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Humor-->SEMPRE ATRASADO -- 26/08/2002 - 00:43 (Helinton Pires Oliveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Qualquer coisa que dissessem, entraria direto em sua cabeça, como uma bala disparada de bocas 45mm que se chocam contra sua invariável fome de adequação.

A festa estava lotada, ao seu redor as pessoas de sempre. Tantos anos de amizade e mesmo assim parecia-lhe que mal conhecia aquelas pessoas. Senti-se tão acuado quanto à vontade com elas. Como daquela vez em que achara que botara a perder uma amizade de cinco anos por causa do copo quebrado na casa da amiga. Saiu de lá abalado. Não houve quem conseguisse o trazer de volta, mesmo com os insistentes pedidos de deixa pra lá, não foi nada e larga mão de ser bobo, a cabeça era baixa como a do piá com quatro no boletim. Passou-se um mês até que voltasse a falar com a tal amiga.


Via-se por vezes sufocado na manutenção constante do seu status quo de integrante do grupo. Suspeitava que o descartariam ao primeiro comentário infeliz, à primeira piada sem graça. Cada frase sua era de um esforço cultural atroz, um exercício de criatividade e de inter-relações inusitadas dos assuntos mais heterogêneos. Talvez por isso não falasse tanto. De qualquer forma, nem sempre surtia o efeito desejado. Ficava, por vezes, meia hora sem dar um gemido na roda de bar, para em seguida fazer um comentário que era recepcionado com a frieza de alemães nazistas olhando o judeu atrevido que resolvera falar.


Quem o visse sentado, quieto, em meio a uma conversa agitada e fanfarrona, podia perceber através de seus olhos perdidos, o cérebro trabalhando a todo vapor. Diria que olhando-se contra a luz, praticamente via-se a fumaça saindo por de trás dos cabelos. Tudo para encaixar a fala adequada, no tempo certo, o que nem sempre acontecia.


Talvez carregasse demais nos elementos intelectuais. Sufocava suas próprias idéias com uma decodificação truncada e cheia de metáforas. Tecia comentários tecnicamente perfeitos, com sutis toques sarcásticos, cores do mais fino humor inglês e timing impecável. Conseguia relacionar Freud, a dança da motinho e ainda realizar uma perspicaz referência ao papel repressor dos EUA no Mundo. E, em seguida, era facilmente sobrepujado pelo seu vizinho de cadeira que desfere a piada mais imunda e tosca sobre membros fálicos e minorias raciais, tudo com muita gesticulação e palavrões em alto em bom tom.


Fazer o que, sempre fora assim, desde pequeno não se adequava as coisas mais triviais da vida. Tudo era um esforço, tudo precisava ter motivos motores, razões palpáveis. O vilão dos seus Playmobil não atacava simplesmente os mocinhos, tinha personalidade, conflitos e traumas de infância gerados por uma mãe superprotetora e um pai relapso que o faziam ter ilusões paranóicas e megalômanas de querer dominar o Mundo. O bandido não acaba morto pelo herói - que na verdade é pai de cinco filhos e com dificuldades de orçamento - e nem na cadeia, mas sim em um hospital psiquiátrico lutando contra sua doença com a ajuda de todos.


Não jogava bola no colégio, não via motivos para ser mais um correndo atrás dela se já havia tantos outros. Nas brincadeiras de esconder era um desastre, sempre demorava mais do que os cinqüenta contados segundos para decidir aonde se esconder. Quando o "lá vou eu" era desferido, lá estava ele pateticamente correndo de um lado para outro tentando achar "o" lugar secreto.

Sentia-se atrasado para tudo na vida. Sua mãe dizia que o seu trabalho de parto durara um dia e meio, que seu nascimento, programado para o dia vinte e cinco de dezembro, aconteceu só às 18 e 01min do dia seguinte. Esse atraso marcaria os acontecimentos de toda sua vida, dizia ele. Perdera a chance de ter algo especial, seria um Natalino da Silva Qualquer, mas era apenas o qualquer.

