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Contos-->O VELHO HERÓI, OU O MAIS NOVO VILÃO? -- 26/08/2002 - 00:39 (Helinton Pires Oliveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O VELHO HERÓI, OU O MAIS NOVO VILÃO?

Sentado em sua cadeira, analisa as paredes do quarto calculando a imensidão da mansão, cujo tamanho só faz par a sua igualmente enorme solidão.

Através da colossal janela do quarto, a luz da noite penetra contornando os objetos em raios que desnudam a penumbra e iluminam medrosamente um rosto de olhos vazios, quase mortos. Na cadeira um corpo inerte, uma figura de porte austero e imponente, adjetivos que nem a cadeira de rodas lhe roubara. Dependurada no galho seco da árvore que arranha o vidro, uma criatura da noite vê um Mundo desfigurado, invertido. Curiosa besta alada que enrolada em torno de si parece tão inofensiva e reticente. Em poucos instantes se porá a voar pelo campo e, no abraço da noite quente, se guiará pelo cheiro asco do sangue de suas vítimas. O entardecer lhe chama, lhe instiga os instintos mais básicos.

É no esconderijo do crepúsculo que tais atos, tão crus à luz do dia, se abrandam. É na calada enevoada do negro intenso que a criatura pode ser o que dela a natureza lhe fez. Esconde a face de suas intenções na noite, seu rosto deformado de dentes afiados e motivações que, nobres no sentido natural da vida, são ao mesmo tempo tão cruéis às vítimas. A escuridão tudo permite. O Mundo, assim, de ponta cabeça, reflete diferente. Valores invertidos talvez, a premissa é a satisfação pessoal. O velho homem já não pensava mais sobre a criatura lá fora, mas sim sobre si mesmo.

Não se ouvem barulhos de ratos, ou o estalar da madeira incomodada que se refestela na umidade. Nem sequer almas penadas vagueiam pela casa, embora houvesse motivos para haverem várias delas ali. Ao invés, um silêncio ensurdecedor preenche todos os cômodos e agora, do alto de seus oitenta e oito anos, o homem repassa toda sua vida em lentos flashbacks minuciosos, muito mais detalhados do que gostaria que fossem. Mas sua memória, ao contrário de seu velho corpo cansado e maltratado, está intacta, suas lembranças muito mais abundantes do que o pó em cima dos móveis.

Amarga a perda de todas as pessoas importantes pelas quais sua vida passara. Todos haviam ido, até os mais jovens, desrespeitando a ordem cronológica e as probabilidades, o deixando sozinho a esperar pelo último encontro. Com os pés tapados pelo cobertor, locomove sua cadeira elétrica pelos amplos corredores recheados de obras de arte de muito valor monetário e poucas denotações sentimentais. O dinheiro nunca lhe movimentará a vida, não o regulava exatamente por não ter-lhe apreço. Mas no afinal, pensava ter feito bom uso dele, algo digno. Será? A essas alturas duvidava de todos os seus feitos, questionava sua autenticidade e sua nobreza.

A fortuna fora inesgotável durante toda sua vida, mas a felicidade inversamente proporcional. A perdera muito jovem, quando do assassinato de seus pais, mortos pelo mesmo homem à frente dos seus dois olhos gélidos. Uma terceira bala, que nunca entrou nos laudos na polícia, acertara em cheio seu coração. Seu espírito, estirado no meio fio junto aos corpos dos pais, agonizou em vão. Tinha oitenta e oito, mas morrerá aos nove, essa era a verdade. Com o passar dos anos, se não fosse pelas fotos, esqueceria dos rostos deles. Esquecera o da felicidade.

A criança que ressurgiu depois daqueles fatos não era mais o menino das brincadeiras inocentes e despreocupações típicas da tenra idade. O semblante pesado e destoante, lhe alcunhavam uma combinação de amargura, depressão e ódio. Seus nove anos o impediam de se rebelar a contento, mas o tempo só lhe acumularia sentimentos de desprezo pela vida. Seu coração pulsava palavras de vingança incontroláveis, inomináveis, que se escondiam atrás de sua fachada moderada de finos modos. Para sociedade, Sr. Wayne, para os que tinham o desprazer de o conhecer na noite, uma besta sedenta de sangue.

