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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->BAÚ DE MEMÓRIAS -- 03/06/2001 - 17:33 (Maria Dalva Junqueira Guimarães) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
UM_______________________________

“Às vezes — o destino não se esquece — / as grades estão abertas, / as almas estão despertas:/ às vezes, / quando, quanda / quando à hora, / quando os deuses, / de repente / — antes — a gente se encontra"
(Ave, Palavra)
João Guimarães Rosa
(João Guimarães Rosa)

R
AFAELA circulava com seu passado a recompor lembranças que só traziam melancolia. Abria o baú de memórias e de lá ia retirando velhas histórias que saltavam à lembrança. Seu velho pai, o vaqueiro, que ela apelidara o Cavaleiro do Sol, com seu carro de bois, suas reses, seus sonhos... insiste em povoar as lembranças da moça, que hoje desenha o cheiro das árvores.
Não era apenas um ser pitoresco que vestia o gibão e a calça de couro, que usava botinas e esporas. Personagem bizarro, persona perdida no burburinho e nas diatribes burlescas. Um vaqueiro, um carreiro! Personagens vagos que habitam qualquer lugar, em qualquer tempo a lembrança e que fazem os rotineiros — e às vezes sem sentido — capítulos de suas vidas.
*
As três irmãs, Rafaela, Eugênia e a Caetana. Vejo-as ali, imunes ao alarido das fábricas e do burburinho das cidades.
A inércia e o mato em estado de árvore. Um torpor animal de lagarto às três horas da tarde, no mês de agosto a escuta dos passarinhos
Suas lembranças circulavam a galope no lombo de um cavalo arisco, pelos arredores da tapera, a velha casa abandonada da querida tia Natália, que fora morar no sítio da Aguada Rica, viver com o tio Chico e a tia Deinha, recém-casados. Seu pai. Seus sonhos, seu sozinho. O Cavaleiro do Sol, um ser que procurava, por intermédio da coragem e otimismo, um ponto incógnito, que se achava perdido na Vazante, mas que podia ser encontrado nas várzeas do Paranaíba. Personagem que se reveste de suma importância, quando se sabe que é na coragem e no sonho que se constrói o futuro do homem. Não fosse o sonho, a dureza da vida tentaria detê-lo, impedi-lo de correr o risco de qualquer vôo.
*
Recostado ao mourão da porteira de paus bem lavrados, de aroeira, aboiando dolorosamente, vendo o gado sair, um a um do curral. A junta de bois mansos passando vagar, andar lerdo, pesado.
*
H
á tempos guardava a história alinhavada de memória. Agora era só juntar as idéias umas às outras. Carecia de costurar a colcha de retalhos esparramados lá nos confins das Gerais... Menina ainda, essas cenas do cotidiano à sombra do cajueiro iam e vinham enigmáticas, perdidas personagens, pesarosas imagens de Irenes, Marianas e Joanas ficaram anos e anos na gaveta dos guardados. Realizando uma viagem ao tempo, de lá retirou o fio para costurar as palavras — ficção e memória se fundem — e as cenas vão emergindo: o gado, e o carro de bois, um universo à parte na história de ver e sentir. “Coreografias de sua meninice e adolescência aladas, perdidas nos ais, nos varais e nos quintais do inconsciente avassalador valem mais que o pé do astronauta americano maculando a lua”, ou os horrores da seca nordestina de Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, porque são suas personagens. Vividas e sentidas no anonimato da história.
*
Eram tão diferentes, as três irmãs. Rafaela raquítica, magricela, taciturna, tentava um sorriso devagar. Caetana, rosto redondo, rosada e sardenta, nariz arrebitado, ao contrário, ria às gargalhadas, alegrando tudo ao derredor; e Eugênia, era pândega e trocista, simpática, bem-humorada, carismática. Morena, cabelos anelados. Gordinha, simpática. Bonita, bem-amada. Chegando visita a mãe ia já dizendo:
— Esta é Rafaela, a mais velha. Esta é a Eugênia, a do meio. E esta é Caetana, a mais feia de minhas filhas, dizia Matilde, sem nenhum rodeio ou disfarce.
Rafaela ficava furiosa, com o jeito da apresentação e Caetana humilhada. Eugênia nem uma coisa nem outra. Sabia que era a preferida de sinhá Matilde.
*
As três mocinhas circulavam no vaivém do sonho e fantasias. Eram elas, imagens tão cadentes, com suas risíveis preciosidades: cães, gatos, cavalos, carro de bois, caçambas enzinabradas, berrantes silenciados, lamparinas a querosene moribundas, candeias de azeite apagadas; engenhocas, engenhos e alambiques capengas; as varandas pendentes, apetrechos, trecos inservíveis que cochilavam na lembrança; objetos jogados no porão da memória.
*
V
iajavam, “qual Robson Crusoé, nessas alquebradas figuras da época, quando a infância, seus signos particulares, suas explosões e sonhos que as levavam a mundos encardidos no tempo: Irenes, Marianas, Joanas... Quintino e os Correias... os Ferreiras, os Teixeiras... José Abel, Jerônimo Pain, Jerônimo da Luzia, Yolo e... os outros, “não menos filhos do talvez e do quem sabe?, apartados pela sem sorte de suas existências sem futuro, de futuro incerto, excluídos e sem pressa, tecendo um caminho de (in) felicidades paralelas e (des)gostos íntimos embrenhando estradas outras, perdidos na muralha do tempo”. Pequenas grandes coisas que não voltam mais.
Embora a gente se renove como todo mundo, tudo no mundo não se repete jamais. O olhar de Rafaela garimpava paisagens de anos passados que amarelavam, se esfarinhavam na memória, chupadas em chão molhado por chuvas novas e águas renovadas.

