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Contos-->No fio da navalha -- 23/08/2002 - 20:25 (Alberto D. P. do Carmo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Perdeu o prazo e não fez a DI – declaração de isento. Isso foi em 2000, repetiu a dose em 2001, e vai pelo mesmo caminho em 2002.
- De novo, Juvenal? Você é um fora-da-lei mesmo!
- Delfina, me deixa em paz, me deixa aqui no meu canto!

Quando a patroa começa com essa conversa fiada, ele deixa os chinelos de lado, calça um tênis furado, e vai até a esquina, no bar do Alfredo, tomar uma cachaça e comer um ovo cozido – daqueles amarelos, que ficam chocando no balcão.

- Imagina você, Alfredo! Eu não ganho pra pagar imposto de renda e ainda tenho que dizer isso publicamente, expor minha miséria aos quatro ventos.
- Mas quem não declara é sonegador, Juvenal!
- Sonegador? Eu? Mas de quê? Além do mais, eu não vou terminar os meus dias exibindo um papel dizendo que eu não pago, que estou abaixo do nível da pobreza. É humilhante! Eu paguei a vida inteira, por que agora não posso gastar minha aposentadoria em paz?

Não que Juvenal fosse desonesto, pelo contrário, sempre andou em dia com o erário. Nos tempos de guarda-livros – os mais jovens, por favor, não pensem que Juvenal foi algum vigia de biblioteca – apresentava uma declaração digna de honra ao mérito, uma obra-prima datilografada. Costumava fazer em duas vias: uma era entregue no banco, a outra ele rasgava com os dentes, em casa, nos momentos de furor fiscal. Rasgava pelas pontas, até chegar ao miolo. O processo durava o ano base inteiro. A coluna do imposto a pagar ele tinha por hábito comer junto com a ceia de Natal. Aos que achavam aquilo um absurdo, dizia: - Papel contém fibra, e solta os intestinos.

Depois que se aposentou, nunca mais declarou. Por absoluta falta de fundos suficientes. Nos primeiros anos sentiu-se humilhado – não servia nem para pagar imposto de renda. Com o tempo, passou a gostar de não ter mais aquele furor uterino anual. Deixou de comer fibras e passou a ter prisão de ventre.

Foi numa dessas ocasiões, de prisão no ventre, que Juvenal foi até a farmácia comprar seu habitual Salamargo, ou qualquer genérico que lhe oferecessem. O importante era que soltasse abaixo toda a magoa contida no delgado e no grosso.

Era uma dessas drogarias modernas, onde o infeliz escolhe a droga que deseja consumir, coloca tudo numa cestinha e vai ao caixa acertar as contas. Curioso, Juvenal foi até o empregado e sussurrou:
- Amigo, quanto custa esse tal de Viagra?

Ao ser informado do preço, riu-se a não mais poder, ciente de que sairia mais barato tomar fôlego nas velhas zonas, que engolir a tal pílula e esperar pela erupção do adormecido.
- Aonde chegamos, meu Pai! – resmungou entre as gôndolas. Agora o sujeito toma remédio até pra acasalar. Mulher virou halterofilista e só tem homem frouxo. Cambada de chibungos!

- São 27 reais, senhor! – exclamou a caixa.
- Aceita cheque, minha flor?
- O senhor só assina, que a máquina preenche.
- O que é isso? E eu vou lá saber o que essa geringonça vai escrever no meu cheque? Pode deixar, que eu mesmo escrevo as minhas dívidas. Eu fiz o curso do De Franco, menina!

Juvenal se ajeitou como pode e preencheu com letra inclinada e traços firmes. Entregou o cheque como se fosse um pergaminho, inchado de orgulho. A moça datilografou umas coisas num computador e, após um sorrisinho besta, declarou triunfante:
- Sinto muito, não podemos aceitar seu cheque.
- Que disparate!
- Desculpe, mas o senhor não consta no cadastro de CPF.
- Não consto? Consto sim, senhora! Eu sempre constei, e continuo constando! Aliás, ninguém constou mais nessa vida do que eu!
- Aqui diz que não existe, meu senhor.
- Não existo? E o que é isto aqui na sua frente, minha senhora? Por acaso eu sou um fantasma? Quer que eu dê uma cabeçada na parede pra ver que eu sou de carne e osso?
- O senhor foi cancelado, não está na lista.
- Cancelado? Ah, é? E como me cancelaram? Foi por degola, sangramento até a morte, asfixia, cadeira elétrica, guilhotina? Vou lhe mostrar como estou vivo, e bem vivo!

E caminhou até a parede. Estava preste a arrebentar com a testa, quando o segurança o aparou.
- Calma, meu senhor!
- Como calma? Essa menina, que ainda cheira a cueiro, vem me dizer que não aceita meu cheque, que eu não existo, que eu...
- O senhor pode pagar em espécie, meu senhor.
- E que espécie de idiota você acha que eu sou? O ônus da prova não é meu! Não compro mais nesta espelunca!

Pegou o cheque de volta e saiu bufando e praguejando. E com o ventre preso, claro. Sentiu saudades dos tempos em que podia comer sossegadamente suas fibras em formulário federal. Entrou no salão do Waldemar, que ainda tinha paciência de barbeá-lo com navalha, e se sentou.
- Sem escanhoar, Waldemar...

O ritual começou como sempre. Juvenal não era de dormir à cadeira, ficava falando o tempo todo: política, futebol, etc. Waldemar era do tipo paciente e caprichoso. Quando passava a navalha no pescoço esticava o dedinho, que ficava ereto como um mastro de bandeira. Teria sido um grande escultor, não fosse o pai, que achava os artistas todos vagabundos, ou baitolas.

- Pois é, Waldemar, o mundo já não é o mesmo. Antes o que valia era o fio dos bigodes, honra se lavava com sangue! Agora somos números, e nos matam quando querem! Diga aqui pra mim: - Fantasmas deixam as barbas de molho?
- Aliás, Juvenal, você deixou muitas honras suas aqui na barbearia! – riu-se o Waldemar, enquanto aparava-lhe o bigode com precisão cirúrgica.

Um rapaz, de uns 20 e poucos anos, entrou no recinto correndo. Trazia um brinco na orelha e um lenço na cabeça. Juvenal quase espumou, e retrucou com voz baixa:
- Veja você, meu amigo! Olha esse moleque. Usa brinco de mulher e lenço na cabeça feito lavadeira. Logo vão usar sainhas. Geração de maricas, não servem pra nada. Depois ficam agitando bandeirolas na Paulista, querendo direitos. Que direitos? Só se for o direito de levar uma boa surra. Deviam prender o pai desse moleque, que não sabe criar filho macho! Aliás, deviam acabar com a geração inteira e...
Juvenal sentiu a pressão da navalha próximo à jugular. As mãos de Waldemar tremiam como nunca vira. O corte era iminente. Enlouquecera, o velho barbeiro?
O rapazote aproximou-se e, dirigindo-se ao barbeiro, pediu:
- Tio, a tia pediu uns contos pra ir no supermercado!
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