pelo Decreto Legislativo n. 27.
34
31.5 A ementa do Recurso de Habeas Corpus n. 59.834,
Relator para o acórdão o Ministro Cordeiro Guerra, em 1982,
linhas acima referido, diz: “ANISTIA. Interpretação do art. 1º e
seu § 1º da Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1.979. Crime de
deserção praticado contemporânea ou antecedentemente aos
crimes políticos anistiados, [sic] considera-se conexo ou
relacionado com os crimes políticos para o reconhecimento da
extinção da punibilidade, por força do § 1º do art. 1º da Lei n.
6.683, de 28.8.1979”.
32. Que o Supremo Tribunal Federal interpreta essa matéria
de modo benéfico, disso dão conta, exemplarmente, os
acórdãos lavrados nos Recursos Criminais 1.396 e 1.400,
Relatores, respectivamente, os Ministros Xavier de
Albuquerque e Leitão de Abreu, já em setembro de 1979, nos
quais unanimemente atribuiu-se à expressão “condenados”, no
§ 2º do artigo 1º da Lei n. 6.683/79, o significado de
condenado por sentença passada em julgado. No mesmo
sentido o Recurso Criminal 1.410, Relator o Ministro Decio
Miranda, e o Recurso Criminal 1.401, Relator o Ministro
Cordeiro Guerra, ainda em 1979.
E, no RE 165.438, Relator o Ministro Carlos Velloso, em 2004,
destaco voto, que tudo resume, do Ministro Cezar Peluso: “em
tema de anistia, a interpretação tem de ser ampla e generosa,
sob pena de frustrar seus propósitos político-jurídicos”.
35
33. Outro ponto a considerarmos --- e isso diz imediatamente
com estes autos --- encontra-se no Recurso em Habeas Corpus
n. 28.294, Relator o Ministro Philadelpho de Azevedo, de 1942,
cuja ementa é a seguinte: “Estão incluídos na anistia ampla
outorgada pelo decreto n. 19.395 de 1930 em relação aos
crimes políticos e militares e aos conexos com estes os delitos
atribuídos a policiais de um Estado cometidos na perseguição
de grupos sediciosos que se movimentavam no sertão”.
Tratava-se de fatos ocorridos em 1926. Cleto Campelo, tenente
revoltoso, partiu de Jaboatão, com um grupo de
revolucionários, pretendendo incorporar-se à Coluna Prestes.
Em Gravatá morto em combate Cleto Campelo, seguiram os
demais, sob o comando de Valdemar de Paula Lima, até que,
perseguidos a partir de Limoeiro por uma força irregular
integrada por policiais da Força Pública do Estado de
Pernambuco, caíram em uma emboscada. Valdemar de Paula
Lima e dois dos seus demais companheiros foram então
brutalmente assassinados, com requintes de crueldade,
sangrados a punhal. Três policiais foram denunciados por
esses homicídios em janeiro de 1931. Após longa tramitação
dos autos foi negada a aplicação da anistia do decreto n.
19.395 aos acusados. Esta Corte o fez. Colho, no voto do
relator, o Ministro Philadelpho de Azevedo, o seguinte trecho:
“A medida devia, assim, alcançar aos que se envolveram direta
ou indiretamente, [sic] em movimentos revolucionários, tanto
de um lado, como de outro, sendo inútil desmontar as peças
de textos de largo alcance social para apurar se o mesmo fato
36
constituiria crime político ou crime militar, ou ainda conexo
com qualquer deles”. Concedeu-se o habeas corpus por
unanimidade.
Há momentos históricos em que o caráter de um povo se
manifesta com plena nitidez. Talvez o nosso, cordial, se
desnude na sucessão das frequentes anistias concedidas entre
nós.
A interpretação do direito e as leis-medida
34. No início deste meu voto detive-me em digressão a respeito
da interpretação do direito. Torno a ela, mas não me olhem
assim. Não pretendo promover aqui, como diria nosso José
Paulo Sepúlveda Pertence, um seminário jurídico. Desejo
somente relembrar o quanto anteriormente observei: a
interpretação do direito tem caráter constitutivo --- não
meramente declaratório, pois --- e consiste na produção, pelo
intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de
normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado
caso. Interpretamos sempre os textos e a realidade. Daí --- o
que venho reiteradamente afirmando --- que o direito é um
dinamismo, donde a sua força, o seu fascínio, a sua beleza. É
do presente, na vida real, que se tomam as forças que lhe
conferem vida. E a realidade social é o presente; o presente é
vida --- e vida é movimento. Assim, o significado válido dos
textos é variável no tempo e no espaço, histórica e
culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução
37
dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos
normativos à realidade e seus conflitos9.
Essa afirmação aplica-se exclusivamente, contudo, à
interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração,
leis que constituem preceito primário, no sentido de que se
impõem por força própria, autônoma. Não àquelas que
chamamos de leis-medida.
35. Explico-me. As leis-medida (Massnahmegesetze)
disciplinam diretamente determinados interesses, mostrandose
imediatas e concretas. Consubstanciam, em si mesmas, um
ato administrativo especial. Detive-me sobre o tema em texto
acadêmico10, inúmeras vezes tendo a elas feito alusão em votos
que proferi nesta Corte11. O Poder Legislativo não veicula
comandos abstratos e gerais quando as edita, fazendo-o na
pura execução de certas medidas. Um comando concreto é
então emitido, revestindo a forma de norma geral. As leismedida
configuram ato administrativo completável por agente
da Administração, mas trazendo em si mesmas o resultado
específico pretendido, ao qual se dirigem. Daí por que são leis
apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido
material. Cuida-se, então, de lei não-norma12. É precisamente a
9 Disse-o em meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do
direito, cit., pág. 59.
