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Contos-->Vozes em Trânsito 2 -- 18/09/2002 - 00:46 (Giselle Simões) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
“Nossa, o tempo tá virando”, pensou Osvaldo ao sair da loja. Todavia, a percepção meteorológica era apenas uma brisa em meio ao temporal de emoções que o assolava naquele momento. Após tantos dias de trabalho, tantos meses se negando os pequenos prazeres da vida social, esforçando-se para salvar uma parte da já pequena quantia que ganhava como garçom, Osvaldo finalmente adquiria seu objeto de desejo. O cheiro de novidade, a luz intensa que teimava em ofuscar-lhe os olhos, as formas intactas que produziam arrepios de felicidade e, por que não?, orgulho, eram a prova concreta do sonho realizado. “Finalmente", dizia numa semi voz, a cada solavanco do ônibus, acariciando mais uma vez o embrulho em seu colo, como se cada toque fosse um beliscão que lhe afirmasse a realidade.
Osvaldo era um homem feliz. Seu salário de garçom não lhe permitia muitas extravagâncias, mas era suficiente para proporcionar O Grande Encontro uma vez por mês. “O Grande Encontro” era o modo como ele e seus amigos chamavam a cervejinha de fim-de-semana; decidindo nomear essas pequenas reuniões assim porque consideravam o fato de se encontrarem religiosamente nos finais de semana um acontecimento nobre. Todavia, ultimamente o Grande Encontro passara a sofrer alguns desfalques; a cada semana, o número de amigos parecia diminuir, um a um os amigos abandonavam os encontros, sumiam. Como no livro de Agatha Christie, só que aqui não eram dez negrinhos, mas seis amigos de infância.
O último fim-de-semana foi crítico, apenas Osvaldo apareceu. Não que esses amigos não se comunicassem mais, pelo contrário, todos os dias eles se falavam, discutiam diversos assuntos e trocavam novidades. Todos os amigos ainda se encontravam, de maneira diferente, mas se encontravam. Todos, menos Osvaldo. Entretanto, em breve este também voltaria a se comunicar com seus amigos. O primeiro passo já estava cumprido; bastava esperar alguns minutos mais e logo estaria em casa, pronto para executar a segunda etapa e finalizar seu plano.
O solavanco do ônibus foi como o estalar dos dedos que desperta alguém da hipnose; Osvaldo continuava tão entorpecido por sua aquisição que quase passara do seu ponto de descida; não fosse o chacoalhar do ônibus teria de agüentar minutos adicionais para, então, chegar em casa e desfrutar das milhares de sensações que sua compra provocaria.
Já em casa, Osvaldo decidiu se preparar antes de abrir o embrulho. Possuído pela velocidade que nos acomete quando não conseguimos controlar a ansiedade por algo, ele se despiu, lavou-se, e se vestiu novamente, sem deixar que seus olhos fugissem do pacote em momento algum. Uma vez pronto, o jovem deslizou os dedos pelo embrulho, desfazendo, lentamente, todos os pontos que a fita colante segurava, e suspirando a cada esticar das dobras de papel, como o amante que retarda o despir do ser amado, desejando curtir cada momento devagar, sem pressa, mas sofre ao tentar controlar os impulsos que a paixão emite no intuito de destruir qualquer magia. O crescente andamento das batidas do coração indicava que o clímax se aproximava, em poucos milésimos de segundos algo marcaria os vinte e sete anos do garçom: ele teria seu primeiro telefone celular.
Apesar de não possuir muito dinheiro, Osvaldo decidiu comprar um aparelho que o deixasse “na moda”; afinal, ele já se sentia inferior em tantos aspectos, que não havia porque economizar em algo que o deixaria um pouco mais “elevado”. Comprou, então, um dos modelos mais recentes da telefonia celular, “este até fala”, disse a vendedora, “ e também tem memória para centenas de números de telefone”. Numa reprodução do que ouvira, Osvaldo se convenceu de que não se arrependeria, e aceitou a sugestão da vendedora. Comprou o celular, e a primeira das muitas prestações só pagaria dentro de dois meses: um ótimo negócio.
