Este artigo tem como pretensão fazer uma análise da triologia Caminho composta por sonetos escritos pelo poeta português Camilo Pessanha,
nascido em Coimbra, 7 de Setembro de 1867, e falecido em Macau, 1º de Março de 1926.
Primeiramente o título "Caminho" evoca-nos a dispormos o olhar em frente do que se segue, ou seja, uma estrada, via, rua; tal evocação parece, a priori, ecoar em nosso íntimo: Vida.
No primeiro soneto o poeta declara ter sonhos e sentir um "vago receio", medo; sua disposição anímica é a de ir a medo na aresta do futuro, segundo PINHEIRO "aresta pode significar caminho estreito", por onde o poeta segue em atitude saudosista, já que o presente por ele referido logo vira passado quando ele (o poeta) chega ao futuro.
Veja que a saudade sentida se dá porque o presente, apesar de triste, apesar da dor (1º verso da 2ª estrofe) é mais seguro já que o futuro
é incerto, impreciso.
A metáfora "desmaiar sobre o poente" tem o sentido de sono de sono, de adormecer, e não de morrer. Veja que o sentimento de dor do poeta se
intensifica ao anoitecer de tal modo que o véu que cobre o firmamento, a noite, é a dor que lhe cobre o coração. Pois sua dor é "está falta d
harmonia", que poderia ser entendida como uma inadaptação ao mundo, à sociedade, a si mesmo; porém no poema a inadaptação se dá à mudança:
presença/ausência de luz, a oscilação entre dia e noite. A noite é uma "luz desregrada", ou seja, sem ordem, ora fraca, ora forte, na maioria das vezes penumbrosa. Por isso, não havendo luz, o coração é "quase nada". Veja que é durante a madrugada que o eu-lírico dispõe-se em pranto.
No 2º soneto, a apóstrofe conduz o leitor para dentro do poema. A sensação causada pelo sujeito oculto (tu) do verbo encontrar é a de que o poeta está falando com a pessoa que lê o poema, parecendo haver a busca de um feed-back mudo e causando uma sensação apelativa de alta intensidade lírica, fazendo o leitor adotar a mesma (ou similar) disposição anímica. Claro que essa 2ª pessoa não é o leitor, é apenas um caminhante que a partir daí segue com o poeta, que declara não saber o que procura: a felicidade, o amor, a paz, tudo isso fica em aberto com esse verso.
No entanto, a caminhada, que já dissemos antes pode representar a vida, é cheia de problemas (espinhos) e o que se quer alcançar - o
indefinido - "é longe", a ponto de os dois caminhantes terem que descansar. Param então, numa venda, numa taberna, e bebem juntos vinho, claro que o tipo de bebida se deve a cultura portuguesa, vale lembrar que lá o vinho é
bebido em temperatura ambiente.
A terceira estrofe parece-nos um momento de delírio, onde cada um dos caminhantes bêbados lamentam-se, queixam-se.
Ambos bebem e choram. A tristeza é-lhes comum, assim como a garrafa de vinho.
Entre um soneto e outro há uma lacuna irrelevante; pouco importa se eles passaram a noite a beber ou se dormiram. No entanto, a estrofe seguinte reforça a idéia da vigília.
Na terceira estrofe, declara o poeta que tal repouso fez bem e renovou-lhes as forças. Vai amanhecendo, é hora de seguir o caminho, para
tanto "Eis (aqui estão) os nossos bordões da caminhada" (grifo nosso), a palavra bordões que significa cajado, objeto para apoio, comparece de forma figurada significando amparo, auxílio, companhia. Que bordões são esses? O poeta resolve encher as cabaças de vinho - eis os bordões - , pois esse vinho puro, virgem, ou seja, isento das coisas de um mundo corrompido, não será encontrado semelhante; o vinho é um néctar que lhe dará mais vigor.
Os dois caminhantes seguem um para cada lado. É desejo do poeta seguir só, olhar de frente, encarar sem medo o caminho todo, ou seja, a vida; podendo inclusive "resistir a grande calma": a morte.
A última estrofe é um apelo, um pedido. O poeta deseja mais e mais chorar e beber, "ter fé e sonhar", entregar-se ao devaneio, "encher a alma".
Essa análise que você leu, constitui-se apenas numa tentativa de apreensão das idéias expressas pelo poema. Claro que a análise aqui
apresentada, não é completa, nem essa era a intenção, mesmo porque tal não é possível, pois, primeiramente, trata-se de um poema lírico, e depois porque é um poema simbolista, cuja a interpretação é bem mais complexa.
Além disso duas caraterísticas são apresentadas na poética de Pessanha: "a tendência para o vago, quando foge da linearidade da vida pela construção de versos e de expressões interiorizantes; e a tendência para o vistoso..." (PINHEIRO, s/d:231) devido a primeira tendência é que nossa análise se encontra aberta.
Bibliografia:
PINHEIRO, Célio, Introdução à literatura Portuguesa. s/d/b.
O Poema:
Caminho
Camilo Pessanha
I
Tenho sonhos cruéis; n alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...
Saudade desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...
Porque a dor, esta falta d harmonia,
Toda a luz desregrada que alumia
As almas doidamente, o céu d agora,
Sem ela o coração é quase nada:
Um Sol onde expirasse a madrugada
Porque é só madrugada quando chora.
II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
- Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.
É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto
Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber no mesmo pranto.
III
Fez-nos, muito bem, esta demora:
enrijou-nos a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já o Sol: vamos embora.
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...
Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar - encher a alma. |