10 O direito posto e o direito pressuposto, 7ª edição, Malheiros Editores,
São Paulo, 2008, págs. 254-255.
11 V.g., ADI 3.573.
12 V., v.g., meu voto na ADI 820.
38
edição delas que a Constituição de 1988 prevê no seu art. 37,
XIX e XX.
Pois o que se impõe deixarmos bem vincado é a inarredável
necessidade de, no caso de lei-medida, interpretar-se, em
conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento
histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual.
36. Recordo o que se deu no julgamento, por esta Corte, do
Habeas Corpus n. 29.151, Relator o Ministro Laudo de
Camargo, em setembro de 1945. Eduard Arnold fora
condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional pela prática
do delito de espionagem. Sobrevindo o decreto 7.474, de 18 de
abril de 1945, pediu fosse extinta a pena em virtude da
concessão de anistia. A ordem foi negada porque o caso
demandava exame de provas em torno da seguinte questão: os
delitos teriam sido praticados, ou não, em tempo de guerra,
contra a segurança nacional, contra a segurança externa do
país13. O que importa neste momento assinalar são, contudo,
ponderações do Ministro Orosimbo Nonato no sentido de que
“[c]abe ao intérprete, na aplicação da lei, verificar-lhe a
finalidade, a mens legis atendendo ao momento histórico em
que ela surgiu, e ao escopo a que visa, sem se deixar agrilhoar
demasiadamente à sua literalidade”. Em seguida, observando
que naquele momento não se cogitava do “perdão de crimes
contra a segurança externa do país, de delitos contra a
13 No voto do Relator são ainda referidas decisões tomadas nos habeas
corpus 29.034 e 29.111.
39
integridade do Brasil”, quanto aos demais delitos anotou:
“Ora, no caso dos autos, como lembrou o Sr. Ministro Filadelfo
de Azevedo, a lei de anistia resultou de um longo clamor de
consciência pública, refletida na imprensa e em comícios. Era
o ciclo que se abria, da redemocratização do Brasil e todos
pediam que se lançasse perpétuo olvido aos delitos de opinião
pública, às manifestações contra o regime vigente”. Até parece,
Senhores Ministros, que Orosimbo Nonato falava das jornadas
de 1979, avançando sobre o meu argumento de agora.
37. Registro a existência, no Brasil, no período republicano,
de mais de trinta atos de anistia, veiculados pelos seguintes
decretos ou leis-medidas: Decreto n. 8/1891 (oposição ao
Governo do Marechal Deodoro no Pará); Decreto n. 83/1892
(movimentos revolucionários em Mato Grosso e no Rio Grande
do Sul); Decreto n. 174/1893 (acontecimentos políticos em SC
e PE); Decreto n. 175/1893 (movimentos de 02.03.1893 no
Maranhão); Decreto n. 176/1893 (movimento ocorrido em
Catalão-GO); Decreto n. 305/1895 (acontecimentos políticos
em Alagoas e Goiás); Decreto n. 310/1895 (movimentos
revolucionários); Decreto n. 406/1896 (movimento de
04.09.1896 em Sergipe); Lei n. 533/1898 (amplia a anistia
concedida pelo Decreto n. 310/1895); Decreto n. 1373/1905
(Revolta da Vacina); Decreto n. 1599/1906 (movimentos
revolucionários de Sergipe e Mato Grosso); Decreto n.
2280/1910 (Revolta da Chibata); Decreto n. 2687/1912
(ampliação da anistia à Revolta da Chibata); Decreto n.
40
2740/1913 (revoltas no Acre e em Mato Grosso); Decreto n.
3102/1916 (revolução no Ceará e crimes políticos no país);
Decreto n. 3163/1916 (crimes políticos no Espírito Santo em
virtude da sucessão presidencial); Decreto n. 3178/1916
(ampliação das anistias de 1895 e 1898); Decreto n.
3492/1916 (eventos no Amazonas e Guerra do Contestado no
Paraná e em Santa Catarina); Decreto n. 19395/1930
(Revolução de 1930); Decreto n. 20249/1931 (movimentos
sediciosos de 28.04.1931 em São Paulo); Decreto n.
20265/1931 (movimentos sediciosos de 20.05.1931 em
Pernambuco); Decreto n. 24297/1934 (Revolução
Constitucionalista de 1932); Decreto-Lei n. 7474/1945
(Intentona Comunista de 1935); Decreto-Lei n. 7769/1945
(integrantes da Força Expedicionária Brasileira); Decreto-Lei
n. 7943/1945 (crimes de injúria ao Poder Público e crimes
políticos); Decreto Legislativo n. 18/1951 (crime de greve); Lei
n. 1346/1951 (crimes eleitorais de leis revogadas); Decreto
Legislativo n. 63/1951 (crime de injúria ao Poder Público);
Decreto Legislativo n. 70/1955 (conflito no jornal Tribuna
Popular-RJ); Decreto Legislativo n. 16/1956 (crimes de
imprensa); Decreto Legislativo n. 22/1956 (movimentos
revolucionários de 1955 a 1956); Decreto Legislativo n.
27/1956 (crimes de greve, de imprensa e insubmissão nas
Forças Armadas); Decreto Legislativo n. 18/1961 (crimes
políticos, greve, militares e imprensa); Lei n. 6683/1979
(crimes políticos e conexos entre 1961 e 1979); Lei n.
41
7417/1985 (mães de família condenadas a até cinco anos de
prisão).
Como deveríamos hoje interpretar esses textos? Tomando-se a
realidade político-social do nosso tempo, nos dias de hoje, ou
aquelas no bojo das quais cada qual dessas anistias foi
concedida?
