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Contos-->o último dia de nossas vidas -- 18/08/2002 - 14:21 (Paulo Belushi) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
“Por que os homens se submetem àquela restrição à liberdade em que os vemos viver nos estados? Pelo medo da morte, pelo desejo de uma vida melhor e pela esperança de conquista-la através do trabalho” (Thomas Hobbes)

Lembro-me como se fosse hoje do metafísico bêbado que encontrei há alguns anos. Estava eu a beber com amigos quando, sem mais nem menos, surgiu o assunto de nossas culpas e pecados. Querendo parecer filosófico, disse:
— Olhem, eu não me espantaria se, à hora da morte, me arrependesse de quase tudo o que fiz em toda a minha vida.
Foi quando ele interveio. De um nada interrompeu-me e falou a todos na mesa.
— Ninguém se arrepende. À hora da morte, toda culpa se acaba, toda lei cai por terra. É nesta hora que o homem se encontra mais livre em toda a sua vida.
Disse e caiu, morto.

Giovano Paixão já não conseguia mais contar quanto tempo ficava oscilando entre internações, UTI’s e laboratórios de análises clínicas. Algo havia de estranho com ele, aquela misteriosa tontura que o atacava de vez em quando e ninguém conseguia dizer porque. Esperava ansiosamente pelo dia em que, finalmente, se veria livre daquele ambiente asséptico dos hospitais que cheiram a iodo podre.

— Descobrimos qual o seu problema, Giovano.
— É mesmo? Finalmente!
— Infelizmente, não é uma boa notícia.
— Não?
— Não. Você tem uma doença rara, com poucos casos registrados na história da medicina, um mal que se ataca o seu cérebro sem que você possa perceber. Um dia você tem tonturas, e elas se atacam de vez em quando. Até que uma, quando o seu cérebro está prestes a morrer, é fatal.
— E o que devo fazer para curar isso?
— Nada. Descobrimos tudo tarde demais. Não há nada que se possa fazer. Em menos de uma semana, você morrerá.
Silêncio. Espanto total na face de Giovano.
— Diga-me, quanto tempo mais ficarei internado?
— Mais nenhum dia.
— Como!
— Não quero te prender aqui. É sua última semana, você já deve estar farto de hospitais, remédios e enfermeiras gordas. O melhor que você pode fazer é morrer feliz, aproveitar seus últimos minutos.
— Então eu fico cara a cara com a morte e tudo o que você me diz é que devo aproveitar meus últimos minutos?!
O doutor respira fundo, como se procurasse no fundo de seus arquivos alguma palavra de consolo. Mas só consegue pensar na mulher fantástica que o espera de espartilho vermelho no motel. Procura, então, alguma palavra que o permita liberar logo o paciente e receber a grana do plano de saúde. Aí sim, encontra alguma coisa:
— Pense no seguinte: há punição no mundo maior que a morte? Não, não há. Você está condenado. Nada de pior pode acontecer a você.
— Obrigado doutor, é tudo o que um moribundo precisava ouvir...
— Espere, eu não terminei. Se nada de pior pode te acontecer, toda a sua culpa acaba aqui. Você está condenado à liberdade.
— Como assim?
— Ninguém pode te fazer mal algum maior do que este que o próprio Deus te reservou. Logo, você pode fazer o que quiser. Não existe lei nem força que possa impor limites ao seu comportamento. Pense nesta última semana como um bônus.
— Você está me dizendo pra...
— Estou te dizendo para você matar, roubar, estuprar, realizar todas as taras que a civilização proibiu ao animal homem. Seja aquilo que todos nós sonhamos ser: totalmente livres, totalmente loucos. E, ao final de tudo, tenha uma tontura e morra, que disso você não pode fugir mesmo.
— É tudo o que você tem a dizer?
— Bem,você também pode passar esta semana em um mosteiro, rezando e dando o rabo para noviços sarados e musculosos, mas eu não faria isso.

Tocou o sino no colégio de freiras. As alunas saíram para o intervalo. Duas pularam o muro e se dirigiram ao bar mais próximo, enquanto soltavam o botão da gola de suas camisas alvas.
— O que desejam?
— Dois maços de cigarro e uma cerveja gelada.
Enquanto o balconista se dirige ao freezer, Giovano se aproxima. Nas mãos, um baseado aceso, como se estivéssemos em Amsterdã.
— Aceitam? oferece às garotas.
— Não, obrigado, só fumo maconha na casa do meu namorado, responde uma delas.
— Então talvez você queira colocar outra coisa na boca.
Diz e abre a braguilha da calça, colocando o pau pra fora.

