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Contos-->O Chute -- 24/09/2002 - 21:12 (OTON MÁRIO JOSÉ LUSTOSA TORRES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos









O CHUTE
Enquanto brincam os filhos nas gangorras da praça, despreocupado, caminha à toa pelas ruas da cidade. Vai ter-se no campo de futebol. Percorre a lateral, fica um instantinho por trás do gol; dirige-se à outra margem. Contra o sol, de longe as gotas de suor, como pedrinhas de brilhante, enfeitam-lhe o rosto moreno. Na fronte o siso caricatural: paralelas, duas rugas cavadas na testa. À sua frente o campinho pinóia: de uma trave à outra o capim-de-burro maltratado, aqui acolá um descalvado, de ponta a ponta, comendo a terra da lateral oeste a vereda erosiva do enxurro. Este o lado ruim do campo. Correr por ali a bola é a certeza da derrapagem e da raladura dos que correm atrás dela. Caem em cima da pelota, que cai no chão desnivelado e pula de banda, traiçoeira, como gata-pintada. O jogador, que tem uma perna no ar e outra na terra, de repente não tem mais a da terra. O outro, sem freio, cabeça virada, vem e tromba. Sobe a poeira. No chão os dois caídos. Mereja o sangue nos cotovelos. Talvez por isso que o doutor prefira a outra margem do campo: cheio de nós pelas costas, com a mania de ver as coisas com o seu olho literário, artístico... Quem sabe aprecie as quedas espetaculares dos atletas pernas-de-pau de Pereira da Rocha. Dentre eles, um é o seu preferido. Sempre discreto em ambiente adverso, sai da sisudez e cai na gandaia quando o Gambá domina a bola. Torce eufórico. Braços no ar, vibra, altivo e sedento de gol.
Naquela tarde a competição é especial. Jogam Pereira da Rocha e Riachão. Pelas cinco horas, o sol ainda encandeia e queima. Quem está lá, na outra lateral do campo? - Dr. Dionísio Trajano de Mendonça Abreu!
Perfilado, a mão espalmada lá na frente do rosto atalhando o sol. Em toda a extensão da linha perimetral do campo grande quantidade de povo. Ali rostos conhecidos da juventude e até da velha guarda pereirense. Torcida barulhenta. Cantam, gritam, assobiam. Sem exageros, sem palavrões indecorosos, sem violência... Mas o pior: sem gol! Os jogadores correndo para lá e para cá, a bola pelos ares como balão. Ataque que é bom, em busca do gol... Qual nada. É bola para fora, é tiro de meta, é lateral, é escanteio, é barreira... É chute!
- Puf!
Volta a bola depois de explodir nos homens da barreira. Ganha terreno em direção contrária, invade o campo pereirense. A grota é a valência. Resvala a bola na vala, caminha no leito seco e sai redondinha pela lateral. Atrás, ficam três jogadores escarrapachados na piçarra. Dois deles vestem as cores de Riachão, trocavam passes buscando o caminho do gol.
O juiz Dionísio não está ali para julgar. Os estragos erosivos no campo depõem contra as ações administrativas do prefeito, que não valoriza o esporte. Mas... O que tem a ver o julgador com isso? Quer ele, para espairecer, é contemplar o jogo, seja ele feito de derrapagens, de corridas atarantadas, chutes perdidos no ar, cambapés e cabriolas, escorregões e quedas espetaculares. Muitas vezes leu e releu o texto de Graciliano Ramos sobre o futebol, o esporte dos gringos que o Brasil copiou. O Velho Graça, pessimista, ranzinza, não acreditava que a rapaziada do sertão pudesse um dia ter o traquejo da bola; tão acostumada até então com “o murro, o cacete, a faca de ponta” e “a rasteira”. Agora, o dr. Dionísio, que é feliz, experimenta a sensação de ver com os próprios olhos a prova contrária da profecia graciliânea. Fosse ainda vivo, bem que merecia o grande autor de São Bernardo sair de Palmeira dos Índios e vir a Pereira da Rocha assistir a uma partida de futebol! Quem sabe nunca mais escreveria Traços a Esmo, que o nordestino não é só bom na rasteira... No chute, também.
Dr. Dionísio curte indizível emoção. Diante de si o grande cenário, sob os raios fulvos do sol. Em seu juízo misturam-se a arte e o esporte: a literatura e o jogo. Caboclos atarracados, de lado a lado, adversários, correm atrás da bola, correm com ela. Desembestados, confiantes na força bruta, despacham balões para as alturas, chutam de bico e lá vai o monte de barro no papo do pé, ficando o buraco no solo. Sobe a poeira. Gritos ecoam. O alarido é geral. Dentre os jogadores da equipe pereirense, um deles, rouba toda a atenção do espectador, literato, que por acaso é julgador. Dr. Dionísio, contorcendo-se, acompanha o gingado de Ildo Gambá. O apelido é este mesmo, que “a voz do povo é a voz de Deus” e o cristão não poderia se livrar dele sem cometer crime de sangue. Aceitou, resignado. É visto na rua, na praça, na porta do bar, nas esquinas. Figura conhecidíssima na cidade. Jeito cômico de ser: alegre, brincalhão, irreverente, loroteiro. Certa vez, na calçada do fórum, caçoou de dr. Dionísio:
- O doutor não bate uma bolinha... Só na leitura...
