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Contos-->um cheiro agridoce -- 21/06/2000 - 20:49 (flávio augusto menezes filho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Todo dia era a mesma coisa, acordava cedo e fazia o próprio café. Pensava: mais um dia. Poucas coisas davam a ele ainda alguma satisfação. Limpar a coleção de moedas de prata era uma delas. Ficava horas e horas absorvido nessa ocupação, fugindo da mesmice da vida. Até o costume de escrever na velha máquina se fazia agora, também, de forma automática; não mais lhe proporcionava prazer.
O dia não havia acordado quando ele despertou. Levantou-se lentamente e observou a velhice: as mãos trêmulas e os passos lentos denunciavam-na. Isso ele constatou com amargura. A cabeça não, a cabeça teimava em permanecer jovem. Talvez fosse isso a grande dor do homem, presumiu: ver, a partir de um intelecto ainda sadio, a consumação do corpo. Tomou um banho, que o desvaneceu de tudo. Sentiu-se leve. Uma leveza esquisita. Teria lavado o próprio peso do corpo?
As pessoas ainda dormiam. Solitário, foi até a cozinha onde preparou o café da manhã. Achou o gosto da refeição um tanto alterado. Mais doce que o ordinário. Um doce sabor! Mas resignou-se, e comeu. Da varanda da casa já se podia ver os primeiros raios de sol da manhã que nascia. Os pássaros começavam a cantar. Sentiu um fiapo de alegria mas não entendeu por quê. Fazia muito tempo que não sentia alegria. Desde quando a mulher morrera ficara indiferente a tudo. Vivia apenas; ou sobrevivia. Tornou-se sombroso e vazio. Por isso, pedia insistentemente sua morte a Deus. Mas via, com tristeza, seus pedidos não serem atendidos. Na certa Deus – ou a vida – tivesse outros planos para ele. Só que se Deus o sondasse não pactuaria com tais planos; porque era de seu gosto não viver. De quando em quando pensava no suicídio. Mas desistia da idéia, de pô-la em ação. Seria covardia ou o limiar da coragem, se perguntava. Queria morrer mas desejava que a morte viesse pela mão da vida. Assim seria mais nobre. E a nobreza, ele filosofava, tem muito maior preço após a morte. Há que se morrer, mas com dignidade. Preocupava-se com tais conceitos. Ele observava que a morte visitava um sem número de pessoas, mas teimava em não procurá-lo. A porta estava aberta mas ela não entrava. É engraçado, avaliava, a morte parece querer, preferencialmente, aqueles que não a querem.
Os vizinhos acostumaram-se a vê-lo sentado diante da máquina de escrever, escrevendo sabe-se lá o quê. As pessoas não se aproximavam muito. Circulavam-no à distância. Observavam-no como se ele fora um objeto inanimado, desses que enfeitam um canto de sala. No passado, as pessoas colavam nele feito carrapato, mas agora, que era um velho decrépito, todos se afastavam.
Pensou em escrever alguma coisa nova ou continuar com o que já vinha escrevendo. Sentou-se defronte da máquina, mas desistiu. Achou que ali estava o sofrimento de todo dia. Por isso, levantou-se da cadeira. No corredor, parou diante do quarto do neto. Hesitou mas resolveu entrar. O neto dormia placidamente; ainda era cedo e, em breve, ele acordaria para ir à escola. Aproximou-se, beijou-o com ternura. Isso lhe deu grande prazer. Raras vezes beijara o neto. Quanto tempo perdido, meu Deus! disse de si para si. O neto se mexeu, ameaçando acordar; mas apenas se virou para o outro lado da cama. Voltou a dormir. Melhor assim, pensou o velho.
Em vez de ir diretamente ao seu quarto como planejara, foi até biblioteca. Examinou alguns dos livros. Havia ali vida vivida: dores, angústias e, por que não, até algumas alegrias. A estranha sensação de leveza não lhe saía do corpo. Necessitou compor-se. Foi ao quarto de dormir, abriu o armário, escolheu a roupa que lhe conveio, e vestiu-se. Mirou-se ao espelho, gostou do que viu: tinha um brilho jamais visto.
Já era manhã alta. O neto tomava café na sala de jantar, já todo pronto para ir a escola. Olhou o neto com suavidade. Pegou o rosto dele e o beijou novamente. Nenhuma reação do neto; como se o avô não houvesse feito o carinho. Não estranhou o fato, estava acostumado à indiferença das pessoas da casa. O neto era a única exceção mas... parece que já não seria mais.
O sol brilhava forte, uma brisa gelada percorria a manhã, adentrando na casa. Julho é sempre assim: manhãs frias, dias amenos. O silêncio havia se instalado no jardim. Apenas se ouvia o tiquetaquear da tesoura do jardineiro, que cumpria a tarefa de cuidar das rosas. Circulou por entre os canteiros do jardim. Passou várias vezes por detrás do jardineiro, mas este não lhe deu nenhuma atenção. Importunou-se com a desatenção. Pigarreou, entretanto nada tirava a atenção do jardineiro. De repente, ouviu chamar por seu nome: Jeremias! Jeremias! Quem será, indagou-se. Nada viu; nem o jardineiro nada percebera porque permaneceu impassível, atenção apenas no trabalho. Jeremias! Jeremias! chamaram-no de novo. Quem será meu Deus? Jeremias! Jeremias! Caminhou vagarosamente na direção da voz, o ouvido como radar, tentando identificar de onde ela partia. Pareceu-lhe que vinha de um canteiro de rosas amarelas. Abriu caminho por entre as rosas e viu no meio delas uma flor que se diferençava de todas as outras: era uma rosa azul, e era lindíssima. As pétalas tinham dois tons de azul. Escuro no centro mas, a medida que as pétalas iam em direção às bordas, o azul perdia vigor, ainda que não perdesse beleza. Jeremias! Jeremias! Era a rosa azul quem lhe chamava? Achou que sim. Teve ímpeto de colher o raro exemplar, guardá-lo consigo como se guarda algo de muito valor; guardar aquela rosa com egoísmo. Mas desistiu porque não quis que a rosa morresse antes dele. Ou ela já havia morrido? De súbito a rosa azul expeliu um cheiro agridoce que envolveu de melancolia o ar. Lembrou-se da mulher e teve saudade dela. Sentiu um pesado sono. Voltou para dentro da casa porque precisava dormir. Surpreendeu-se com um rumorejo à frente da porta de seu quarto. As pessoas gritavam angustiadas por seu nome como se ele estivesse lá dentro. Mas como, se eu estou aqui bem ao lado de vocês. Estarei sonhando? Ou...

Flávio Augusto Menezes Filho
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