Não que tenha ficado só no Mundo, mas um mordomo e tutor nunca poderia substituir seus velhos pais. Alfred fora o único confidente, extremante compreensivo, nunca lhe levantara a mão e não julgava seus atos, limitava-se a ajudá-lo sempre que possível, mesmo quando suas ações soavam dúbias, para dizer o mínimo. Era o único que conhecia o verdadeiro Bruce, o homem criança eternamente assombrado pelas imagens da morte violenta de seus progenitores. O mesmo que, transpirando o corpo em noites de pesadelos intermináveis, sente as gotas de suor na face - como sentira o sangue quente espirrado de seus pais - escorrerem dolorosamente lentas.

Quando passou a transitar pela noite, era atrás de vingança. Seus olhos se enchiam de um negro infinito da mesma forma que sua mente se esvaziava de preceitos morais. Era o juiz supremo das madrugadas, com poderes sobre a vida e a morte das pessoas. Investigava, observava e só então agia. Mas não havia outra palavra que não a sua e a sentença era uma só: vida ou morte. Não havia meios termos, não havia recorrimento. A quem seu julgo condenasse, era melhor estar preparado.

A esses, sua mão descia com a fúria de mil homens, em um banho de sangue inenarrável. No silêncio do anoitecer, gritos eram abafados no cingir encapuzado desse carrasco. Uma a uma, as vítimas eram caçadas e derrubadas. Mesmo os que esperneavam, chutavam e atiravam em seu instinto de sobrevivência, não conseguiam desviar a atenção assassina da besta que recebia cada um dos golpes com indiferença inabalável.

Os jornais versavam sobre os boatos de assassinatos em série que aconteciam na cidade. Por anos manchetes semelhantes se seguiram e os crimes perduraram, sempre sem solução e contra traficantes e outros meliantes. A polícia falava sobre guerra de gangues, mas os habitantes da noite profetizavam sobre uma criatura alada, meio homem meio bicho, que se esgueirava por debaixo das sombras escolhendo suas vítimas. Havia boatos desse tal homem morcego a andar pelas ruas, mas poucos os levavam realmente a sério, dentre os quais, a própria polícia.

Os corpos das vítimas eram sempre encontrados em ruelas escuras, às vezes em grupos de quatro ou cinco. Certa vez, em um galpão do subúrbio, foram encontrados nada menos do que doze pessoas assassinadas. A cena remontava a uma negociação de drogas. Na mesa, os pequenos sacos de pó branco e as notas verdes do dinheiro sujo foram encontrados avermelhadas pelo rio de sangue que se montou.

Estômagos mais fracos não seriam capazes de presenciar tal cena. Corpos estavam espalhados por todos os cantos, muito deles, em incompreensíveis locais. Rasgados, perfurados, quebrados, nenhuma morte sem luta, nenhuma morte sem dor. No chão jaziam armas ainda esfumaçantes quando a polícia finalmente chegou para arrombar a porta. Falou-se sobre desentendimentos na negociação que teriam culminado nos disparos de ambos os lados em uma autoconsumação generalizada.

Nunca houvera uma testemunha real do que acontecia. Quando o ser atacava, não deixava sobreviventes. A noite era a espectadora muda, somente ela conhecia a criatura, sua cria misteriosa que nos domínios da escuridão, se apoderava das almas perdidas.

Alfred agüentara muito bem até seus setenta e cinco anos, mas uma pneumonia avassaladora o carregaria. Pela segunda vez Wayne perderia alguém a quem o tempo nunca apagaria da lembrança e do coração. Mas a pior das memórias o atormentava. Tentava fugir dela a todo custo. Sabia que era o culpado pela destruição de seu jovem amigo. Nunca devia ter alimentado sua alma adolescente com emoções de ressentimento iguais às suas. Na tentativa de salvar o garoto órfão, o afundara mais ainda na lama fétida dos seus ódios. Impulsionado pelo mesmo tipo de perda, Dick sucumbira a mesma sede de vingança descontrolada de seu tutor e amigo. Compartilharam ideais distorcidos de justiça terrena. Wayne foi cegado pelo egoísmo, que via, enfim, alguém que tornasse seus atos mais verossímeis através da aprovação e reprodução dos mesmos. Alguém para repartir o peso fardo de seus feitos. Alguém para dividir seus medos e frustrações. Contudo, em sua enfermidade, não viu que compartilhava também, sua autodestruição.

