O inverno lá fora está inclemente. A noite é fria e uma bruma toma conta da cidade. Na sala o crepitar da lenha na lareira. O nó de pinho se consome lentamente. Fecho o "Pequenas Criaturas" de Rubem Fonseca e fico contemplando a dança das labaredas que aquecem o ambiente.
Nesses momentos de introspecção os pensamentos voam para o passado. A mente busca lá no fundo da memória momentos especialmente gravados. A primeira recordação vem dos tempos que um grupo de amigos reuniam-se para tocar e cantar. Eram encontros com a música regional nativista, regados a chimarrão e cachaça com mel. Não sei se tínhamos algum talento, mas o melhor de tudo era o prazer das nossas tertúlias musicais. Percebo que o tempo passou e passou ligeiro, já se vão mais de 20 anos. Neste meio tempo, se é que pode-se dizer que 20 anos é meio tempo, muitas coisas mudaram. Estamos dispersos e deixamos no passado um pouco de nossos anseios. E alguns sonhos irrealizáveis.
Naqueles anos 80, em que não nos perdemos por aí, éramos jovens e queríamos muita aventura. De quebra, se tudo desse certo, mudar o mundo. Se a classe dominante bobeasse, nós faríamos a revolução. Não posso deixar de lembrar que tínhamos uma indignação ante as injustiças e a miséria, isto é muito importante quando resgatamos do nosso passado tais rememorações. No início da década de 80 a atividade política estava em turbulência, pois o país atravessava uma transição. A ditadura cerrava suas portas e a democracia surgia para os brasileiros tal qual a conhecemos hoje.
Hoje, o que somos e como estamos? Não somos mais revolucionários, mas continuamos indignados. Não usamos mais a boina preta, mas a injustiça e a miséria ainda maltrata nossos corações de estudante.
Nós amadurecemos. Inclusive nossa indignação também amadureceu, e nesse amadurecimento têm certas coisas que a gente não pode perder, e uma delas, sem sombra de dúvidas, é sensibilidade diante das coisas belas, da arte, da ternura, da cultura, das coisas simples da nossa vida. Brincadeiras com os filhos. Passeio pelos parques e praças da cidade. Chimarrão com os amigos ou jogar conversa fora na mesa de algum boteco. Certamente, buscar na simplicidade a sua essência.
Certo dia eu perguntei para vizinha onde seria a missa de sétimo dia do Nóno. Ela respondeu. - Na semana que vem vai fazer dois meses de sua morte. - Pensei, cá com os meus botões, como dizia o Nóno. - Estou maluco!
Quem sou eu? Será que estou perdendo a humanidade? O que me ocupa tanto a ponto de apagar da minha memória quase dois meses de tempo? Daqui a alguns anos meu piazito estará fazendo 20 anos e eu não o terei visto jogar bolitas, sujar as roupas no varal jogando bola, tomar banho de chuva ou riscar as paredes da casa com as canetinhas da mana. Será que o meu trabalho está me tornando um robó? Onde foi parar minha civilidade? Onde está minha porção criança? Ou será que essas infindáveis e numerosas reuniões, nas quais a gente acaba se metendo, estão me tornando um insensível, um alienado para a vida, para as pessoas que estão ao meu redor?
Fui me testar, e vi que era impossível fazer um poema naquele momento. Talvez eu tenha perdido o pingo da sensibilidade que eu tinha.
Prometi a mim mesmo, naquele instante, tentar me devolver um pouco de utopia.
Na lareira o nó de pinho virou um amontoado de cinzas, as inexistentes labaredas, são como as lembranças, aquecem apenas a saudade. O tempo continua passando, num piscar de olhos as recordações ficarão mais distantes. E nós cada vez mais maduros e indignados.