*
C
omo temer José Abel com suas tretas, criticar os Correias, as crioulas do Sr. Roldão com suas macumbas e feitiçarias? As cardas e dobadeiras de dona Jupira; do tear de Chica Ferreira e das rocas e das cardas das fiandeiras em junta de roca, do mutirão, na limpa do rego d’água e do açude; zombar sem malícia ou desdém do carro de bois do sitiante, seu pai? Como esquecer as crioulas do Sr. Roldão? Como não se lembrar das bonecas de pano da vovó Jacinta?...
Como voltar a banhar-se todos nus, totalmente pelados, no poço do córrego, nadar no rio transbordando pela enchente; ou passear a cavalo pelas várzeas do Babilônia? Desinventar objetos?
Como esquecer o barulho dos cascos das reses, o estalar das folhas secas caindo dos galhos do velho Jatobá, o canto das maritacas, dos pássaros sobrevoando os mangueirais, macaquinhos nas grimpas aplaudindo o sol e outros bichos saindo abismados de seus esconderijos. E nem mesmo lembrar a roupa rústica do vaqueiro rasgada pelos espinhos unhas-de-gato; aquele mundão de sombras vestidas de verde. O uivar dos cachorros-do-mato e o os latidos do Tigre, o cachorro valente, metido a acuar bicho no meio da noite. As lengalengas de Sinhá Matilde, suas histórias de Lobo mau e Onça pintada? Causos que ainda hoje, quando conta e reconta, os netinhos de boca aberta e olhos arregalados, de sorriso nos olhos pedem bis:
— Conta outra vez, vovó, o causo da Onça pintada, e aquele causo do Jacaré enorme que vovô matou com tiro de espingarda! Estas e outras façanhas, tantas, vividas lá no Babilônia! Histórias que só ela, Sinhá Matilde e vovó Neguita sabiam contar!
Ia desfiando seu novelo de lembranças... explorando verso e reverso nas palavras tontas e nas lavras tantas, miragens parcas, lambendo versos de salinas, descobrindo salgados garimpos da memória, escolhendo o tear e encolhendo o tentar apagar tais lembranças.
Como não fazer poesia na ternura de um rio que flui entre dois jacintos, na ternura da tarde que recebe dálias e begônias em asas de borboletas de tarjas vermelhas, quando um trevo assume a noite?
Ah, mundão sem porteiras.
*

No final da estrada de areia um trilheiro ia estreitando-se aos olhos, esfarelando-se até quase ser um risco contornando aquele ponto esmaecido no fundo da várzea: uma casinha de telha francesa, rodeada por outras casinhas de telha comum e outras, umas casinhas de sapé — a casinha do monjolo e do chiqueiro — paredes erguidas com treliça de finas varas e barro. Um horizonte enorme. No céu a escrita das nuvens, figuras de algodão lhe apontavam sonhos e recontava histórias. De lá, Caetana era levada aos devaneios cavalgando. Ou então, fugia de casa para estender a preguiça numa vara de pesca, enquanto emendava seus devaneios no rabo das nuvens, na correnteza do rio, na linha do horizonte...
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