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Cronicas-->Um triste feriado. Ou alegre? -- 04/06/2000 - 10:17 (flávio augusto menezes filho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Eu jamais poderia supor que aquele encontro fortuito ocasionasse graves modificações na minha essência e no meu modo de ver a vida.
Explico. Tudo ocorreu em uma pequena cidade do interior do Ceará. Eu tinha ido a Aracati com a família passar o derrradeiro feriadão. Os últimos dias tinham sido bastante puxados e o cansaço se instalara em mim. Aliás, para falar a verdade, não só os últimos dias; os últimos meses também foram fatigantes.
Já não tiro férias há alguns anos. Sofro de uma doença que não sei bem explicar, qual seja a de me achar vagabundo quando não estou no trabalho. É assim que eu penso: todo mundo na empresa dando o maior duro e eu aqui neste bem bom. Pronto, disparou o processo: coloco o celular no ar e começo a ligar para tudo que é lugar: para a matriz da empresa onde trabalho, para uma filial dela, para um fornecedor, um cliente, etc, etc. De logo estou a par de tudo e tenho conhecimento de todos os assuntos. Decorre daí uma angústia danada: conheço os problemas mas não estou perto para resolvê-los. E o perto para mim é o perto físico - esta história de computador, telefone celular, não me é bastante. Logo, quando menos se espera, estou de volta ao escritório.
Mas feriado é feriado e passa logo. E como não arranjei trabalho extra para fazer - que saco! - resolvi atender aos apelos insistentes da minha mulher para viajarmos: Aracati aí vamos nós.
Saímos numa noite sexta-feira tão logo cheguei em casa. A viagem não é tão longa e a minha mulher estava ansiosa para ver a mãe. Esqueci de dizer que a minha sogra mora em Aracati. Acho também que a ansiedade dela, da minha mulher, era por medo de um telefonema qualquer de última hora, um problema de solução urgente - e na minha percepção todo problema precisa de uma solução urgente - e então, lá se foi o passeio. Pois bem; seguimos viagem.
A minha filha, como de hábito, não nos acompanhou. Ela prefere outros programas. Ela - como se diz - está noutra. O que se há de fazer: cada maluco ou insensato com a sua doidice ou insensatez. A minha não é o trabalho?!
Chegamos a Aracati por volta das vinte e duas horas. Estavam todos a nos esperar: sogra, cunhada, empregados. Quem visse e não soubesse afirmaria que ali estava gente que há muito não se avistava: era choro, lágrimas, abraços apertados. Infeliz engano. Minha sogra estivera nos últimos vinte dias em minha casa e isso não havia mais de uma semana. Houve também, para nós, uma outra recepção: a recepção da barriga. Tinha bolo de milho, bolo de macaxeira, cuscuz, pão de queijo, afora doces de todo tipo e qualidade. Tudo porque o povo do interior tem o costume de mostrar o querer ofertando guloseimas à pessoa querida. E pessoa querida, no caso aqui, era a minha mulher, isso não tenham a menor dúvida.
Aracati é uma pequena cidade banhada pelo Jaguaribe já na sua embocadura. Cidade de costumes simples, vivera em outros tempos a sua grande fase quando fora uma das mais importantes do Estado. Tivera, àquela época, até jornal próprio que circulava regularmente. E eu o digo com todo orgulho porque era do meu avó o jornal.
Hoje a cidade definhou. Vítima de governos incompetentes, desastrados e oligárquicos - governos esses e oligarquias essas que um dia este mesmo avó combatera, tendo por isso mesmo o infortúnio de perder o seu dele jornal, violado que fora por capangas desses grupos políticos, caso mui bem relatado pelo meu ilustre tio, o escritor Holdemar Menezes, em sua crónica " Crime e Castigo" - Aracati perdeu toda a pujança que tivera no passado não distante e hoje não passa de uma cicidadezinha de pouco prestígio.
Bem, há no entanto algumas características peculiares a essa cidade que precisam ser ditas, porquanto vão se prestar ao desfecho da crónica.
A primeira: Aracati é conhecida no Estado como a Campinas e a Pelotas do Nordeste. Não preciso dizer o porquê, porque o leitor já deve ter auferido a conclusão. Isto mesmo! pela grande quantidade de veados que lá vivem. Não! não vai aqui nenhum preconceito meu ao fazer a afirmação. Deus que me livre e guarde! Por muito menos andam processando gente por aí. É preciso deixar as coisas bem claras. E o leitor, desde já, fica convocado como minha testemunha de defesa. Dizem, os mais antigos habitantes da região, que esse sucesso - o de haver muitos bichas lá - que esse acontecimento se dá em decorrência da água do "Morrinho". Teria ela alguma substancia ainda não estudada que transformaria o maior dos machões em um "alegre-rapaz". Eu, ciente disso e por falta de certeza, toda vez que vou ali levo a minha própria água de consumo. O diabo é quem duvida!