O policial parou a viatura perto da banca de jornal. Desceu e foi extorquir o jornaleiro, exigindo a taxa semanal de segurança. O pobre comerciante estava prestes a tomar umas coronhadas na cara por não liberar a grana quando ouviram uma sirene tocar.
— Filho da puta! Volta com esta viatura aqui!
De dentro do carro, Giovano mostra o dedo médio para o policial.

Os leões de chácara garantiam que ninguém entraria na grande festa das modelos de uma poderosa agência internacional. Tinham ordem para descer o cacete se fosse necessário. Ninguém poderia atrapalhar as mulheres mais lindas do mundo de cheirar pó e fazer orgia.
— Quero entrar, disse Giovano, com seu smoking cor de abóbora.
— Sinto muito, mas o senhor não está na lista, dizia uma mocinha sorridente com duas jamantas a seu lado.
— Como não? E eu estou com aquelas duas vagabundas ali.
Apontou para as meninas do colégio de freiras, que estão sorridentes dentro da viatura.
— Não posso fazer nada, senhor, são as normas da casa.
— Normas da casa... sei.
Deu meia volta e entrou na viatura. Aparentemente, ia embora. Deu uma ré, virou o carro de frente a portaria da casa noturna. Acelerou e avançou. Todos, principalmente os leões de chácara, correram. A viatura invadiu a pista de dança.
— Onde já se viu, eu perder uma boca-livre...

O delegado já não agüentava mais. Choviam queixas e boletins de ocorrência falando da ações de Giovano. Desde sedução de menores, porte de drogas, assalto, distúrbios à ordem, desacato à autoridade.
— Porra, pessoal, eu sou um só!
A sua ante-sala estava cheia de jornalistas, o que o deixava mais preocupado ainda.
— Justo hoje, que o pessoal do bicho vem distribuir a propina...
Diante do caos instalado em sua delegacia, não teve outra alternativa senão convoca uma coletiva, para ver se tirava a imprensa do caminho e acalmava a população.
— Ok, nós já identificamos o elemento. Trata-se de Giovano Paixão, um sujeito doente, que andou freqüentando hospital pra caralho, e pelo jeito é chegado em enrabar umas enfermeiras e tomar morfina até ficar doidão.
— A polícia vai conseguir prendê-lo logo?
— Nós já estamos no seu encalço. Temos pistas seguras de onde ele pode estar. Algumas pessoas o viram por aí, e ninguém anda com uma viatura sem chamar a atenção. Creio que o pegaremos antes que ele possa aprontar alguma.
— E a população, corre algum risco com este louco pelas ruas?
— Risco nenhum, estamos com todo o nosso efetivo nas ruas para garantir a segurança. Acabou a entrevista, tenho uma reunião importante agora.
Repórteres dispensados, o delegado pode respirar aliviado e receber o bicheiro em sua sala de reuniões.

Quando a irmã de Giovano estava chegando em casa, se assustou com a quantidade de câmeras e repórteres que estavam em seu quintal. Um deles a viu, sorriu e gritou:
— Tem gente da família chegando.
Foi o suficiente para que todos se lançassem até ela numa corrida desesperada atrás da notícia:
— É verdade que o seu irmão é viciado?
— Quantos criminosos tem na família?
— Ele torturava gatos quando era criança?
A jovem correu até a porta da casa e, antes que pudessem atacá-la, seu pai a puxou para dentro e trancou a porta.
— Veja o desgosto que seu irmão nos causa!
— Olha, vô, estamos na televisão, comentou o sobrinho de Giovano, garoto cujo pai é desconhecido.

