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Contos-->matadouro -- 18/08/2002 - 14:18 (Paulo Belushi) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Quando decidi aceitar fazer aquela reportagem, não sabia direito onde estava com a cabeça. E continuei sem saber até aquele momento em que vimos a placa, indicando que o matadouro estava perto. A diferença era que agora eu tinha consciência de que até aquele momento eu não havia tido consciência alguma.
O fotógrafo assobiava uma canção de amor caribenha. Mas meu espírito não estava para sentimentos tão belos. Estava apreensivo. Na última cidade que passamos, a recepção das pessoas não foi muito boa à ideia de visitar aquele matadouro. Nenhuma informação, nenhuma declaração. Apenas o farmacêutico, aparentemente um homem esclarecido, disse:
— O povo daqui acha que o matadouro é mal assombrado.
— Mal assombrado?
— Ninguém que tenha ido até o lugar voltou para contar a estória. Acham que o coronel come carne humana, e é dado a práticas satânicas.
— Esta é também a sua opinião?
— Claro que não. Eu acho que ele usa trabalho escravo, e mata os trabalhadores antes de pagá-los. Certa vez dois fiscais do ministério do trabalho vieram atrás dele, e não voltaram mais.
— Mortos?
— Provavelmente.
Lembrava-me deste diálogo enquanto avançávamos na estrada. Diálogo que se confundia com a reunião que eu tive, dois dias antes, com o diretor do jornal.
— Para todos os efeitos, vocês são da revista rural. Estão visitando matadouros por todo o país para averiguar como estão cumprimento as novas determinações do ministério da agricultura. Mas isto é pretexto para vocês investigarem as denúncias de trabalho escravo que nos chegaram pelo e-mail.
A soma de tudo me deixava apreensivo. Afinal de contas, o que haveria naquele matadouro? Que tipo de prática se poderia estar realizando naquele lugar? E, o que mais me intrigava, tudo não passaria de uma má relação de trabalho ou haveria muito mais?
Nos portões da fazenda onde ficava o matadouro, uma caveira de boi estava imersa em um sangue novo, ainda mal coagulado. O fotógrafo não perdeu tempo e registrou a terrível imagem.
— Dependendo, já temos a foto para abrir a matéria.
O caminho entre os portões e a casa grande parecia ter sido decorado para causar uma boa impressão nas visitas. A cada tora da cerca, uma caveira, em sua maioria com os restos de carne ainda em decomposição. Tudo cuidadosamente registrado pelo fotógrafo, que fez questão de eternizar a imagem. O pior, no entanto, se perderia com o tempo: o cheiro.
À cem metros da casa, dois homens armados de fuzis se aproximaram do carro.
— Quem são vocês?
— Somos da revista rural. Viemos entrevistar o coronel G..., sobre os impactos da nova lei da carne.
Eles se entreolharam, e com um aceno de cabeça permitiram a nossa entrada. Paramos à frente da casa, onde o coronel em pessoa desceu para nos receber.
— Sejam bem-vindos a esta humilde fazenda. Em que posso servi-los?
O homem tinha uma atitude estranhamente cortês, em dissonância com o ambiente e as pessoas ao nosso redor. Poderia dizer que ele tinha a fineza de um conde. Um conde Drácula. Mas preferi evitar que o medo transparecesse, e adotar a mesma atitude para com o homem.
— Queremos a sua opinião sobre as novas medidas do governo quanto à qualidade da carne.
— Claro. Aceitam um café, um bolo?
Entramos na casa. Sentamo-nos em sua vasta sala, toda decorada com armas medievais.
— Minha família vem da Alemanha. Viemos a este país fugindo do nazismo, terrível. E acabamos por nos instalar nestas terras, onde desenvolvemos a arte pecuária.
— São judeus? perguntou o fotógrafo.
Percebi claramente que ele não gostou da pergunta. E entendi quando descobri que mentia. Através da cortina que separa a sala do resto da casa, era possível, de onde eu estava, ver uma suástica gravada à porta de um quarto.
— Éramos alemães humanistas. Não podíamos aceitar tamanha barbaridade.