38. Quais os crimes conexos que o § 1º do artigo 1º do Decreto
n. 3.102, de 13 de janeiro de 1916, anistiou? Eram crimes
conexos “ainda que não tenham tido ligação especial e
imediata com os movimentos revolucionários” do Estado do
Ceará, no tempo decorrido entre 1º de janeiro de 1913 e 7 de
setembro de 1915.
Qual a abrangência da expressão crimes conexos na anistia
que o Decreto n. 3.163, de 27 de setembro de 1916, concedeu
aos envolvidos em fatos políticos e conexos nesse mesmo ano
ocorridos no Estado do Espírito Santo?
E a anistia de 8 de novembro de 1930, concedida pelo Decreto
n. 19.395 a “todos os civis e militares que, direta ou
indiretamente, se envolveram nos movimentos revolucionários,
[sic] ocorridos no país”, abrangendo --- nos termos do § 1º do
seu artigo 1º --- “todos os crimes políticos e militares, [sic] ou
conexos com esses”? Alcançou exclusivamente os
revolucionários ou terá beneficiado ainda os que os
reprimiram?
Vou além nestas minhas indagações, Senhores Ministros.
Como poderemos apurar o significado da expressão “qualquer
42
outro crime político e os que lhe forem conexos” no parágrafo
único do artigo 2º do Decreto n. 24.297, de 28 de maio de
1934, que concedeu anistia aos participantes do movimento
revolucionário de 1932? Deveremos considerar, para tanto, a
realidade daquele momento histórico ou ousaríamos permitirnos
fazê-lo imersos na realidade do presente? A resposta é
evidente. O preceito não teria mesmo nenhum sentido, não
poderia ser compreendido por quantos ignorassem o que
ocorreu neste país na primeira metade dos anos 30.
E chego a 1945, ao decreto-lei n. 7.474, de 18 de abril, que
anistiou os crimes conexos com os políticos cometidos desde
16 de julho de 1934 até essa data, 18 de abril. Note-se que
aqui se poderia suscitar largo debate, visto que o § 2º do
artigo 1º do decreto-lei teria como conexos somente os crimes
comuns, praticados com fins políticos, que tenham sido
julgados pelo Tribunal de Segurança Nacional. Como resolver
essa questão com as lentes que a visão da realidade do
presente instala em nossas mentes? Para fazê-lo força é
apreendermos a realidade histórico-social do momento da
anistia de que se trata. Ela alcançou, ao referir crimes
conexos com os políticos, exclusivamente os que tentaram
contra o governo ou beneficiou ainda os que, praticando
crimes comuns, os reprimiram?
39. Pois assim há de ser também com a anistia de que ora
cogitamos. Aqui estamos, como na demais anistias a que
venho aludindo, diante de lei-medida. É a realidade histórico43
social da migração da ditadura para a democracia política, da
transição conciliada de 1979 que há de ser ponderada para
que possamos discernir o significado da expressão crimes
conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a
cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a
concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente
aquela na qual, como afirma inicial, “se procurou” [sic]
estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do
Estado encarregados da repressão.
A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política naquele
momento --- o momento da transição conciliada de 1979 ---
assumida. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra
para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser
interpretada a partir da realidade no momento em que foi
conquistada. Para quem não viveu as jornadas que a
antecederam ou, não as tendo vivido, não conhece a História,
para quem é assim a Lei n. 6.683 é como se não fosse, como se
não houvesse sido.
40. Leio o que escreveu o então Conselheiro da OAB, José
Paulo Sepúlveda Pertence, em parecer pela mesma OAB
encaminhado ao Presidente do Senado Federal em agosto de
1979:
“02. De resto, passado quase um mês da
revelação da proposta, não é temerário afirmar
que, à falta de contestação válida dos intérpretes
do Poder, já se conscientizou a opinião pública da
44
procedência das objeções suscitadas pela
vanguarda da sociedade civil contra as restrições
que o Governo pretende impor à conquista da
anistia.
03. O exame global do projeto desvela de imediato
o seu pecado substancial: é a sua frontal
incompatibilidade com um dado elementar do
próprio conceito de anistia, ou seja o seu caráter
objetivo. Em outras palavras: o que o Governo
está propondo, com o nome de anistia, tem antes
o espírito de um indulto coletivo que o de uma
verdadeira anistia. Esta distorção básica está
subjacente aos pontos mais criticáveis do projeto:
da odiosa e arbitrária discriminação dirigida
exclusivamente aos já condenados por
determinados crimes políticos (art. 1º, § 2º), ao
condicionamento do retorno ou reversão dos
servidores públicos à existência de vaga e ao
interesse da Administração (art. 3º), e à exclusão
desse benefício ’quando o afastamento tiver sido
motivado por improbidade do servidor’ (art. 3º, §
4º).
04. Mais que a forma de lei (que decorre de sua
essência, mas com ela não se confunde), o que
caracteriza a anistia é a sua objetividade. Isso
sabidamente significa, como se lê, por exemplo,
em Anibal Bruno (Direito Penal, III/201), que, ’a
45
anistia não se destina propriamente a beneficiar
alguém; o que ela faz é apagar o crime e, em
consequência, ficam excluídos de punição os que
o cometeram’. A idéia já estava presente no
célebre arrazoado de Rui Barbosa (in Comentários
à Constituição, 2/441), quando se mostrava que,
pela anistia, ‘remontando-se ao delito, se lhe
elimina o caráter criminoso, suprimindo-se a
própria infração’. Por isso, a observação de Pontes
de Miranda (Comentários à Const. de 1946, I/343-
344), de que ’a finalidade da anistia é a mesma da
lei criminal com sinais trocados’; e acrescenta:
com ela, ’olvida-se o ato criminal, com a
consequência de se lhe não poderem atribuir
efeitos de direito material ou processual.
