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Contos-->A rua era estreita -- 22/08/2002 - 00:32 (Márcia Cristina Rodrigues Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A rua era estreita. Paralelepípedos desiguais, calçadas de pedra. Quarteirões pequenos. Silenciosa. Vez ou outra passava um transeunte. Automóvel era raro.

— Esse ponto de ônibus... Esse povo da prefeitura coloca longe as coisa e nóis é que sofremo. Gente velha precisa das coisa na mão, pra não ficá andando por aí. Se acontece alguma coisa, ninguém tá nem aí. – a senhora de cabelos cacheados, ralos, brancos, ia andando, falando com a outra, que da porta, sinalizava bom dia. Não esperava resposta. Desabafava assim, sempre que precisava ir pra cidade. Lembrava-se da dureza da vida.

As casas eram antigas, algumas mal conservadas, de portas e de janelas corroídas pelo tempo. Sem muita modernidade. Assemelhava-se a uma cidade interiorana, por ser distante do movimento do centro da capital. Se se ouvia palmas ao longe, era visita que chegava. Às vezes, um cheirinho de café surgia. Nem medo de roubo não tinha. Que o quê! Robá o quê, aqui?

Próxima à esquina, quase no final da Rua dos Perdizes, tinha uma casa geminada; a de lá era amarela e a de cá era azul, ambas cores claras, portão enferrujado, escada de cimento batido, bolor no muro todo. Ouvia-se rádio, lá no fundo da casa amarela. Dia todo sintonizado na mesma estação; dava notícia a cada hora que passava; e as horas, a todo minuto. Com vestido de chita, de flores miúdas, babados na barra, a dona da casa ficava na porta a mexer os pés, tirando-os do chinelo, acomodando ora o direito no esquerdo, ora o esquerdo no direito. Observava calada a rua, quase sempre da beira da janela, de poucas vidraças. E enquanto a rádio tocava os sucessos, seu olhos sabiam da vida de muita gente. Não se inventa, nem se mente... é tudo verdade. “Caro ouvinte, obrigado por sua audiência! São 8:36h desta manhã de Sexta-feira!”.

A luz do sol, de manhã, toda acanhada na primeira hora, servia para trocar os ares da casa azul, onde funcionava um brechó, bem conhecido na cidade. Vendia-se roupas de segunda, mas “é de primeira”, dizia a mulher, “aqui as mercadoria têm categoria, pensa o quê? Só compro coisa boa”. Tinha de tudo, desde fantasias de heróis em quadrinhos, até adereços de escola de samba. “Dependendo do vestido e da pessoa, fica chique, sim!”, pensava alto a proprietária do estabelecimento, em frente ao espelho, enquanto trazia e afastava de seu corpo os modelos mais recentes, que tinham chegado há pouco, buscando ver-se vestida neles. E conseguia novas roupas com freqüência, vindas da casa da patroa da irmã, da vizinha da amiga da cunhada, que vinha dos Jardins trazendo peças “gastas, que não têm mais o que usar”, e até de doações para famílias pobres, que de um jeito ou de outro, apareciam por lá.

— Que isso, tá bom de tudo! Compro baratinho e o freguês nem reclama. – conversava com o cachorro, cor de areia, rabo fino e longo, que ficava dormindo sempre no caminho que levava ao fundo da casa modesta. Chão de madeira, saltava de leve, cada vez que alguém passava, e embalava o sono do bichano. – Tu é que é boa companhia, dorme o tempo todo! – e ria - Ninguém me entende, mesmo...

Numa manhã, a mulher colocou roupas na janela, achando que o cheiro de naftalina podia melhorar, “se tomar um solzinho, melhora”. Acabou vendo, saindo de um táxi, no outro quarteirão, uma garota, que mantinha os punhos cerrados, agarrados à bolsa tira-colo. Olhara para os lados, para o alto; os olhos fecharam-se com o brilho do sol. Vestia camiseta curta, roxa, e saia rosa, amassada, como que sem passar. Caminhou com passadas largas e pés entreabertos, ombros caídos. Tinha o olhar inconstante, parecendo procurar alguma coisa. Quando chegou próximo à sua casa, olhou para a placa da rua, buscou um papel na bolsa, comparou com o escrito, observou o número da casa e aproximou-se. Olhou um pouco mais de longe, atravessou a calçada, enquanto a dona da casa, espiava atrás da cortina. Olhou novamente, de um lado para o outro, desceu para a rua e foi em direção ao brechó. Ao entrar, quase perdeu um pé da sandália. Voltou, ajeitou-se e subiu as escadas. Foi adentrando devagar, percebendo cada detalhe da casa e se havia pessoas na rua. Deparou-se com o espelho da entrada.

— Veio procurar um vestido? – a mulher aproximou-se, saindo detrás da porta.