Assim como Bruce, Dick transformava-se em outro quando a lua surgia por detrás das nuvens gris. Entretanto sua concepção jovem o tornava arrisco, menos meticuloso e cauteloso do que seu protetor. De impulsos sempre irracionais vinham sua ações que culminavam invariavelmente na morte de terceiros. Foi exatamente esse comportamento mortalmente efusivo que o levara a não perceber a chegada do agressor furtivo às suas costas. O Morcego chegara longos segundos mais tarde, mas vingou ali mesmo, naquele instante, a morte de seu companheiro com violência febril.

Através da figura de Graison estirada no chão, a besta viu os corpos dos pais de Wayne novamente e, por detrás de sua carapuça, agigantou-se frente ao assassino banal. O agressor - agora vítima - vê através do caminhar mórbido daquela figura sombria a morte flutuante a erguer sua foice. Travado, de arma em punho, mas sem achar forças para erguê-la e puxar o gatilho, apenas esperou o baque rápido que lhe ceifou a vida. A criatura mascarada continuou a desferir golpes no corpo já sem vida, transfigurando o homem em um amontoado de ossos quebrados afogados em seu próprio sangue visceral.

Naquela noite, e pela primeira vez, o cavaleiro negro chorou uma morte. Carregando o corpo sem vida de seu jovem companheiro, sentia o pesar de suas escolhas em seus braços. Sua figura não pertencia à luz do dia, a calçada não era seu lugar. Seu espírito já acostumado à escuridão, agora definitivamente repousava nela. O silêncio da volta, dessa vez, não foi proporcionado pela consternação dos atos grotescos à pouco cometidos e sim, por mais um perda na vida de Bruce. A criatura chorava por detrás do capuz.

Mas a vida lhe pregaria outra peça, quem sabe um castigo por seus atos. Ao contrário do que todas as pistas apontam, o motivo dele estar ali preso aquela cadeira, não fora um embate ferrenho com alguma de suas vítimas. Uma doença inexplicável o afetara, paralisando-o totalmente da cintura para baixo. A perda gradual da sensibilidade nunca foi explicada pelos médicos, mas para Wayne estava claro, era uma simples questão de justiça maior. As mortes que carregava nas costas precisavam cessar. Alguém simplesmente o deteve, e o fez da maneira mais funcional. A besta estava finalmente aprisionada. Ou, quem sabe, a fraqueza das pernas só refletisse a do seu coração se alastrando por todo corpo.

Nunca conseguira ter alguém ao seu lado. Não poderia conviver com uma mulher e ter de dividi-la com tão perigosa versão de si mesmo. Na verdade, vivia em um limite de onde não sabia exatamente quando essa linha se romperia, e qual dos dois personagens lhe caberia em definitivo. Tinha medo do que poderia fazer. Lembranças do que acontecera com Graison eram suficientes para afasta-lo de qualquer pretendente que tentasse se aproximar. Todas que surgiram à sua vida foram descartadas não pelos seus defeitos, mas por suas qualidades. Eram pessoas boas demais para conviver com um assassino. Algumas dessas perdas foram dolorosas, outras menos, mas seu coração petrificado era cada vez mais encoberto pelo da criatura.

Agora, de posse da sua velhice, parecia que não lhe restava mais nada. Aniquilara tantas vidas, a sua inclusive, que ali, parado naquela cadeira, não sentia mais nada. Não eram suas pernas, mas sua alma que adormecera durante todos esses anos. Estranho, mas agora que sentia-se perto do final de tudo isso, ironicamente algo dentro de si parecia começar a mudar.

Um movimento exagerado, e a garrafa de conhaque recém aberta rolou pelo tapete oriental, manchando de vermelho os desenhos geométricos abstratos da tapeçaria. Antes que o seu conteúdo acabasse de se infiltrar nos sulcos, uma mão fraquejante despencou ao lado da cadeira já sem vida. A cabeça se recosta lentamente na almofada e os olhos do velho Sr. Wayne se cerram. A guerra terminara, a justiça enfim fora feita.

Quem olhasse do segundo andar da mansão, poderia jurar que sob o tapete da sala se desenhava - entre as formas tecidas e o vermelho grosso do conhaque - a figura de um morcego, contida no feitio ovalado da tapeçaria.
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