As crianças ganham coisas estranhas mesmo. Bibelós de um e noventa e nove, carros conversíveis para bonecas caríssimas que movem com grande dificuldade braços e pernas, roupas de marinheiro, badulaques de vidro que não podem sequer tocar e muitas outras quinquilharias que entopem seus quartos e baús. Mesmo assim, presentear uma criança com um pinto verde é demais! - Mas acontece!
Tal fato, narrado com extremo humor por um antigo colega de lida numa indústria do CIA, traz consigo algumas situações interessantes e quem sabe até uma lição.
Por exemplo, um desavisado que aviste aquele pinto verde escaldado deve imaginar que trata-se de uma mutação genética. Um lunático não terá dúvidas ao atribuir o fenómeno a alguma experiência alienígena, enquanto um biólogo não demorará a ligar a alimentação à quela aparência espantosa. Alheia a essas questões; a diretora da escola. Alegre, agarrada a uma caixa de pintos verdes e a um vidro de anilina, distribui aquele mimo para suas adoráveis criancinhas, que, eufóricas com o presente, levam para casa o bichinho e uma certeza: a cor dos pintos é verde.
Quão difícil deve ser a constatação repentina de que todos os pintos do mundo resolveram mudar de cor e agora são amarelos. "Que esquisito", pensam os pequenos cérebros confusos. "Como assim, pintos amarelos"? Se perguntam.
Felizmente, para as crianças, a natureza infantil é absolutamente livre de apego à s certezas, o que permite a elas uma rápida adaptação ao mundo múltiplo e misterioso que se descortina à sua volta. Com isso, tão logo baixe a poeira do susto, elas já estão prontas para as próximas descobertas, já conscientes da verdadeira cor dos pintos. A mesma sorte não têm os adultos. Esses já assistiram a tantos espetáculos, já leram tantos livros, viram e viveram tantas coisas que se lhes fosse incutida a certeza quanto à cor verde dos pintos, dificilmente seriam capazes de acreditar em pintos amarelos. "Que amarelo o que, menino! Pinto é tudo verde, ora"!
É por isso que atrás de cada adulto há sempre um rastro de tinta marcando sua trajetória. São pequenas gotas de intransigência aqui, grandes poças de preconceitos ali. Traços de um mundo particular, pintado com a cor da nossa experiência e completamente borrado por nossas convicções.
É uma pena perdermos tanta energia cobrindo com os mesmos tons, todas as nuances desse enorme prisma que é a vida. Não terá sido essa a lição que a alegre diretora quis nos dar através dos seus pintos verdes? - Quem sabe?