A moça assustou-se:

— Não vi a senhora. Parece ter acertado.

— Todas as mulheres novas, como você, vem aqui pra isso. Digamos que foi palpite certeiro. – riu sozinha, colocando suas mãos unidas na frente do corpo, esfregando uma na outra. – Mas, entre.

— Procuro um modelo preto. – falou pausadamente, de olhos fixos na mulher.

— Venha cá, então.- caminharam para o meio da sala.- Aqui estão os modelos. Tenho poucos, mas tem um que é chique demais, tem babados e uns apliques...

— Não, quero simples. – os olhos acompanharam os movimentos da dona da loja, enquanto buscava os vestidos.

— Sim, tenho este aqui. Falta fazer a barra, só que é rápido. Amanhã à tarde tá pronto.

— Não, preciso hoje.

— Alguma ocasião especial, se não for curiosidade demais?

— Sim. Um velório.

A mulher foi até o fundo da loja, buscar outros modelos, e os trouxe, envoltos em plástico, um longo e outro, curto.

— Veja estes. A pessoa era estimada?

— Meu marido.

— Seu marido! Meu Deus, meus sentimentos... A senhora não me pareceu ser casada, tão nova, e quanto mais, ter perdido um marido. Desculpe-me.

— Não se preocupe, está tudo bem. – a moça abaixou os olhos, sem reação.

— Era novo?

— Era um pouco mais velho. – a moça pegou o vestido longo e o levou para diante do espelho, devagar. Seu olhar ficou paralisado na imagem refletida no espelho.

— Estava doente?

— Quem?

— Seu marido.

— Não. Traição. – pegou a peça e o colocou sobre a mesa.

— Traição de que espécie?

— A mim. Ele me traiu.

— Deus! E como soube?

— Ele me contou esta manhã, antes de tudo acontecer. Ah! A senhora tem alguma peça vermelha?

— Ah! Acho.. que... sim, u-m x-a-l-e. – falou devagar, assustada com o que havia ouvido.

— Ótimo, pode me trazer?

— Estou in-do. – a mulher correu para o fundo, no outro cômodo e trouxe nas mãos um lindo xale, pesado e rico em detalhes em crochê.

— Que belo! Vou provar os dois.

A mulher não pronunciou uma só palavra. Sorriu, paralisada, e apenas indicou o provador, sinalizando o local. Passaram-se alguns minutos e a moça saiu vestida, agora de cabelos presos. As sandálias eram as mesmas. Jogou o xale sobre suas costas e uma das pontas em seu ombro. Olhou-se no espelho, tentou ensaiar uma pose, enquanto a mulher observava atenta. “O que se passa?”.

— Quanto fica?

— Pra senhora, R$ 80,00.

— Um pouco caro. Mas...

— Se for cheque, peço que...

— Não, é dinheiro.

A moça buscou em sua bolsa o valor combinado. Fechou-a pelas alças, pôs em seu braço e virou-se para sair. Apenas disse “obrigada”, sem olhar para trás. Quando saía, a dona do lugar a chamou, dizendo que as roupas com as quais chegou, tinham ficado. A moça parou, permaneceu de costas por segundos e quando virou-se, fez um gesto de “esquece, deixa pra lá”, que não precisou nem ao menos questionar. Conforme retomou a descida nas escadas, ouviu-se um barulho agudo, como de um metal batendo. A dona da casa, que havia entrado, quis ver o que acontecera e percebeu a moça assustada com a batida da bolsa na parede. Ela olhou e desculpou-se. Sorrisos discretos se abriram. Rápida, seus passos sumiram ao dobrar a esquina.

A proprietária do brechó quis arrumar o que havia tirado para a cliente ver e aproveitou para mexer nas peças que estavam na janela. Ao tirar as roupas, o sol invadiu o ambiente, iluminando todo o assoalho de madeira. Dois pingos escuros estavam próximos da porta. A mulher chegou perto e notou que no balcão havia uma mancha parecida. Resolver ver no caminho onde a moça havia passado e se deparou com a parede, perto da porta, lugar onde a bolsa dela havia batido. Havia uma marca que parecia ter sido provocada por objeto pontiagudo e uma pequena mancha da mesma cor. Coisa estranha isso... Encostou o dedo, juntou com o polegar, cheirou e entrou na casa com as sobrancelhas levantadas e unidas no alto da testa. Devagar, foi chegando novamente na mesa e sobre o vidro, percebeu que a mancha era muito vermelha, como o xale. Vermelho, cor de... san... gue... Seus olhos ficaram imóveis. Ela teria?... o marido... traição... morte...?

O cachorro veio cheirar a dona e deitou-se embaixo da janela, querendo algum raio de sol. A rádio, no fundo da casa amarela, anunciava três da tarde.
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