— Entendo, eu disse. Um homem que vive a decepar vidas animais não pode aceitar de forma alguma a violência.
Ele percebeu a minha ironia descarada, e fez questão de retrucar seco:
— O meu trabalho é garantir alimento de qualidade para a humanidade.
— É isso que eu quis dizer. Se vive assim, não pode aceitar a violência gratuita em função de um discurso fajuto de humanidade.
A situação ficou tensa. O homem apertava o cabo de sua bengala com a força que queria utilizar contra meu crânio. O fotógrafo tentou salvar a situação, com sucesso, mudando de assunto:
— Tinham negócios na Alemanha?
— Éramos pecuaristas. Viemos para cá e optamos por seguir no mesmo negócio.
— Então trouxeram ao país grande soma de dinheiro? perguntei.
— É claro. Como éramos arianos, o governo nos permitia viver em outros países com o conforto que tínhamos em nossa pátria.
— Entendo... O nazismo acreditava que vocês poderiam formar uma Quinta Coluna nos países de destino.
Novamente ele apertou com força o cabo da bengala. E novamente preferiu uma saída diplomática:
— Homens da Gestapo nos procuraram quando chegamos ao seu país. Propuseram-nos um trabalho de espionagem entre os grandes latifundiários. Meu tio aceitou. E foi morto pela polícia secreta de seu país, denunciado por grandes fazendeiros daqui.
— Ah... isto explica a suástica gravada na porta daquele quarto. Provavelmente era dele.
— Era... Hoje... é uma simples despensa.
A criada chegou com o bolo e o café. Servi-me de uma xícara grande, como um bom jornalista estressado, e me poupei do açúcar. Enquanto misturava o café e o coronel se servia, fechei a armadilha em que havia colocado o coronel:
— O que me parece muito curioso é que um alemão humanista, ou um membro de uma família de alemãos humanistas, tenha aderido à Gestapo e feito espionagem para o nazismo. Com a família sabendo...
— Nós não sabíamos! Viemos a descobrir quando ele faleceu.
— Sim, mas ele gravou a suástica na porta de seu quarto com o conhecimento de todos os que achavam o nazismo uma barbaridade...
— Éramos democratas, defendíamos a liberdade de opinião de cada membro da família. Outro tio meu era comunista, e militou junto ao PC deste país. O meu tio nazista havia sido da juventude hitlerista. Não nos espantava que ele desenhasse a suástica na porta do seu quarto.
Aproximei o café de meus lábios, e pude sentir pelo aroma que havia algo de errado. Fingi tomar um gole enquanto o coronel explanava sobre o espírito democrático de sua família, e deixei a xícara sobre a mesa.
— Você, coronel, obviamente é um grande democrata.
— Desde a meninice.
— Por isso decidiu apoiar o golpe militar, que instalou no país o terror, a tortura e a repressão...
Ele mudou a posição com que segurava o cabo de sua bengala, como se fosse acertá-la no meio de minha cabeça. Mas sequer a levantou. Decidiu encerar a polêmica com duas frases que mudavam o rumo do assunto:
— Você não veio perguntar sobre minhas opiniões políticas do passado, mas sobre a lei da carne. Como está o café?
— Eu gosto de café expresso. Achei muito fraco. E, como bom jornalista, decidi ser mal educado e deixar a xícara sem terminar de beber.
E antes que ele pudesse ensaiar qualquer discurso sobre o café:
— Vamos ao assunto da visita. Você está adaptando o seu matadouro às novas exigências do ministério da agricultura?
Ele deu um sorriso cortês, para deixar claro que havia percebido o meu movimento.
— A lei da carne é uma coisa. As determinações do ministério outra coisa. A lei vem de um processo de debate na sociedade entre consumidores e produtores, sobre um padrão de qualidade. É avançada, moderna, e significa um progresso para a nossa pecuária. As determinações, por sua vez, são uma atitude autoritária, e dizem respeito a uma pressão do mercado europeu sobre a qualidade de nossa carne.
Enquanto anotava, refiz a pergunta de outro modo:
— Isto significa que você é contra estas determinações e não as cumprirá?
