O BRASIL DO HOMER
Eles desembarcaram no Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, causando polêmica. Manchetes nos jornais, comentários irados, reclamações de todos os cantos do Brasil. No episódio "Blame it on Lisa" da última temporada do desenho mais legal do mundo - os Simpsons, claro - a família típica americana visita pela primeira vez o nosso país. E, pra variar, ataca pra todo lado.
Bom, pra quem não conhece os Simpsons, criados por Matt Groening há 13 anos, mas já viu o filho assistindo aquele desenho onde as pessoas são amarelas e um cara gordo está sempre falando "humm, rosquinhas", ou "chocolate...", aqui vai um breve comentário: você pensa que seu filho está assistindo a um inocente desenho animado, mas se prestar atenção no texto, vai perceber um tom extremamente inteligente e irónico investindo contra todos os pilares do american way of life. Sempre foi assim, desde o primeiro episódio. Os Simpsons não é um desenho inofensivo. E não foi feito para o seu filho, e sim para você (e você, que não tem filhos, mostre para seus pais).
Nesse episódio (ainda inédito aqui, a nova temporada começou dia 09/06, na Fox e sabe-se lá quando no SBT), Homer recebe uma conta de telefone caríssima, com longas ligações para o Brasil. Descobrem depois que foi uma atitude da bondosa Lisa, que estava sendo responsável por um moleque órfão chamado Ronaldo, que vive no Rio. Ficam então sabendo que o garoto desapareceu e resolvem vir procurá-lo. Bom, o roteiro em si não vou contar. O que interessa é a polêmica que o desenho causou - até o nosso ilustre presidente se irritou com a história, e agora querem proibir (!!) o desenho de ser exibido no Brasil.
Você também pode se irritar com os tradicionais erros que os americanos cometem quando falam da nossa cultura, e que também estão lá no desenho: brasileiros falando espanhol (apesar da Marge dizer para o Bart que no Brasil se fala português), macacos correndo pelas ruas do Rio de Janeiro, uma confusão entre samba e rumba, e algumas coisas mais tristes - eles acham que nós inventamos a desprezível macarena. Com exceção desses erros básicos, perfeitamente ignoráveis se lembrarmos de como nós também não sabemos nada sobre a cultura dos outros países (alguém sabe me explicar o baseball e o futebol americano?), o episódio não mente em mais nada. Olhe essas cenas:
1- Bart está no quarto do hotel e liga a televisão. Marge pergunta "que programa é esse?" e ele responde "um programa infantil". Na TV, uma mulher exoticamente fantasiada, seminua, dança lascivamente com alguns personagens. Suas assistentes, de camisetinha curta e shortinhos, se esfregam em letras gigantes do abecedário. É mentira que aqui, desde crianç.. ou melhor, de "baixinho", é isso o que se aprende pela TV?
2- Enquanto uma vendedora numa barraca distrai Homer e Bart, seus filhos roubam suas carteiras. Crianças assaltantes? Seria fruto da imaginação de Matt Groening?
3- Homer pega um táxi e é sequestrado. Os sequestradores pedem 50 mil dólares de resgate. Sem comentários.
4- Marge e Lisa, diante de um desfile de escola de samba (erroneamente chamado de "parada"), tentam fugir do ritmo contagiante do "samba". Um folião as impede, dizendo que ali até correr é um tipo de dança. E, no meio de um monte de bêbados, surge um cara em chamas, gritando "estou em chamas!! e continuo dançando!". Bom, basicamente, isso é o nosso carnaval mesmo...
5- Homer é levado para a Floresta Amazónica (onde está seu cativeiro). Um dos sequestradores diz "olhe a floresta agora... antes de a queimarmos toda". Mentira?
Imagina como seria o desenho se eles soubessem que presidiários negociam mísseis iguais aos do Bin Laden de dentro da cadeia (usando até o fax da penitenciária!) que deputados, senadores, vereadores, etc. estão tão acostumados a roubar que nem percebem mais que estão roubando, que jornalistas são condenados à morte por traficantes e que apesar de nada nesse país funcionar direito nós, respeitáveis cidadãos, pagamos muito mais impostos do que eles, os ricos americanos. Eles iriam chorar de rir.
Ficar ofendido com o desenho, pra mim, é ser muito hipócrita, "defendendo as cores do Brasil" enquanto já se está acostumado com nossa miséria, como quem desvia o olhar da criança esfomeada viciada em crack. É não saber olhar para os próprios defeitos, não admitir as suas próprias culpas. Não ter vontade de mudar, não ter senso da realidade. Enfim, não ter a mínima noção do ridículo.
Renato Cação Cambraia não tem conexão rápida, por isso demorou uns 40 minutos pra baixar os 15Mb do desenho dos Simpsons pelo Kazaa.
A SEMANA, 22/06/02 |
