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Contos-->Simon Goner -- 21/08/2002 - 20:09 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
1.
Simon Goner






Fui batizado Simon. Este é meu nome: Simon, como Pedro, o santo e guerreiro. Lembro-me bem da figura de Santo Antônio, São José e Nossa Senhora, mas não me recordo bem de uma imagem de Simão, a Pedra. Também nunca soube o motivo que levou minha mãe a escolher esse nome pra mim. Pedro tinha uma missão. Eu não sou capaz de cumprir missão alguma. Sou fraco, sem ambições, sem firmeza. Pouco parecido com um pedaço bem definido de pedra. A idéia pode ter sido de meu pai, embora as decisões mais importantes sempre ficassem a cargo de minha mãe - esta sim, uma fortaleza - e creio que o nome de uma criança é muito importante. Será para uma vida toda e não conheço ninguém que tenha trocado de nome quando bem quisesse. Hoje Davi, amanhã Paulo e depois Marcos! Isso nunca acontece, realmente não.
Estou bem sendo Simon Goner. Se não estivesse não poderia mais reclamar com minha mãe e muito menos acusar meu pai de omissão. Vivo sozinho numa velha casa no centro, depois do acidente. Como dizem: meus pais não estão mais entre nós, neste mundo complicado. A solidão dos últimos anos não me incomoda muito. Mas ainda não entendi bem o que significa morte. Sempre sabemos que ela é inevitável e ainda assim ficamos perplexos com a sua chegada, quase sempre repentina. Sei que meus pais não estão mais aqui há oito anos, desde o acidente com o trem. Foi no ano da minha formatura. No ano em que me formei em engenharia meus pais ficaram menos ansiosos com o futuro do filho e resolveram cortar o país numa viagem de trem. No ano em que me tornei engenheiro meus pais ficaram presos em toneladas de aço retorcido. Nós devíamos esperar a morte com mais certeza.
Agora não tenho parentes e acredito que isso é uma vantagem grandiosa. Não empresto dinheiro a ninguém e também não tenho necessidade de pedir emprestado o que quer que seja a qualquer pessoa. Herdei algum dinheiro e dei aulas de física por algum tempo. Ainda assim sinto fome por dias, sem coragem de mover meu corpo até o supermercado. Deixo-me encostar num canto da sala com a televisão ligada em qualquer canal. Assim permaneço por horas, sem reação a nada. Não quero insinuar que perca minha consciência nessas horas de abandono. Ao contrário, se me encosto por 20 horas, mantenho a lucidez a cada movimento do relógio e sei quando a sede é insuportável. Então bebo uma grande caneca d água e me encosto outra vez. Se a campainha toca eu finjo - apenas finjo - que não ouço nada.
Creio que isso não pode ser chamado de demência. Sei que o ser humano tem manias tão diversas quanto são os modos de andar. Acaso pode ser chamado de louco o homem que não se veste de preto, nem por decreto? E a mulher que não varre a casa às sextas-feiras, tem algum distúrbio incurável? Cada um sabe o peso de seu fardo e a penitência para seus pecados.
Talvez meus sonhos - esses sim! - sejam mais insanos que eu mesmo. Minha consciência, tantas vezes classificada de incongruente, improvável, instável, é apenas um tosco esboço do inconsciente que comanda as profundezas de meus pesadelos. Minha personalidade é só a ponta de um enorme iceberg que é a minha mente agindo em meus sonhos, enterrada até o fim num oceano habitado por toda sorte de seres reais ou irreais, vivos ou mortos, mas todos muito vivos lá no fundo das águas.
Acham-me louco? Não conheceram ainda meus amados pesadelos! Amados, sim! Quando o movimento do mundo dos sonhos é maior que a totalidade dos movimentos da sua vida aqui fora - oh Deus! - como amamos nossas próprias frustrações que voltam a nós, em forma de sonhos!
No pesadelo eu tudo faço, tudo posso, tudo sei. Até o nada é possível a quem sabe ousar sonhar.
Não faz muito tempo, meus pesadelos falam comigo quando estou acordado. Que maravilha! Não preciso mais fechar os olhos para encontrar meus estranhos amigos. Agora me encosto num canto da parede, com a televisão ligada, e assim fico por horas, dias, talvez semanas, não sei. O tempo é estranho, agora. Não sei se as horas realmente passam ou se os ponteiros estão grudados há anos. O tempo não existe mais. É isso! O tempo nunca existiu e nós podemos fazer qualquer coisa. Tanto faz se já, mais tarde ou nunca mais. Temos o tempo todo e nenhum tempo nos resta mais.
Pois não vou mais ao supermercado. O meu corpo dói - ele ainda não sabe sobre a morte do tempo! - mas eu não me movo. Apenas uma grande caneca d água encharca meu estômago. Água que resiste ao tempo, evaporando e chovendo e virando água e vapor e chovendo, sem tempo, com todo o tempo, sempre e eternamente. Queria ser como água que não morre nunca e nasce sempre. Será que água tem pesadelos? Bem possível que não. Meus pesadelos são as minhas frustrações e água não se frustra, apenas é água, sempre e eternamente. Meus sonhos não realizados de hoje são meus queridos pesadelos de amanhã e sempre, eternamente? Talvez, pois não sou água.
“Isso pode ser perfeitamente explicável, Simon.” era o que diria a doutora Victória se soubesse mais sobre meus pesadelos. Pobre doutora! Apesar de seu comprovado talento, não sabe nada sobre contatos oníricos. É um bom rótulo: contatos oníricos de vários graus! Os meus são do último e mais avançado grau. Acredita nisso, doutora? É verdade, não estou delirando! E você, doutora? Não sonha também? Quantas vezes você sonhou com um belo lugar onde não existissem loucos desvairados e sentiu vontade de nunca mais acordar? Não sei... Acho que a doutora não sonharia assim. Num mundo sem loucos os psiquiatras não teriam emprego e os autores de livros de auto-ajuda teriam que escrever dicas de culinária para sobreviver. Eis um ponto mais que positivo na loucura humana: sustentar médicos, escritores, analistas, astrólogos, terapeutas e aproveitadores de toda sorte. Mas eu não sou louco, apenas sonho e sei que isto é perfeitamente normal. Se ainda estivesse visitando a doutora Victória iria tentar descobrir se pesadelos podem viciar um homem. É bem possível que o cérebro produza uma substância durante um sonho, uma enzima, um hormônio, ou qualquer coisa que possa deixar o homem dependente, como a morfina. O mundo pode estar precisando de um trabalho de desintoxicação de pesadelos. Algo como “Pesadelos: tô fora!”. Talvez.
Se sou um viciado, se pesadelos podem matar, então descobri uma maneira louvável de morrer. Talvez esteja sendo injusto com meus amigos pesadelos, os bad dreams. Meus idos estão encostados em mim e eu me deixo encostar neste canto da sala, por dias e dias.

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