A primeira ligação foi para a mãe: três dos oito minutos gratuitos que a empresa telefônica oferecia como brinde. Os outros cinco minutos foram utilizados para avisar aos amigos sobre a aquisição e para dar seu número. Logo, Osvaldo teria que ir à loja e comprar outro cartão para seu telefone. Dessa vez, decidira, compraria o cartão mais caro, já que este significa o maior tempo em ligações. E assim o fez.
De posse do novo cartão, e com seu telefone novamente habilitado, Osvaldo retornou ao que chamara de “ritmo de ligações”, uma espécie de schedule para as conversas com seus amigos. A partir de então, era fácil encontrá-lo; aquela figura franzina jamais se afastava do aparelho celular. Volta e meia, virávamos os olhos e lá estava ele, no ônibus, em estabelecimentos comerciais, ou simplesmente andando pelas ruas. De qualquer forma Osvaldo sempre, sempre estava agarrado ao seu telefone branco e preto. Na verdade, um bom observador poderia dizer que as ligações do jovem eram de duas naturezas: a clara e a escura, exatamente como as cores do aparelho. A primeira era a natureza das boas ligações, onde o branco refletia a luz dos momentos positivos e iluminava o rosto do rapaz a cada palavra pronunciada; o segundo campo era o das conversas difíceis, onde o escuro sugava-lhe o espírito, endurecendo seus movimentos mais simples, e transformando os dedos jovens em ganchos pálidos, sem sangue, cravados no objeto de comunicação. Assim era a rotina de Osvaldo.
Em verdade, essa era a rotina de muitos. Conversas eram apenas expressões faciais, já não se podia ouvir em meio a tantas vozes em trânsito.
No dia em que foi demitido, Osvaldo sentiu o impulso verbal crescer. Era a necessidade de desabafar com seus velhos companheiros, numa tentativa de eliminar as lágrimas de decepção e medo que corroíam seu interior. Com o reflexo de um Kioshi, o ex-garçom discou vários números e marcou um encontro com seus amigos no bar que tanto freqüentaram. Lá, escolheu uma mesa no fundo, na busca por uma mistura de privacidade e estratégia de observação: o escuro do corredor servia de vidro fumê, escondendo Osvaldo e permitindo-lhe uma visão completa do local. Quando duas horas se passaram, Osvaldo percebeu que seus amigos não viriam. Por um momento se perguntou o porquê de não haverem telefonado, mas se lembrou que desligara o telefone instantes depois de se acomodar na mesa. “Acho que esse celular não me deu sorte”, disse numa referência à ligação que recebera, informando-o da demissão, mas provavelmente se esquecendo que sua obsessão por telefonemas e conseqüente negligência para com suas obrigações tiveram forte culpa na perda do emprego.
Ainda no bar, já meio conformado com o abandono dos amigos, Osvaldo afastou seus olhos do aparelho e começou a observar seus arredores. A visão causou-lhe um tremor instantâneo: todas as mesas estavam ocupadas, mas ao invés de haverem grupos de amigos com suas risadas juvenis, executivos discutindo novas contas, ou pais e filhos compartilhando momentos juntos, em cada uma das vinte e uma mesas, havia uma pessoa e, numa posição oposta, seu telefone; como se o aparelho substituísse colegas, amigos, relativos, amantes, e tentasse ocupar o vazio que pairava no ar. Era um desfile estático de cores de significados ambivalentes.
De repente, como se numa epifania, todos os telefones tocaram ao mesmo tempo, criando uma freqüência altíssima de ruídos. Um som bastante agudo começou a se destacar, crescendo, cada vez mais agudo, sempre mais cortante, tentando rasgar barreiras, inaudível para muitos. Cães começaram a latir, respondendo ao apito, e dispararam, perseguindo alguém que ousara correr.
Era Osvaldo, seu telefone deixado à mesa.
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