Um novo sorriso, desta vez com um pouco mais de ironia:
— De forma alguma. Cumprirei as determinações que estiverem de acordo com a lei da carne. As outras eu...
— As determinações sobre relação de trabalho não estão incluídas na lei da carne. Isto significa que você descumprirá a determinação de registro em carteira e fim do trabalho infantil?
— De forma alguma, não sei de onde você tirou esta idéia. Há cem anos este país tem uma lei trabalhista, e é nosso dever cumpri-la.
Dei uma mordida em um pedaço de bolo.
— Gostoso este bolo. Rolam boatos de que o senhor, coronel, usa trabalho escravo em sua fazenda. O que me diz?
— Isto é uma invenção absurda, respondeu com a calma de um lorde inglês. Onde rolam boatos deste tipo?
— Na cidade vizinha, no meio dos produtores rurais do país e na nossa redação.
Ele silenciou-se. Mastigou calmamente um pedaço de bolo, atitude que me fez comer o meu com toda a tranqüilidade. Limpou as mãos e os beiços em um guardanapo, atitude que repeti. Por fim, olhou para mim e comentou:
— O seu amigo não dormiu no caminho para cá?
Virei-me para o fotógrafo. Ele estava caído em sua poltrona, como se tivesse desmaiado de sono. Estranhei a situação, principalmente devido ao comentário do coronel. Entretanto, em uma fração de segundo somei as peças e compreendi o que havia:
— O café...
— Isto mesmo, meu rapaz! Você fez bem em ter evitado o café, e em ter tocado apenas no que eu também toquei. Isto retardou um pouco a sua morte.
Os seguranças do coronel entraram na casa. Levantei-me assustado, e me assustei ainda mais quando um deles apontou uma arma para minha cabeça. O coronel, com sua cordialidade mortal, sorriu e completou o discurso:
— Se não reagir, a retardará um pouco mais.
Fomos levados ao matadouro da fazenda. Ali, dizia o coronel, eu entenderia perfeitamente qual era o seu padrão de qualidade, e o que se passava com os seus trabalhadores:
— Dizia Maquiavel que devemos fazer o bem aos poucos e o mal de uma só vez. Pois bem, dizem que causo dor aos meus trabalhadores. Enganam-se. Eles têm apenas alguns segundos de dor, mas uma eternidade de paz.
Quando a porta do matadouro se abriu, eu pude entender perfeitamente o que queria dizer aquela interpretação falaciosa do político italiano. Por uma grande extensão se espalhavam bancadas imundas de sangue, onde soldados decepavam corpos humanos em pedaços que se assemelhavam a cortes da gado.
— Pense nestes corpos quando fizer o seu próximo churrasco, meu caro repórter. Isto é, se viver até ele, claro.
— Por isso ninguém volta daqui.
— É óbvio que voltam. Para junto de Deus. Ou do Diabo.
— Esta é sua carne de qualidade?
— Quer coisa melhor? O homem não foi feito à imagem e semelhança de Deus? Ora, comer de minha carne é como tomar a eucaristia, quero dizer, é quase como comer do próprio Deus.
O fotógrafo foi levado a uma das bancadas, e dilacerado em questão de minutos. Enquanto todos os seguranças entravam em êxtase com aquele festim diabólico, afastei-me até a porta. Olhei para ver se o caminho até o carro estava livre, e corri. Quando perceberam, eu já estava ao volante, rumo à saída da fazenda.
— Deixem-no, deve ter dito o coronel. Ele não pode nos fazer nada. A câmera e os filmes do fotógrafo estão comigo, e ele não tinha gravadores.
Imagino que ele tenha dito isto, e se acalmado com a minha fuga, acreditando que meu testemunho não passaria de um conto fantástico. E tinha razão. Tudo não passaria de um conto fantástico, se o filme onde meu colega registrou a paisagem do lugar, incluindo as caveiras mal decompostas, não tivesse sido deixado comigo ao chegarmos à casa. E se eu não tivesse deixado cuidadosamente ligado no bolso interno de meu paletó um pequeno gravador contrabandeado de Taiwan.
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