Estávamos em uma reuni]ao de emergência. O diretor daquele diário de grande circulação já tinha fumado três cigarros em cinco minutos. Andava de um lado a outro, gritando e fazendo jovens repórteres chorarem.
— Bando de incompetentes! Mais uma destas e eu demito todo mundo! como a gente é o último a saber desta merda de maluco que ataca a cidade?
— Bandido não tem assessor de imprensa, sussurra uma estagiária.
— Ah, o estagiário tinha que soltar sua brilhante opinião! Pois quando eu comecei no jornalismo não tinha essa estória de assessor de imprensa. A gente fuçava o lixo atrás da notícia.
— A gente mantinha um repórter na porta das delegacias, contra-ataca um velho jornalista. Você mesmo mandou cortar custos... Hoje, se não tem assessor de imprensa, não tem notícia, porque a gente mal dá conta de ficar copiando releases!
— Não é hora de ficar de choradeira. É hora de ter algo exclusivo nesta história, pra ontem!
A secretária passou-me um recado enquanto o diretor gritava. Disfarçadamente, o repassei a uma repórter amiga minha, especialista em conseguir grandes furos. Quando o diretor parou para tomar fôlego, ela interveio:
— Bem... eu não sei se vai servir, mas acabo de receber uma ligação do Giovano Paixão pedindo uma entrevista e garantindo exclusividade...
— Quem é este bosta?
— É o maluco que todo mundo procura.
— E o que você está fazendo aqui?

A repórter entrou pé ante pé no galpão onde encontraria Giovano. Olhou para os lados, para ver se estaria segura. Estava. Da bolsa de crochê, sacou um cigarro e acendeu. Enquanto fumava, ouviu barulho de risinhos infantis. Se aproximou e deu de cara com o sujeito chupando a xoxota de uma das colegiais, enquanto a outra sentava em seu pau.
— Desculpe, posso voltar outra hora, mas se não me engano você tinha uma entrevista comigo.
— Ah, é mesmo, a entrevista. Meninas, continuamos outra hora.
Giovano e a repórter conversaram por duas horas, sem que ela pudesse arrancar dele alguma informação que valesse uma grande história. Ele não se revelou viciado, nem possuído pelo demônio, não tinha ideologia, não era muçulmano nem adepto da contracultura. E quando ela falou tudo isso, ele rodou a baiana:
— Ah, então tudo o que você quer é ganhar um Prêmio Esso às minhas custas?! Pois de mim você não consegue nem história grande nem pequena. O que eu quero é aproveitar a minha última semana de vida. Em paz!
A jornalista parou. Conferiu seu gravador para ver se havia registrado aquilo. Felizmente, sim. A frase iria para a primeira página do jornal.

Um grupo de jovens distribuía panfletos em plena avenida principal. Todos nus, trepavam na rua e gritavam palavras de ordem em defesa da liberdade.
— Viva a liberdade. Vamos todos morrer em uma semana, como nosso líder Giovano Paixão!

O talk-show entrevistava aquele grande compositor nacional, autor de canções que fizeram chorar gerações de garotas.
— Então você compôs uma canção em homenagem a este Giovano?
— É uma homenagem a tudo o que ele significa para esta nossa sociedade careta e presa a padrões ultrapassados.

De seu esconderijo secreto, Giovano assistia a tudo na companhia de Southern Conffort e das duas colegiais que ele seqüestrou cinco dias antes. Assistia e dava gargalhadas homéricas.
— Imagina o que o pessoal da UTI está pensando agora...
Elas não responderam. Uma só ria, caída de bêbada a um canto da sala. Outra não parava de chupar o pau dele e acariciar o próprio clitóris.
— Meninas, chega de whisky. Vamos beber bebida de homem.
Elas não responderam. Uma só ria, caída de bêbada a um canto da sala. Outra não parava de chupar o pau dele e acariciar o próprio clitóris.
— Vamos a um bar aqui perto, tomar uma cerveja.
A bêbada vomitou, riu e virou o resto do whisky garganta adentro. A outra parou de chupar o pau, reclamando que aquilo não levantava mais, e viu o que poderia fazer com duas canetas bic.
— Tudo bem, vou só.
Cambaleante, barba por fazer, dirigiu-se ao bar próximo ao galpão onde escondera. Sentia uma leve tontura, e parecia que era o fim. Mas conseguiu chegar. Sentou-se a uma mesa do lado de fora e pediu a cerveja. Ouviu uma conversa na mesa ao lado, de pessoas falando de culpa e pecado. Tudo girava ao seu redor, mas ele conseguiu entrar na conversa e dizer:
— Ninguém se arrepende. À hora da morte, toda culpa se acaba, toda lei cai por terra. É nesta hora que o homem se encontra mais livre em toda a sua vida.
Disse e caiu. Eu corri checar os pulsos. Estava morto.
— Quem será? perguntou alguém.
Tirei seus documentos do bolso. Reconheci o nome dos jornais.
— Avisem os guardas. O maluco mais procurado da cidade acaba de morrer.
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