A segunda é relativa ao fato de que em Aracati todo mundo tem dono. Normalmente o pai ou a mãe. Menos mal. É Manel de Manú, Chico de Dejane, Reginaldo de Roderico. A minha mulher mesmo é Shirley de Erotides.
A última distinção que lhes cito é a grande quantidade de mentecaptos que residem no lugar. Isso posto, vamos ao final.
Era sábado. Já havíamos almoçado. Estávamos estendidos em redes no alpendre da casa onde nos instalamos no feriado. A nos cercar os empregados temporários contratados para os afazeres domésticos, todos gente da terra, como se fossem cães amestrados a nos pastorear. Fui surpreendido por um molequote, que invadiu a casa aos gritos:
- Qué tijoliiiiim ?
- Que é isso moleque, está ficando doido? bradei. Mal imaginava que ele já era.
- Sinhó, é só tijolim. Compra um que é bom.
Tijolinho, para quem não sabe, é uma espécie de rapadura típica do Nordeste. Tem de tudo que é sabor: de leite, de goiaba, de castanha, de cajú.
- O nome dele é Babi . Babi de Zuleica - acudiu a minha sogra. Ele não regula muito bem da cabeça. Foi estudo de matemática demais - falou. Faz tudo que é conta de cabeça - concluiu com orgulho.
O garoto tinha pequena estatura, própria de gente mal nutrida e sofrida. Os seus olhos esbugalhados, que mais pareciam de vidro, continham uma expressão constrangedora como estivessem sempre a pedir.
Eu ali deitado ele em um canto, de pé. Eu com vontade de fazer alguma coisa, ele disponível. Vou gozar desse moleque - pensei.
- Ó Babi! quanto são doze vezes treze?
- Cento e cinquenta e seis - respondeu na bucha.
- E vinte três vezes quarenta e um?
- Novecentos e quarenta e três - sem pestanejar.
Observei o clima de triunfo daquele povo que estava a observar a cena, principalmente da minha sogra, como se me dissesse: "Taí, um doido, afora também ser uma `doidona´, sabe mais que um engenheiro da capital". Repare o leitor que não fui eu quem o disse. Foi a minha sogra. Se houver queixas que sejam contra ela. Fiquei fulo e apelei:
- Quanto é a raiz quadrada de trezentos e sessenta e um?
- É dezenove - afirmou.
A situação ficou preta. A minha cara estava ao chão. Eu que tivera a intenção de gozar o moleque estava a ser gozado por ele. Não me dei por vencido e não poderia ser de outra forma. Afinal de contas eu ali representava a classe. Que seria dos engenheiros de agora por diante se eu perdesse a disputa que travava com o menino? Estariam todos desmoralizados. Os colegas jamais me perdoariam por isso. Invoquei os grandes matemáticos e perguntei num rompante:
- Qual é o logarítimo de dois na base dez?
A expressão de todos foi de espanto. Que diabo seria aquilo? Logarítimo? Mas que porra era essa? Ninguém falou. Acho que para não dar a conhecer ignorància no assunto. Todos os olhos foram apontados para o Babi. O garoto coçou a cabeça. Olhou para um lado, para um outro, para tudo o que é lugar. Pensou, pensou, pensou... e nada. Ainda numa última tentativa de não arruinar-se disse:
- Loga o que doutor?
Não havia dúvida, a discussão acabara e eu era o vencedor. Usara um expediente pouco convencional, é bem verdade. Mas isso era de somenos importància. No mundo o essencial é a vitória, disse de mim para mim.
- Lorarítimo de dois na base dez, redargui.
O garoto nada falou. Acabrunhou-se num canto e desandou a chorar:
- Nunca errei conta em toda minha vida! Tó perdido! Ninguém mais vai acreditar em mim! Ninguém mais vai comprar meus tijolim! Vou morrer de fome!
Eu não conhecia ter jogado tão duro. Aliás sabia, mas nunca imaginei causar estrago tão grande no garoto. Passara dos limites. Desmoralizara o moleque. Não havia de mister tal atitude, mas eu a tive. Por prazer. Um ato de pura crueldade sem dúvida. Confirmava, naquele momento, as afirmações de "Camus" em "A Queda". Ah vaidade! Ah ambição inútil! Crimes que não estão no código penal mas nem por isso menores!
Numa última tentativa de suavizar a vergonha a que estava rendido, o garoto me disse uma frase que, como prenunciei no início dessa crónica, mudou radicalmente a minha vida:
- É doutor, o sinhó ganhou de mim. Mas fique o sinhó doutor sabendo de uma coisa: dinheiro e poder não são adjetivos, por isso não qualificam".
Por que teria ele me dito isso? Como um menino tão simples pudera
proferir tal frase?




Fortaleza, 20/10/99


Flávio Augusto Menezes Filho
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