Gambá queria mesmo era dizer que o dr. Dionísio estava alquebrado, os braços finos e as pernas estropiadas. Precisava correr, suar, desgrudar a bunda da cadeira e tirar os olhos do livro, que leitura demais faz o sujeito amarelar, perder o vigor e até o tesão. Gambá não conhece o que é leitura. Vota e assenta o nome nos recibos da Prefeitura quando capina as sarjetas e lava o carro do prefeito. O peito estufado, os muques rasgando as mangas, o fôlego correndo livre e farto nas ventas. Na mulher fez um despropósito de filhos, a escadinha, e se deixou a esposa de parir foi por obra de dr. Fredinho, que na última campanha lhe arranjou ligadura de graça. Vive da vendinha na feira, do biscate, do rolo. Sua arte, entretanto, é na bola. Dr. Dionísio, que é um astuto pescador de personagens, já tinha reparado em Gambá. O nome lhe era familiar. Lembrava-se do cheiro do bicho. Nunca esqueceu de quando menino: na estradinha da vizinhança, com a lua bonita, voltando da casa do padrinho com a corriola dos primos. Afoito, seguiu os rompantes do Piloto e do Rompe-nuvem. Varou a macambira e recebeu na cara, de chofre, a boa mijada. Mijo azulado, fosforescente, como faísca de relâmpago sob a luz prateada da lua. Os cachorros largaram a caça e acuaram o menino Dionísio. Os primos morreram de rir... Ralharam os cães. Em casa a gozação foi geral. Os bichos domésticos passavam à distância de pêlos eriçados. Custou acabar a fedentina.
Por isso o Gambá lhe soa simpático. Grita a turba o nome dele. Xingam-no, amaldiçoam-no, que ele ainda não fez o gol tão esperado, garantidor da vitória pereirense.
- Perneta!
Os intolerantes, de fora do campo, na exigência do gol a qualquer custo, gritam a injúria, que soa hilária e até motivadora:
- Corre, aleijado!
Gambá se esfalfa. A perna curta e fina, seqüela da poliomielite, trabalha muito mais que a perna comprida. O centroavante, na porta do gol adversário, é oportunista, é perigoso. Mela um, mela dois, mela três... Entra desengonçado na pequena área, troca de perna na hora agá e despacha bolinha mansa, rasteira, traiçoeira, por entre as pernas do goleiro, garantindo o frangaço e o grito histérico da torcida. O canto de meio minuto do narrador ao microfone da Rádio Pereirense eleva às alturas o nome de Ildo Gambá, o goleador. Dr. Dionísio já tinha presenciado a façanha. Quer ver outra vez.
Olha o relógio, pouco mais de dez minutos faltam para o fim do jogo. O empate tortura a todos. A equipe pereirense como que acabrunha-se e já corre sem graça. A torcida açula, xinga, injuria. Mas o time parece peado. Na retranca, com medo de gol, não parte pro ataque. Aquilo impacienta a todos. Um dentre os espectadores não se contém:
- Passem a bola! Olhem o Gambá sozinho!
Dr. Dionísio tange o time. É chegada a hora. Lançassem a bola, corressem para o apoio, obstruir a investida dos beques adversários.
De repente, a grande jogada. Ildo Gambá com a pelota enorme, redonda, pintada de branco e preto. Lá vai ele, pé dentro pé fora. Mela um, mela dois, mela três... Mela quatro! Passa dos limites, demora demais... Parado, na boca do gol. Minutos finais... O árbitro consulta o relógio. O povo já dentro do campo, pronto para linchar o azarão do Ildo Gambá, que vai perder aquele gol, não tem jeito.
- Chuta, infeliz! - brada o dr. Dionísio.
Ecoa um urro de dor. Um menino, sem camisa, pés descalços, quebrado o espinhaço, contorcendo-se, corre espavorido pelo meio do campo. O juiz Dionísio Trajano corre atrás, pega não pega. Espanta-se. Estaca. Ouve o grito:
- Gooooooooooooooooooooool!!!!!!
Ildo Gambá tinha chutado, finalmente.
Dr. Dionísio, preocupado, procura um garoto assim-assim, pequerrucho, sem camisa, perninhas cambotas, cabelinho de fogo. Quer ver o estrago do chute nas costelas do pequeno. Vai pedir-lhe desculpas, ampará-lo; levá-lo para o hospital, quem sabe dar emprego de vigia ao pai e de lavadeira à mãe. Tomará maiores cuidados quando for assistir às partidas de futebol nas tardes domingueiras de Pereira da Rocha. Procurará local descampado, longe da molecada pequena, acocorada no beiço do campo. Na hora da aflição, do chuta-não-chuta, não chutará quem esteja à sua frente.

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(Do livro de contos: O PESCADOR DE PERSONAGENS, do autor. Editora Komedi, 2000).
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