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Contos-->Fumódromo -- 02/09/2002 - 22:39 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Até hoje não sei ao certo o que me fez levar o primeiro cigarro à boca. Cresci num ambiente em que a maioria dos familiares era avessa ao vício. Talvez tenha sim sofrido alguma influência dos colegas do ginásio. Tatau, Joca e Betinho ansiavam pela hora do intervalo. Tatau era quem carregava em sua bolsa um maço de Continental, invariavelmente deformado pelo mal jeito que os meninos o seguravam para retirar cada unidade. Pois bem, quando chegava o recreio desciam voando a escadaria que os levava ao pátio. Dois deles entravam no banheiro, enquanto um vigiava a porta. Wilsão era o inspetor que vivia à caça dos intrusos e fumantes da escola. Quem fosse pego deveria arrumar algo para fazer no período das aulas nos próximos três dias (além de arrumar um jeito de falsificar a assinatura dos pais). Mas acho que foi assim. De tanto vê-los desfrutar minutos lépidos de prazer, acabei entrando na sociedade e contribuindo semanalmente para a vaquinha do Continental.

De lá pra cá foram inúmeras as tentativas de parar ou diminuir. Mas hoje, aos quarenta e tantos anos, se quer me dou ao luxo de uma nova tentativa. Sou um fumante assumido. Daqueles que acendem o cigarro mesmo quando a garganta está ressecada, suplicando por um gole de café. Do tipo que não vê a hora de a reunião acabar ou de o cliente ir embora para tirar o isqueiro do bolso e pô-lo para funcionar. O típico perseguido pelas reportagens do Jornal Nacional, pelos colegas chatos e pela família ameaçadora. Discriminado por muitos e idolatrado por outros tantos - aqueles menos experientes que vão para uma festa ou bar que não vende a preciosidade. Nessas ocasiões, aliás, costumo levar três carteiras. Não estou mais na idade de correr riscos desnecessários. Quem não fuma nunca entenderá a angústia e marasmo no qual o ambiente se transforma quando não é possível dar umas baforadas. Paciência. Certamente há outras coisas com as quais essas pessoas devem sentir a mesma sensação de nós, fumantes.

Aquela tarde foi especial. Sempre ouvi dizer que o cigarro nunca me daria nada, exceto um câncer no pulmão. Mas mal sabiam esses profetas a surpresa que o destino me reservara. Tinha acabado de sair de um bate-papo informal com o Alfredo. Discutíamos a liberação de uma verba para aquisição de 3 microcomputadores, requisitados pela turma da Expedição. Nessas ocasiões, somente duas assinaturas gerenciais liberavam a compra. Ou então a aprovação do nosso Diretor, o Paulo Henrique. Seu antecessor era meu ídolo no campo do fumo. Consumia facilmente dois maços e meio somente nas dez horas em que permanecia no escritório. Contou-me, certa vez, que por muitos anos apreciava uma marca mais forte. Mas depois de dois sustos do coração, foi obrigado a mudar para outra auto-entitulada de baixos teores. Afirmou que se sentia como se tivesse traído a mulher, trocando-a por uma senhorita mais jovem, que embora consumisse mais, não lhe dava prazer. Mas o velho mantinha um charme sobrenatural a cada tragada. E, mais que isso, o fumo era liberado para todo o escritório! Mesmo quando vieram ordens expressas do RH para se instalar o maldito fumódromo. Lembro do dia em que o pobre coitado do Ricardinho consumia calmamente sua nicotina quando foi abordado pelo Dr. Antônio.

- Está fumando aqui, rapaz?
- Perdão, Dr. Antônio! Me disseram que...
- Não tem problema, garoto! Me arruma um desses que o meu acabou...