Aconteceu o ato; agora, indo-se ao passado,
mesmo onde ele está, acontece juridicamente
desaparecer, deixar de ser, não ser’. Na mesma
linha, Raimundo Macedo (Extinção da
Punibilidade, p.), a enfatizar que a anistia ’é como
a lei nova que deixou de considerar o fato como
crime’.
05. A recordação dessa verdade elementar basta
para ver como não se pode sustentar a sério a
legitimidade jurídica ou moral de pretender
engalanar-se com a grandeza da anistia – que
está, por definição, na generalidade objetiva da
46
determinação do seu alcance – um projeto que
discrimina entre autores não condenados e
autores já condenados pelos mesmos crimes
políticos, para excluir estes dos benefícios da
anistia, que se estenderão àqueles.
06. Não se desconhece que a tradição histórica –
fonte necessária de identificação conceitual do
instituto, onde, como ocorre entre nós, a
Constituição não o define – tem legitimado a
anistia parcial, que exclua da sua incidência
discriminante determinadas categorias de
partícipes do fato anistiado. Mas, para que tais
exclusões sejam legítimas, devem elas basear-se
em fatos atribuíveis às pessoas excluídas da
anistia. São exemplos frequentes a reincidência, a
recusa à deposição de armas no prazo
estabelecido e outras tantas circunstâncias
objetivas, às quais – porque imputáveis ao agente
– se tem considerado que o legislador pode
atribuir a força negativa de impedir que sobre sua
conduta criminosa, em particular, se estenda a
eficácia da anistia”.
O que então se debatia eram essas discriminações, em especial
a que resultou contemplada no § 2º do artigo 1º da lei. No que
tange no entanto à concessão de anistia aos agentes do
Estado, leio ainda em Pertence:
“17. Nem a repulsa que nos merece a tortura
47
impede reconhecer que toda a amplitude que for
emprestada ao esquecimento penal desse período
negro de nossa História poderá contribuir para o
desarmamento geral, desejável como passo
adiante no caminho da democracia.
18. De outro lado, de tal modo a violência da
repressão política foi tolerada – quando não
estimulada, em certos períodos, pelos altos
escalões do Poder – que uma eventual persecução
penal dos seus executores materiais poderá vir a
ganhar certo colorido de farisaísmo.
19. Não é preciso acentuar, de seu turno, que a
extensão da anistia aos abusos da repressão terá
efeitos meramente penais, não elidindo a
responsabilidade civil do Estado, deles
decorrentes”.
41. Mais não será necessário dizer, Senhores Ministros.
Permito-me unicamente reproduzir, neste passo, trecho de
entrevista de José Paulo14, grande Ministro desta Corte,
duplamente cassado pela ditadura militar, como membro do
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e como
professor da Universidade de Brasília, entrevista na qual
afirma nada ter a alterar no parecer que a venho aludindo e
diz, ainda mais:
14 Carta Maior (www.cartamaior.com.br), 18 de janeiro de 2010.
48
“No projeto, havia um ponto inegociável pelo
Governo: o § 1º do art. 1o, que, definindo, com
amplitude heterodoxa, o que se considerariam
crimes conexos aos crimes políticos, tinha o
sentido indisfarçável de fazer compreender, no
alcance da anistia, os delitos de qualquer
natureza cometidos nos “porões do regime”, como
então se dizia, pelos agentes civis e militares da
repressão.
Meu parecer reconheceu abertamente que esse era
o significado inequívoco do dispositivo. E sem
alimentar esperanças vãs de que pudesse ele ser
eliminado pelo Congresso, concentrava a
impugnação ao projeto governamental no § 2º do
art. 1o, que excluía da anistia os já condenados
por atos de violência contra o regime autoritário.
(...)
É expressivo recordar que, no curso de todo o
processo legislativo – que constituiu um marco
incomum de intenso debate parlamentar sobre um
projeto dos governos militares -, nem uma voz se
tenha levantado para por em dúvida a
interpretação de que o art. 1o, § 1º, se aprovado,
como foi, implicava a anistia da tortura praticada
e dos assassínios perpetrados por servidores
públicos, sob o manto da imunidade de fato do
regime de arbítrio. O que houve foram propostas
49
de emenda – não muitas, porque de antemão
condenadas à derrota sumária – para excluir da
anistia os torturados e os assassinos da repressão
desenfreada”.
42. Anoto a esta altura, parenteticamente, a circunstância de
a Lei n. 6.683 preceder a Convenção das Nações Unidas contra
a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos
ou Degradantes --- adotada pela Assembléia Geral em 10 de
dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e
a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de
tortura. E, mais, o fato de o preceito veiculado pelo artigo 5º,
XLIII da Constituição --- preceito que declara insuscetíveis de
graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes ---
não alcançar, por impossibilidade lógica, anistias
anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não
recebe, certamente, leis em sentido material, abstratas e
gerais, mas não afeta, também certamente, leis-medida que a
tenham precedido.
Refiro-me ainda, neste passo, a texto de Nilo Batista, na Nota
introdutória a obra recentemente publicada15, de Antonio
Martins, Dimitri Dimoulis, Lauro Joppert Swensson Junior e
Ulfrid Neumann:
“... em primeiro lugar, instrumentos normativos
constitucionais só adquirem força vinculante após o
15 Justiça de transição no Brasil, Editora Saraiva, Saraiva, São Paulo,
2010.
