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Contos-->A Cura -- 23/08/2002 - 10:57 (Gerson Espindola serpa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
As cachoeiras desciam em densas e suaves cascatas e as gotículas suspensas recobriam todo o trajeto d’água, como se fossem pingentes ornando um véu de tule. Os raios solares, que ali se irradiavam com singular intensidade, ao se refratarem nestes diminutos prismas, criavam um bordado multicor que acentuava ainda mais o formato véu do cálice das quedas-d’água. Aos pés destas, os álamos vicejavam por toda a extensão do rio e as rochas lhes serviam de caudatários.
Em uma dessas rochas, sentara Renata que penteava os longos cabelos negros com a mesma suavidade com que os saltos caiam. Sua postura sobre as pedras, sinuosa e relaxada, em nada devia ao curso das águas e o perfume que exalava seu corpo jovem e arrefecido era tão silvestre quanto a de um choupo-branco. A harmoniosa conjunção de seus gestos com os elementos que a cingiam permitiria dizer que inseria-se perfeitamente neste momento bucólico e aprazível. Entretanto, embora seus grandes olhos negros cintilassem, a exemplo das águas, nada se lia naquele olhar. Não havia contentamento nem consternação, não havia rancor ou resignação, não havia amor nem ódio, não havia nada.
No momento em que uma leve brisa beijou-lhe às faces, ela inclinou a cabeça para pentear o lado direito de suas madeixas e permaneceu assim, nesse estágio contemplativo, até que as águas do rio lhe murmurassem aos ouvidos a contínua progressividade das águas ribeirinhas.
— Como és tolo, rio. Ao acaso não sabes que tudo se acaba no oceano? Pois, deixe estar que com a proximidade do teu ocaso, notarás o quanto é inútil e sem sentido o teu prosseguir. Desejarás, como eu, que tudo se acabe depressa e não pensarás mais em nada até que isto aconteça.
Após longo período de absorta contemplação, foram estes os primeiros pensamentos que lhe brotaram no espírito e mais brotaria, se um previdente mergulhão não modifica-se o murmúrio ribeirinho à procura de alevinos. Aguardou pacientemente o retorno do mergulhão à superfície da água e impressionou-se com o fôlego que tão pequena criatura possuía nos pulmões. Trazia, na ponta do bico, um peixinho prateado e ascendeu a uma árvore próxima a margem do rio onde, Renata pôde perceber, havia três cabecinhas ainda menores que a do mergulhão.
— Bem fazes tu, ô mergulhão. Mas não te orgulhes por isso. Seria alguém capaz de deixar seus filhos sem alimento, quando estes têm fome? Muito menos eu o faria. Aliás, muito agradeço a Deus por não tê-los me dado. Eu, que com apenas vinte e oito anos, já me encontro no estuário de minha curta vida. E quanto a tu, rio, bem se vê que não és tão inútil, quanto pensei.
Um incômodo vazio na barriga principiara a reclamar. Fazia já alguns dias que não comia e, o corpo de Renata reclamava o seu sustento. Talvez, a lembrança ainda viva do banquete que o mergulhão propiciara aos seus filhotes tenha lhe ativado o hipotálamo, mas também isso não se revestia, para ela, da menor importância: “ Porque alimentar um corpo débil e em vias de extinção?”
— E quanto a vós, pobres álamos? E se eu resolvesse que teria como última ceia a todos vós? Nada lhes restaria. Nem mesmo uma lembrança. Após todos esses anos de fotossínteses, criação de novos brotos e um eterno recriar-se, o que vos restaria? Nada. Esta é a resposta: apenas um nada. Talvez, o nosso amigo mergulhão tenha alguma razão em perpetuar-se; mas...Talvez, talvez e talvez... Eu já nem sei mais com quem está a verdade e, na verdade, pouco me importa: minha única verdade é que estou morrendo...
Essas reflexões alimentaram-lhe um sentimento de dejá vù e fizeram com que Renata sentisse uma gélida corrente perpassar-lhe pela espinha. Esse pressentimento de já ter vivido esta situação tão insólita anteriormente a fez levantar-se das pedras, bradando aos céus e, pela primeira vez, havia em seus olhos muitas e insofismáveis verdades: a cachoeira, o rio, o mergulhão, os álamos, o arco-íris, tudo fundia-se num olhar constrito, estupefato, radiante e revelador. Tudo isso era Renata e, Renata era tudo isso!
— Senhor, por quê, somente agora que estou prestes a Vos encontrar, é que me dizeis estas coisas? Por quê, se em vida, nada enxergamos, nada ouvimos e nada entendemos? Não seria muito maior as obras em Vosso nome; se o homem lhe ouvisse através do rio, se lhe enxergasse num mergulhão ou se pudesse ver um Deus vivo insinuar-se em meio aos álamos? Senhor, com a pouca autoridade que a iminência da morte me defere, eu não posso deixar de dizer: como são injustos os Vossos desígnios!
Enquanto balbuciava estas palavras, Renata fora acometida por um embotamento dos sentidos que a fizera soerguer do fluido humano. Muito embora estivesse em pé sobre as rochas, notara-se deitada numa cama de impecável alvura; os olmeiros de álamos a sua direita, por algum motivo desconhecido, subiam e desciam num compasso rítmico, afeiçoando-se a pulmões artificiais e, além disso, advertia-se circundada por várias pessoas que, antes, julgara ser o mergulhão e seus filhotes.
— É chegada a hora de juntar-me ao oceano...
Renata pensou ou falou, não sabia ao certo, e, num derradeiro esforço, abriu os olhos. Aos poucos, o brilho intenso que a cegava amainou-se e ela pode perceber, ainda que embaçados, a cama em que estava deitada, o pulmão artificial e os médicos que a circundavam. Pôde ainda ouvir algumas vozes débeis e tênues ao fundo, mas só discerniu o que um deles falava aos demais: “chamem a família! Ela acaba de retornar dum coma que a mantivera inconsciente por quinze dias”.
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