Sua puberdade foi aos 20, seu primeiro beijo aos 21. Sua catapora aos 19. A primeira transa? Bom, deixa pra lá. Perder o horário do ônibus era só um detalhe, mas parecia-lhe que às vezes o Mundo conspirava para que não chegasse a lugar nenhum no momento certo. Era sempre o cara certo, no lugar certo, mas na hora errada, o que lhe roubava todas as chances. Pelo menos era o que supunha, e ai de quem apontasse para suas reclamações como desculpas esfarrapas do seu insucesso.

Não era particularmente feio, muito menos bonito, mas era intensamente mediano. Sem sal o suficiente para não chamar a atenção nos dois pólos, o da beleza e o da feiúra. Julgava-se como a derradeira das comédias românticas hollywoodianas. Aquela despretensiosamente assistida, aparentemente aprovada, "simpaticazinha", mas que esquecemos quando as luzes se acendem. Não vale o espaço de memória ocupado pela lembrança.

Por uma questão de sobrevivência, desde a infância desenvolvera muito mais os aspectos da mente. Louvável, mas inútil, já que tais diferenciais eram emparedados pela inabilidade social que o impedia de expô-los. Quando finalmente o fazia, era taxado de exibido e egocêntrico.

Estudara sobre o Afeganistão e seus conflitos durante muito tempo, nunca compartilhou seus achados e, quando começou a fazê-lo, era intercalado por vários com a última manchete de jornal sobre a intervenção americana. Ou como a novela estava fazendo um importantíssimo papel social ensinando o povo os hábitos dessa cultura. Isso aconteceu até o momento em que passaram a cortá-lo definitivamente, afirmando que assunto já estava tão batido que ninguém mais suportava conversas com essa pauta. Isso, claro, antes de começarem a taxá-lo de um reles modista.

A verdade é que suas palavras difíceis e seu pseudo-intelectualismo eram uma tentativa infeliz de reprimir sua impopularidade, o que só o tornava mais impopular ainda. De qualquer forma estava cansado de ser o último a chegar. Era ultrapassado por todos, já estabilizados na vida, casados e com carro zero na garagem. Ele, ainda morava com a mãe e dividia o quarto com o caçula, o que levava a embates homéricos sobre o canal da televisão a ser assistido.

Estava no seu limite quando decidira que pelo menos a um lugar chegaria antes de todos, a morte. Começou a fumar três maços por dia, a beber alucinadamente e a se drogar. Começou a freqüentar grupos de risco e a puxar briga com qualquer um na rua.

Outro dia, em um dos seus passeios noturnos de auto-destruição, abandonou o amigo Zeca no bar e quando tentou voltar para casa por um ruela estreita, foi interceptado. Cambaleante e totalmente afetado pelos venenos da noite, ouve alguém assobiando às suas costas. Vira-se e percebe um homem correndo em sua direção empunhado algo na mão à balançar no ar.

Sua adrenalina sobe, está prestes a ser assaltado. Uma reação e uma facada no estômago o torna o primeiro do grupo a entender o real significado da vida. Passaria para outro lado e veria todos de pé ao lado do seu caixão tentando entender por quê, como? Bom, ele já saberia, antes de todos.

Todavia, no momento em que o ladrão se aproxima, o instinto de sobrevivência fala mais alto e ele reage apanhando uma pedra no chão e batendo com força na cabeça do meliante. "Amador", pensa ele, enquanto vê o corpo do indivíduo cair no chão sem vida. "Teve todo tempo do mundo para dar-me um tiro a queima roupa mas não, não".

Aproxima-se para ver a cara do contraventor e não acredita no que seus olhos vêem, é Zeca, seu amigo. Na mão dele, a carteira que esquecera no bar.

Sentou-se no chão e começou a chorar como uma criança desamparada, havia sido passado para trás mais uma vez, o foi durante a vida e agora era também na morte. Chutou Zeca.
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