50
processo constitucional de internalização, e o Brasil
não subscreveu a Convenção sobre Imprescritibilidade
dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a
Humanidade de 1968 nem qualquer outro documento
que contivesse cláusula similar; em segundo lugar, "o
costume internacional não pode ser fonte de direito
penal" sem violação de uma função básica do princípio
da legalidade; e, em terceiro lugar, conjurando o
fantasma da condenação pela Corte Interamericana, a
exemplo do precedente Arellano x Chile, a autoridade
de seus arestos foi por nós reconhecida plenamente
em 2002 (Dec. n. 4.463, de 8 de novembro de 2002)
porém apenas ‘para fatos posteriores a 10 de
dezembro de 1998’ ”.
A transição para a democracia
43. Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para
a democracia política ter sido uma transição conciliada, suave
em razão de certos compromissos. Isso porque foram todos
absolvidos, uns absolvendo-se a si mesmos.
Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa
dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e
continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem mesmo
viver). Quando se deseja negar o acordo político que
efetivamente existiu resultam fustigados os que se
manifestaram politicamente em nome dos subversivos.
Inclusive a OAB, de modo que nestes autos encontramos a
51
OAB de hoje contra a OAB de ontem. É inadmissível
desprezarmos os que lutaram pela anistia como se o tivessem
feito, todos, de modo ilegítimo. Como se tivessem sido
cúmplices dos outros.
Para como que menosprezá-la, diz-se que o acordo que
resultou na anistia foi encetado pela elite política. Mas quem
haveria de compor esse acordo, em nome dos subversivos? O
que se deseja agora, em uma tentativa, mais do que de
reescrever, de reconstruir a História? Que a transição tivesse
sido feita, um dia, posteriormente ao momento daquele acordo,
com sangue e lágrimas, com violência? Todos desejavam que
fosse sem violência, estávamos fartos de violência.
Interpretação e revisão da Lei da anistia
44. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não
está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele
contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir
distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal
Federal está autorizado a rescrever leis de anistia. Disso dou
exemplo. Refiro-me a reiterados votos do Ministro Sepúlveda
Pertence a propósito da não abrangência, pela anistia, dos
praças expulsos dos quadros militares por motivação política
apenas porque, não sendo titulares de estabilidade, a punição
não precisava fundar-se em atos de exceção; bastava, para
tanto, a legislação disciplinar. A iniquidade, patente, jamais
foi corrigida. Menciono, por todos, votos de Pertence no RE n.
125.641, Relator o Ministro Celso de Mello, em 1991, e na
52
Ação Originária n. 13, Relator para o acórdão o Ministro Marco
Aurélio, em 1992. Nem mesmo para reparar flagrantes
iniquidades o Supremo pode avançar sobre a competência
constitucional do Poder Legislativo.
Cabe bem lembrar, neste passo, trecho do voto do Ministro
Orosimbo Nonato no Recurso Extraordinário Criminal n.
10.177, julgado em 11 de maio de 1948: “Ao Poder Judiciário
cabe apenas o encargo de interpretar a lei que traduz a anistia,
sua extensão e alcance quanto aos fatos e às pessoas. No que
tange ao mais, nada lhe cumpre fazer. O assunto, escreve
Carlos Maximiliano, citando Cobat, de natureza essencialmente
política, enquadra-se na competência exclusiva do Congresso
cujo veredictum, sobre o caso, não sofre revisão do Judiciário
(Com. à Const. Bras., 1948, v. II, n. 357, p. 154)”16. Transcrevo
o texto de Carlos Maximiliano: “Quem interpreta e faz cumprir
a lei da anistia? Quanto ao primeiro caso, forçoso é distinguir.
Não se discutem os motivos, nem a justiça ou a oportunidade
da concessão, depois de feita esta. O assunto, de natureza
essencialmente política, enquadra-se na competência exclusiva
do Congresso, cujo veredictum, sobre o caso, não sofre revisão
do Judiciário. Cabe a este em França, e com razão maior no
Brasil, interpretar o decreto da anistia, verificando e
traduzindo o sentido do texto, determinando o alcance da
providência quanto aos fatos a que se aplica e às pessoas a que
16 Veja-se ainda a ementa lavrada no Recurso Extraordinário Criminal n.
10.998, Relator o Ministro Barros Barreto, de 7 de junho de 1948,
atinente à anistia concedida pelo Decreto-lei n. 7.943, de 1945.
53
aproveita. A execução da lei compete às autoridades
administrativas em primeiro lugar; devem agir, também, as
judiciárias para suspender os processos e restituir a liberdade
até aos condenados”17.
45. Digo-o no pórtico desta seção, deste meu voto, na qual
passo a dar atenção ao tema da interpretação e da revisão da
chamada Lei de anistia.
A Arguente questiona, na inicial, a existência de um acordo
para permitir a transição do regime militar ao Estado de
Direito. “[Q]uem foram as partes nesse acordo?” --- indaga.
Não há porém dúvida alguma quanto a tanto. Leio entre aspas
o que diz o ex-Ministro da Justiça, Tarso Genro18: “Houve, sim,
um acordo político feito pela classe política”. E mais diz ele,
diz que esse acordo, como outros, não impõe cláusulas
pétreas19. Que o seja, mas é certo que ao Poder Judiciário não
incumbe revê-lo. Dado que esse acordo resultou em um texto
de lei, quem poderia revê-lo seria exclusivamente o Poder
Legislativo.
Ao Supremo Tribunal Federal não incumbe alterar textos
normativos concessivos de anistias. A ele não incumbe legislar
ao apreciar ADPFs, senão apurar, em casos tais, a
17 Comentários à Constituição Brasileira, volume II, quinta edição,
Livraria Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1954, pp. 163-164.
18 Cf. Tarso Genro, Teoria da democracia e justiça na transição, Editora
UFMG, Belo Horizonte, 2009, pág. 34.
19 Idem, ibidem.
54
compatibilidade entre textos normativos pré-constitucionais e
a Constituição.
