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cronicas-->O clarão embaixo do viaduto (1º lugar Felippe D Oliveira) -- 20/07/2002 - 17:16 (Athos Ronaldo Miralha da Cunha) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O clarão embaixo do viaduto
Athos Ronaldo Miralha da Cunha


Entra a noite.
Uma brisa gelada vem do estuário do Guaíba. O inverno chega poderoso e arrebatador. É inevitável como a aurora e o crepúsculo. É belo e trágico.
O chimarrão cevado na quietude da cozinha aquece corações solitários. Estou só.
Da minha janela observo a movimentação nos logradouros e nas calçadas. No prédio em frente, uma festa na varanda envidraçada. O vinho tinto no cálice e a sopa fumegando nos pratos num ambiente calafetado. Agradável e aconchegante encontro de amigos que brindam o frio. Brindes, sorrisos e mantas de lã e na lareira crepita o nó de pinho.
Na agitação do passeio público, as pessoas andam encolhidas e se protegem do frio, cada um a seu modo. Um pala. Um casaco. Um cobertor. Um amontoado de jornais. O vendedor de frutas esfrega uma mão na outra, buscando alívio e aquecimento para os dedos. Um raquítico menino, de pés descalços, brinca com o seu fiel amigo, um cão vira-latas. Correm por entre as pessoas. Aquecem-se com a agitação. Provavelmente, não sabem o que vão comer e onde irão dormir. A gélida noite é um afago às avessas, é a companhia e o descompasso errante da exclusão solitária no meio da multidão.
Há burburinho na praça. O vaivém frenético dos transeuntes. Robós que fervilham no entardecer. Um só desejo em suas fisionomias: chegar logo em casa e descansar de mais um dia de trabalho.
Um andarilho caminha lentamente no meio dessa multidão. Desatento e cabisbaixo dirige-se para seus aposentos, caixas de papelão, jornais e vários engradados de madeira embaixo do viaduto. Carrega tralhas e panelas velhas com restos de arroz e feijão. Um saco de polentas, conseguidas no boteco da esquina. Veste uma velha e suja calça jeans, usa um boné que aquece parcialmente a prematura calvície. Calça chinelos de dedo e se conforta com um cobertor que uma bondosa anciã lhe presenteou há poucos dias.
No conforto do apartamento e aquecido após sorver o amargo chimarrão, observo meu vizinho lá no viaduto. Os carros cruzam velozes, ruídos de buzinas e freadas e luzes que se deslocam. Alheio a turbulência urbana, cata gravetos e papéis para iniciar o fogo. O alento de noites maldormidas. Parceiro do descaso.
Acocado junto a incipiente fogueira, junta cacos de saudade de um mundo que não melhora. Tem o olhar distante e gestos lentos diante do clarão embaixo do viaduto. Uma paisagem urbana, pintada com mãos de aço, corriqueira nas frias noites das nossas cidades. Aquece na beira do fogo restos de arroz e feijão. Aquece na beira da alma pedaços de sonhos e solidão. Aquece embaixo do viaduto pedaços de homem e coração.
Para quem tem pouca vaidade, as labaredas apresentam uma toada do inverno. Dançam chamas coloradas para os olhos de quem muito viu. O clarão embaixo do viaduto se fecha. Finda o espetáculo. Não existe o aplauso, apenas cinzas e um corpo dormindo num catre de papelão.


Esta crónica foi classificada em primeiro lugar no XXVI Concurso Literário Felipe D Oliveira de Santa Maria em 2003.
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