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Contos-->O caozinho do bufê -- 25/08/2002 - 18:47 (Dante Gatto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O cãozinho do bufê

Era um bufê com um nome de santo, como existem muitos estabelecimentos comerciais neste país. Não me lembro mais de que santo se tratava, mas significava, contaram-me, que o dito santo, do seu recolhimento no céu, abençoava as atividades daquela casa. Bem, naquele bufê, além de administradores, copeiros, cozinheiros, garçons, faxineiros, etc. havia um cãozinho.
Era um cão sem raça definida. Tinha um ar tão simpático e festivo que conquistou, em pouco tempo, os empregados do bufê.
Vivia circunscrito num fundo de quintal fechado com um muro altíssimo. Tinha uma casinha de compensado protegida por uma varanda e escondida por um tanque de lavar roupas. Em resumo: tinha sombra, proteção da chuva e do frio e, por um portão estreito podia observar a vida na rua e latir para os passantes, para os cães vagabundos que perambulavam por ali. O melhor da sua vida de cachorro era a comida sempre farta e variada: de quando em quando, depois de algumas, graças ganhava, do cozinheiro de plantão, uma iguaria que vinha voando pelo vitraux escancarado para o quintal.
O cãozinho do bufê franzia a testa para a cachorrada que fuçava nas latas de lixo demonstrando sua incompreensão canina.
Às vezes, no entanto, apesar de sua vida de cachorro privilegiado, tinha momentos de inexplicável melancolia. Ficava sorumbático, com as sobrancelhas caídas, olhando o movimento da rua e uivava longamente para o céu, naquelas noites escandalosamente iluminadas pela lua cheia.
Nas segundas-feiras a faxineira lavava o quintal e mergulhava o cãozinho no tanque cheio de água. Era um dia especial para o cãozinho. A faxineira ficava longamente a examinar-lhe o pelo felpudo, a fazer-lhe carinho e, principalmente, a conversar com ele: Comeu bem hoje, malandrinho? Perguntava ela. Sujou muito o quintal, seu porquinho? O cãozinho fazia-lhe uma grande festa com latidos, ganidos e saltos e com uma alegria ... absurda, corria em torno dela. Pára com isso, maluquinho! Falava então a faxineira, voltando aos seus afazeres dos quais quase esquecia por culpa do cãozinho.
No entanto, o bufê fechou. Faliu? Não sei. O fato é que os administradores saíram ricos, os garçons apenas mudaram de emprego, mas a faxineira, com seus dedos inchados pelo detergente, com sua vista fraca pelas costuras noturnas, esta ficou desempregada.
O cãozinho foi despejado. Levou-o, um rapaz, dentro do porta-malas de um grande carro prateado, para o bairro pobre onde morava Maria, a faxineira. Ela sorriu ao vê-lo, sem entender porque davam-lhe o bichinho. Ele, o cãozinho, chorou ... de alegria, sem entender nada do que acontecia. O rapaz tinha um ar de tristeza, indiferença, tédio... talvez medo.
A vida do cãozinho mudou muito: dividia agora os carinhos de Maria com outros dois habitantes do barraco aonde ela morava: Um deles era um cachorro enorme, negro, quase cego de tão velho e tinha o nome de Mais; o outro era muito pequeno e parecia estar sempre balançando a calda inexistente e se chamava Menos.
O cãozinho, aliás, não tinha nome. As crianças, havia muitas naquela rua, acercavam-se dele brincando, com a alegria fácil das crianças pobres, mas nunca conseguiram chegar num acordo quanto a um nome. O cãozinho, então, ficou com muitos nomes que variavam dos adjetivos mais inusitados, nomes de imperadores romanos, presidente da república, filósofos gregos, sem contar a vasta designação nascidas do inglês e do francês, até do alemão. Nomes que sempre estiveram na moda. O cãozinho, por fim, atendia a qualquer nome, onipresente. Iluminava o cotidiano daquele mundo com sua alegria... desconcertante.
Sobre a felicidade, o cãozinho descobriu como ela acontecia confraternizando-se com a cachorrada vadia que perambulava pelas ruas. Buscava descobrir todo o encantamento possível na sua nova condição: rolando na terra, bebendo água suja, buscando a cadelada no cio, latindo para o caminhão do lixo...
O cãozinho nunca foi tão feliz. Às vezes, no entanto, batia-lhe uma saudade confusa do quintal do bufê. Mas saudadesinha fugaz que se esvaia fácil, fácil, mesmo que a fome, esta nova e incômoda companheira, o perturbasse.
O contato com a terra deu ao cãozinho uma nova aparência: Andava sujo. Maria, maternal, não dava conta dos cuidados que se faziam agora necessários. Às vezes, também, ele voltava para casa machucado das brigas na rua. Mas nada, nada perturbava seu humor.
O cãozinho conquistou muitos amigos. Era um mundo de crianças que vinham brincar com ele. A brincadeira que mais gostava era correr, com Menos ao seu encalço: entravam pela porta do cozinha assustando os desprevenidos, atravessavam o interior da pequena casa derrubando o que eventualmente estivesse no caminho e saiam pela porta da frente causando estranheza em quem passasse na rua. Todos riam daquela inexplicável euforia. Mais os seguia com o olhar que assumia, então, uma expressão esquecida.
Disputavam, o cãozinho e Menos, o lugar em baixo da mesinha da sala, para dormir e, às vezes, punham-se a brigar de tal forma que a pequena mesa saia pulando e acabava com as pernas para o ar. Maria os repreendia, sorrindo.
Estranho poder possuía aquele animalzinho de acalmar as pessoas. Aliás, o cãozinho podia mais: ele fazia as pessoas querer brincar.
Foi numa manhã dessas que o sol, sem sucesso, luta para romper a cortina das nuvens que o carro prateado voltou. O carro parecia maior e parecia também ter outra cor. Ou seria aquele dia cinza que enganavam os olhos de Maria? Seria o mesmo motorista? Este pegou o cãozinho e colocou-o no porta-malas, tentou até sorrir e partiu sem maiores explicações, levantando uma nuvem de poeira. As crianças ficaram olhando o carro sumir e foram lentamente voltando para suas casas. Maria suspirou profundamente. Mais, assistiu à cena e fechou os olhos para sempre. Menos procurou seu lugar debaixo da mesinha da sala e o achou desesperadamente grande.
À tarde uma chuva fina pegou Maria no quintal, plantando uma muda de limão rosa, sobre a terra ainda remexida do enterro de Mais. Ela correu para dentro de casa para não se constipar e ao fechar a porta atrás de si teve uma súbita vontade de chorar e não era por Mais que, acreditava, tinha subido para o céu dos cachorros.
Primeiro Maria não encontrou razão para estar triste, depois achou que não era tristeza, mas uma alegria atrapalhada. Sentou-se à mesa da sala e ficou olhando a chuva pela janela entreaberta, com Menos deitado sobre seus pés. No telhado, sem forro, no entanto, nasceu uma nova e inesperada goteira e uma gota, única, despencou lá de cima, e deslizou pelo rosto de Maria.
Lembrei-me agora do nome do bufê, mas não tem a menor importância.

Dante Gatto
Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT)
gattod@terra.com.br
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