46. Há quem sustente que o Brasil tem uma concepção
particular de lei, diferente, por exemplo, do Chile, da
Argentina e do Uruguai, cujas leis de anistia acompanharam
as mudanças do tempo e da sociedade. Esse acompanhamento
das mudanças do tempo e da sociedade, se implicar necessária
revisão da lei de anistia, deverá contudo ser feito pela lei, vale
dizer, pelo Poder Legislativo. Insisto em que ao Supremo
Tribunal Federal não incumbe legislar sobre a matéria.
47. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da
sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo
Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário.
Começo com o exemplo do Chile.
O Decreto-Lei n. 2.191, de 18 de abril de 1978, conhecido
como “Ley de Amnistía”, concedeu-a a todas as pessoas que,
na qualidade de autores, cúmplices ou partícipes, tenham
incorrido em delitos durante a vigência da situação de Estado
de Sítio, compreendida entre 11 de setembro de 1973 e 10 de
março de 1978, desde que não se encontrassem submetidas a
processo ou condenadas. Foram também excluídos da anistia
delitos mais graves, como parricídio, infanticídio, subtração
ou corrupção de menores, estupro, incesto, etc. Resultaram
todavia beneficiadas pela anistia todas as pessoas condenadas
55
por Tribunais Militares em período posterior a 11 de setembro
de 1973.
Em janeiro de 2007 a Corte Suprema chilena por maioria
considerou não suscetíveis de anistia e imprescritíveis os
crimes cometidos contra o desaparecido político José Matías
Ñanco, fazendo-o com esteio em normas de Direito
Internacional, sob o argumento de que se tratava de crimes de
lesa-humanidade. Em novembro seguinte, no entanto,
contrariando esse entendimento, declarou prescritos os crimes
cometidos pelo Coronel de Exército Claudio Lecaros Carrasco.
Daí que, em 10 de junho de 2008, o Senado chileno rechaçou
projeto de lei que reinterpretava o art. 93 do Código Penal e
excluía da concessão de anistia, graça ou indulto os autores
de crimes de lesa-humanidade. Posteriormente, em 12 de
janeiro passado, os deputados Isabel Allende e Marcelo Díaz
apresentaram a Legislativo um projeto de lei visando à
revogação do Decreto-Lei n. 2.191/78, objetivando anular os
seus efeitos.
No Chile, como se vê, a revisão de lei de anistia, se mudanças
do tempo e da sociedade a impuserem, será feita pelo Poder
Legislativo.
48. Na Argentina, estando ainda no exercício do poder os
militares, a Lei n. 22.924 --- chamada “Ley de Pacif icación” --,
em 23 de março de 1983 concedeu anistia aos delitos
cometidos com motivação, finalidade terrorista ou subversiva
desde 25 de maio de 1973 até 17 de junho de 1982. Tida
56
posteriormente como lei de “auto-anistia”, a Lei n. 23.040, de
22 de dezembro do mesmo ano, derrogou-a, declarando-a nula.
Ao final de 1983 passaram a ser promovidas persecuções
penais contra guerrilheiros e juntas militares (decretos 157 e
158, de 13 de dezembro de 1983).
Em 24 de dezembro de 1986 foi promulgada a Lei n. 23.492,
conhecida como “Ley de Punto Final”, que estabeleceu um
prazo de sessenta dias para a citação, nas ações penais
promovidas contra pessoas envolvidas nos conflitos políticos
conhecidos como “Guerra Sucia”, pena de extinção dessas
mesmas ações penais.
No dia 8 de junho de 1987 foi sancionada a Lei n. 23.521,
conhecida como “Ley de Obediencia Debida”, que isentou de
culpa oficiais chefes, oficiais subalternos, sub-oficiais e
pessoal de tropa das forças armadas, bem assim policiais e
agentes penitenciários que reprimiram o terrorismo entre 24
de março de 1976 e 26 de setembro de 1983, por terem atuado
em virtude cumprindo ordens superiores.
No dia 21 de agosto de 2003 sobreveio a Lei n. 25.779, que
declarou nulas as Leis do Ponto Final --- 23.492 --- e da
Obediência Devida --- 23.521.
É certo que, em junho de 2006, a Câmara de Cassação Penal
argentina declarou a inconstitucionalidade do indulto
concedido pelo então Presidente Carlos Menem ao ex-general
Santiago Riveros, decisão confirmada em junho de 2007 pela
Corte Suprema, abrindo caminho para a declaração de
inconstitucionalidade de indultos similares. Mas na Argentina
57
--- dir-se-á que em razão de mudanças do tempo e da
sociedade --- a revisão das leis de anistia foi procedida pelo
Poder Legislativo. A Corte Suprema não as reviu, limitou-se a
aplicar os preceitos aportados ao ordenamento jurídico por
essa revisão.
49. Também no Uruguai aconteceu assim.
No dia 8 de março de 1985 foi promulgada a Lei n. 15.737,
que concedeu indulto a presos políticos, bem assim aos que
haviam cometido “crimes de sangue” conexos com crimes
políticos. No dia 22 de dezembro seguinte, a Lei n. 15.848/86,
a chamada de “Ley de La Caducidad de la Pretensión Punitiva
de Estado”, anistiou os delitos cometidos até 1º de março de
1985 por funcionários policiais e militares, por motivação
política ou assemelhada, bem assim os praticados no
cumprimento de suas funções, em ações ordenadas pelo
regime que comandou o país durante o período de fato.
Em abril de 1989, no dia 16, a maioria dos eleitores uruguaios
votou, em referendo então realizado, pela sua não revogação.
Posteriormente, após o lançamento, em setembro de 2007, de
nova campanha de recolhimento de assinaturas visando à
submeter a plebiscito a anulação dos artigos 1º a 4º dessa
mesma lei, em 14 de junho de 2009 a Corte Eleitoral do
Uruguai declarou ter sido alcançado o número de assinaturas
necessárias à sua realização, que deveria ocorrer quando das
eleições nacionais, em 25 de outubro seguinte.