Agora com esse tal de Paulo Henrique os bons tempos acabaram. Temos de nos deslocar uns cinqüenta metros e dividir uma saleta minúscula que acomoda três cadeiras do tempo do Cruzado. Ao centro uma mesinha redonda, acomodando alguns cadernos de jornal. Pelo menos se dignaram a isso (ainda que os exemplares nunca sejam atuais. As vezes tomo sustos com a cotação do dólar!). Pois naquela tarde vi uma moça estranha acomodada numa das cadeiras horripilantes do fumódromo. Tinha acabado de acender seu cigarro, pois a flagrei deixando a carteira de couro e o isqueiro na mesinha. Olhou-me com simpatia, liberando um sorriso suave.
Retribuí o cumprimento e arranquei meu maço do bolso da camisa. Aproximei-me da janela semi-aberta. Vasculhei o bolso direito da calça - residência oficial do meu isqueiro de prata. Não estava. As mãos percorreram todos os bolsos sem nada encontrar. Meu Zippo devia estar na gaveta da mesa. Pensei em voltar, mas os cinqüenta metros faziam diferença àquela altura da vida.

- Pode me emprestar o isqueiro? - perguntei.
- É claro!

Alguns segundos de silêncio até eu acendê-lo.

- Está abafado aqui, não? - interpelou-me.

- É. Mas parece que vai chover...]

- Com certeza! - revelou-me o sotaque paulistano. Aposto que, bem na hora da saída, vai cair um baita temporal.

- É verdade. Incrível como o clima muda tanto! De manhã, aquele sol estridente. No final da tarde, chuva torrencial.

- O trânsito fica uma loucura.

- É. Fica mesmo.

- O senhor viu lá em Santo Amaro?

- Por favor, não me chame de senhor.

- Ah, desculpe! Hoje é meu primeiro dia de trabalho. Estou híper ansiosa.

- Compreendo. O primeiro dia é sempre intrigante. Mas, no final das contas, a gente acaba se adaptando.

- Tomara! Faz tempo que você fuma?

- Muito tempo. E você, tão jovem... Devia abandonar este vício.

- E por que o senhor não largou o cigarro? Desculpe, não é para chamá-lo de senhor...

- Não tem nada, não. O fato é que eu adoro fumar. Já tentei parar, mas é impossível. Até remédio já tomei, mas acho que o prazer é maior do que a necessidade de parar. E, com a minha idade, não tenho muito mais a perder.

- Imagina... Estou muito nervosa, acho que vou acender outro! Dizem que meu chefe é muito severo. O pessoal andou falando que o cara é um brucutu! Mas isso não é nada... parece que o dito cujo é tarado. Já pensou? Vivi experiências desastrosas com chefes tarados...

Realmente já havia escutado algumas histórias de alguns gerentes e supervisores tidos a assediar as moças do escritório, especialmente quando eram novatas. Achava aquilo de mau gosto, mas me habituara a conviver com mais esta realidade. Acendi também meu segundo cigarro. Tinha um compromisso dali a 5 minutos. Mas preferi abastecer meus pulmões e investir naquele encontro promissor. Olhei para o crachá da moça. Chamava-se Ingrid. Ingrid. Era um nome que denotava jovialidade. E as pernas da moça confirmavam minha suspeita. Efetivamente tinha atributos para receber investidas de chefes inescrupulosos. Enquanto seu cigarro queimava, prestei atenção em suas mãos. Seus dedos eram muito finos e delicados. As unhas bem cuidadas estavam pinceladas de um rosa bastante discreto. Ficamos por algum tempo sem trocar palavras, até eu tomar a iniciativa:

- Estou atrasado para uma reunião...

- O que o cigarro não faz, não é verdade?

- Pois é.

- Também já vou indo - afirmou, apagando rapidamente o cigarro. Soube que meu chefe não tolera atrasos nem embromação. Parece até que ele passa 1/4 do tempo fumando, mas vive criticando quem sai para dar uns traguinhos...

- Bem, então até a próxima!

- Até!

Ingrid era a mais nova contratada para a minha área. Sem querer, a pobre coitada revelou-me os sentimentos daqueles que trabalhavam comigo. No fundo sempre pensei que eu era um bom chefe. A postura das pessoas que trabalhavam comigo sempre revelou esta faceta. Contudo, é provável que a fumaça do meus cigarros - que não larguei até hoje - talvez impedisse de eu enxergar quem realmente eu era.
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