58
É verdade que no dia 19 de outubro, a despeito da iminência
do plebiscito, a Suprema Corte de Justiça, apreciando
denúncia referente à morte de uma militante comunista detida
em uma unidade militar em junho de 1974, afirmou a
inconstitucionalidade dessa mesma “Ley de La Caducidad de
la Pretensión Punitiva de Estado”. Isso porque ela violaria o
princípio da separação dos poderes na medida em que excluíra
da órbita do Poder Judiciário o julgamento de condutas com
aparência delitiva e afetara seriamente garantias que o
ordenamento constitucional depositou em suas mãos. Não
obstante, seis dias após, 25 de outubro, data da eleição
presidencial, a maioria dos eleitores manifestou-se, em
plebiscito, pela preservação da sua vigência.
50. Permito-me repetir o quanto afirmei linhas acima. O
acompanhamento das mudanças do tempo e da sociedade, se
implicar necessária revisão da lei de anistia, deverá ser feito
pela lei, vale dizer, pelo Poder Legislativo, não por nós. Como
ocorreu e deve ocorrer nos Estados de direito. Ao Supremo
Tribunal Federal --- repito-o --- não incumbe legislar.
A Emenda Constitucional n. 26, de 27 de novembro de
1985
51. Chego quase ao final deste voto. Antes, contudo, cumpre
considerarmos preceito veiculado pelo artigo 4º, § 1º da EC
26/85:
59
“Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores
públicos civis da Administração direta e indireta e
militares, punidos por atos de exceção, institucionais
ou complementares.
§ 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de
crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e
representantes de organizações sindicais e estudantis,
bem como aos servidores civis ou empregados que
hajam sido demitidos ou dispensados por motivação
exclusivamente política, com base em outros diplomas
legais”.
Repito: “É concedida, igualmente, anistia aos autores de
crimes políticos ou conexos...”. O período alcançado por esta
anistia, da EC 26/85, é definido pelo § 2º desse mesmo artigo
4º: atos praticados no período compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Perdoe-me, Senhor Presidente; perdoem-me, Senhores
Ministros, mas leio a lei e a Emenda Constitucional:
[i] Lei n. 6.683/79, art. 1º: “É concedida anistia a
todos quantos, no período compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram
crimes políticos ou conexo com estes...”;
[ii] Emenda Constitucional n. 26/85, art. 4º, § 1º: “É
concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes
políticos ou conexos...” --- e completo: no período
compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de
agosto de 1979.
60
52. Retorno ao texto de Nilo Batista20, em trecho em que diz da
impropriedade de entrever-se autoanistia na lei:
“Sempre se soube da grande negociação política; hoje
se sabe até que houve resistência à lei do expresidente
General Geisel. Mas se o Congresso
Nacional de 1979 pode ser olhado com certas
reservas, o de 1985 --- já após eleições diretas para os
governos estaduais, já com o país governado por um
presidente civil, entre outros indicadores importantes
--- por certo não precisava legislar anistia em causa
própria; e na mesma emenda na qual era convocada a
Assembléia Nacional Constituinte que resultaria na
Constituição de 1988, a anistia ascendia à hierarquia
constitucional, deixando no degrau de baixo a
restrição aos chamados ‘crimes de sangue’, que
integrara a lei ordinária, e assim tornando-se
penalmente irrestrita...”.
Isso fulmina o argumento, do Arguente, de que “o mencionado
diploma legal, para produzir o efeito de anistia de agentes
públicos que cometeram crimes contra o povo, deveria ser
legitimado, após a entrada em vigor da atual Constituição,
pelo órgão legislativo oriundo de eleições livres, ou então
diretamente pelo povo soberano, mediante referendo
(Constituição Federal, art. 14). O que não ocorreu”; e, em
seguida, de que “num regime autenticamente republicano e
20 Ob. cit., pág. 11.
61
não autocrático os governantes não têm poder para anistiar
criminalmente, quer eles próprios, quer os funcionários que,
ao delinqüirem, executaram suas ordens”.
53. O que importa ainda é seguirmos a exposição de Tércio
Sampaio Ferraz Júnior21 a respeito da EC 26/85, cujo artigo 1º
conferiu aos membros da Câmara dos Deputados e ao Senado
o poder de se reunirem unicameralmente em Assembléia
Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro
de 1987, na sede do Congresso Nacional. Daí que ela é dotada
de caráter constitutivo. Instala um novo sistema normativo.
Diz o Professor Tércio22 que, “ao promulgar emenda alterando o
relato da norma que autoriza os procedimentos para emendar,
o receptor (poder constituído) se põe como emissor (poder
constituinte). Isto é, já não é a norma que autoriza os
procedimentos de emenda que está sendo acionada, mas uma
outra, com o mesmo relato, mas com outro emissor e outro
receptor. É uma norma nova, uma norma-origem”. Essa nova
norma tem caráter constitutivo, constitui ela própria o
comportamento que ela mesma prevê. E conclui23: “... quando o
Congresso Nacional promulga uma emenda (no 26) conforme os
artigos 47 e 48 da Constituição 67/69, emenda que altera os
próprios artigos, não é a norma dos artigos 47 e 48 que está
21 Introdução ao estudo do direito, 2ª edição, Editora Atlas, São Paulo,
1996, pág. 193.
22 Ob. e loc. citados.
23 Ob. cit., pág. 194.
62
sendo utilizada, mas uma outra, pois o poder constituído já
assumiu o papel de constituinte”.
54. Eis o que se deu: a anistia da lei de 1979 foi reafirmada,
no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição
de 1988. Não que a anistia que aproveita a todos já não seja
mais a da lei de 1979, porém a do artigo 4º, § 1º da EC 26/85.
Mas estão todos como que [re]anistiados pela emenda, que
abrange inclusive os que foram condenados pela prática de
crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.
Por isso não tem sentido questionar se a anistia, tal como
definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de
1988. Pois a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato
originário. A norma prevalece, mas o texto --- o mesmo texto --
- foi substituído por outro. O texto da lei ordinária de 1979
resultou substituído pelo texto da emenda constitucional.
A emenda constitucional produzida pelo Poder Constituinte
originário constitucionaliza-a, a anistia. E de modo tal que ---
estivesse o § 1º desse artigo 4º sendo questionado nesta ADPF,
o que não ocorre, já que a inicial o ignora --- somente se a
nova Constituição a tivesse afastado expressamente
poderíamos tê-la como incompatível com o que a Assembléia
Nacional Constituinte convocada por essa emenda
constitucional produziu, a Constituição de 1988.
55. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura a nova ordem
constitucional. Consubstancia a ruptura da ordem
constitucional que decairá plenamente no advento da
Constituição de 5 de outubro de 1988. Consubstancia, nesse
sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade.
63
Daí que a reafirmação da anistia da lei de 1979 já não
pertence à ordem decaída. Está integrada na nova ordem.
Compõe-se na origem da nova norma fundamental.
De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como
ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir
com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele
[dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código
Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A
uma por que, como vimos, foi mera lei-medida, dotada de
efeitos concretos, exauridos --- repito, parenteticamente, o que
observei linhas acima: a lei-medida consubstancia um
comando concreto revestindo a forma de norma geral, mas traz
em si mesma o resultado específico pretendido, ao qual se
dirige; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo,
em sentido material; é lei não-norma. A duas por que o texto de
hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional
quando ambos coexistam.
56. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem
constitucional, teremos que sua adequação à Constituição de
1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não
apenas o texto da Constituição nova, mas também a normaorigem.
No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo
sistema normativo é --- tem-se que “[é] concedida, igualmente,
anistia aos autores de crimes políticos ou conexos” praticados
no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15
de agosto de 1979.
64
Por isso não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza
entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e
a Constituição de 1988.
57. Dir-se-á, destarte, que terá sido rebarbativo este meu
voto. Se o texto da lei ordinária fora retirado do ordenamento
pela emenda constitucional ou existe a par dela, tudo quanto
foi dito a respeito da lei ordinária terá sido despiciendo. Não
obstante, não é assim. Em primeiro lugar por que, como diz o
poeta português José Carlos Ary dos Santos24, “não há coisa
mais pura do que dizer a verdade”; depois por que tudo quanto
afirmei a propósito da lei ordinária se amolda ao preceito da
Emenda Constitucional n. 26/85, a estabilidade social
impondo seja repetido.
58. Recebi estes autos com parecer da Procuradoria Geral da
República em 29 de janeiro deste ano de 2010. Em dois meses,
com afinco, mas rapidamente, preparei este meu voto. Isso na
medida em que --- e por certo não me excedo ao observá-lo ---
a estabilidade social reclama pronto deslinde da questão de
que aqui estamos, agora, a nos ocupar. Pronto deslinde, de
uma vez por todas, sem demora.
Observações finais
59. Retorno ao parecer do eminente Procurador Geral da
República. Impõe-se, sim, o desembaraço dos mecanismos
que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu entre
nós durante as décadas sombrias que conheci. Que se o faça -
24 As portas que Abril abriu, Editorial Comunicação, Lisboa, 1975.
65
-- e se espera que isso logo ocorra --- quando do julgamento
da ADI n. 4077, na qual é questionada a constitucionalidade
das Leis ns. 8.159/91 e 11.111/05. Transcrevo trecho desse
parecer, que subscrevo: “Se esse Supremo Tribunal Federal
reconhecer a legitimidade da Lei da Anistia e, no mesmo
compasso, afirmar a possibilidade de acesso aos documentos
históricos como forma de exercício do direito fundamental à
verdade, o Brasil certamente estará em condições de, atento às
lições do passado, prosseguir na construção madura do futuro
democrático”.
60. É necessário dizer, por fim, vigorosa e reiteradamente, que
a decisão pela improcedência da presente ação não exclui o
repúdio a todas as modalidades de tortura, de ontem e de
hoje, civis e militares, policiais ou delinquentes.
Há coisas que não podem ser esquecidas. Em um poema,
Hombre preso que mira su hijo, Mario Benedetti25 diz ao filho
que “es bueno que conozcas/que tu viejo calló/o puteó como un
loco/que es una linda forma de callar”; “y acordarse de vos ---
prossegue ---/de tu carita/lo ayudaba a callar/una cosa es
morirse de dolor/y otra cosa morirse de vergüenza”. E assim
termina este lindo poema, que de quando em quando ressoa
em minha memória: “llora nomás botija/son macanas/que los
hombres no lloran/aquí lloramos todos/gritamos berreamos
moqueamos chillamos maldecimos/porque es mejor llorar que
25 in Antologia poética, Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 2000,
págs. 113-115.
66
traicionar/porque es mejor llorar que traicionarse/llora/pero no
olvides”. É necessário não esquecermos, para que nunca mais
as coisas voltem a ser como foram no passado.
Julgo improcedente a ação.
67
Lei n. 6.683/79
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido
entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes
políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus
direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e
Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos
Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e
representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos
Institucionais e Complementares (vetado).
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por
motivação política.
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados
pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado
pessoal.
§ 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar
demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do
respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas
as exigências do art. 3º.

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