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Contos-->O casamento do Bispo -- 03/07/2000 - 15:14 (Valter Pedrosa de Amorim) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Bispo havia decidido abandonar a vida de almocreve. Com certa saudade, diga-se a bem da verdade. Considerava que seu trabalho podia ser mal-pago, mas era bastante divertido. Tangia quatro ou cinco burros por esses caminhos de terra de engenhos e fazendas, transportando os produtos da roça no lombo dos animais. Trazia da rua outro tanto, conforme os pedidos do fazendeiro e do barracão.
A propriedade "Lagoa Vermelha" situava-se no meio da encruzilhada de diversos lugares, as distâncias se equivaliam para os destinos costumeiros. O almocreve lotava os caçuás de arroz em casca e tocava para o Taboleiro dos Martins. Tangia a burrama através do Salgado e Duas Bocas, em direção à Chã da Morena. Bispo não sabia o que era cansaço, sua idade a tudo permitia.
Na chapada da Morena, parava os burros para desenfastiar da lombada e fazia a boquinha. Sentava na beirada do trilheiro, arriava a sacola da bóia e devorava o bode com apetite de lobo. Traçava a farinha com charque, um punhado e o pedaço de cada vez, como se fosse soldado em bivaque. Bebia meia cabaça de água, arrotava grosso e descansava um quarto de hora escornado no capim para a comida se acomodar no estômago. Enquanto os animais carregados pastavam no aceiro da mata. Levantava-se em forma para enfrentar o solarão da tarde, sentindo o suor escorrer em bica pelo cós da calça velha.
- Puxa pra lá, Caprichoso!
Tirava toda a viagem no pé, corria as léguas de chão sem encontrar espinho. O sol pela testa, a catinga dos burros à frente, rescendendo a trabalho, as passadas ritmadas do homem e dos bichos. O cabo do relho escorado ao ombro, no lesco-lesco da marcha batida da caminhada. Entregar o arroz no armazém do Zé Afonso, botar os mantimentos encomendados pelo patrão nas costas da burrama e regressar na mesma pisada. Todo o dia que não fosse domingo e nem santificado, para variar.
A segunda direção que palmilhava com mais freqüência levava-o ao Riacho Doce, carregado de coco. Lagoa Vermelha dispunha de coqueiral soberbo que botava o ano inteiro. Bispo estava encarregado de empurrar a colheita que se repetia de três em três meses, através dos caçuás nas costas dos burros. Zarpava cedinho no rumo do depósito de coco do Mestre Amaro, que o reembarcava nas alvarengas para o porto de Jaraguá. Procurava aproveitar a fresca da manhã na primeira viagem, na obrigação de fazer dois tombos na mesma diária. Os burros eram selecionados a dedo pelo proprietário, com a assessoria do jovem almocreve. Tinham o privilégio de comer ração dobrada de milho no embornal. Coronel Saleme dizia que o dinheiro da fazenda entrava e saía nas costas daqueles animais de carga, ao comando do Bispo.
Havia ainda as viagens para a Saúde, tombando os fardos de algodão para a fábrica de tecidos da família Nogueira. Era um leva-e-traz que não parava nunca. Bispo não rejeitava o badoque, o bicho que desse na roleta estaria morto no pule. Nos bons tempos dos seus dezoito, dezenove anos, quando a cabeça não pensava e nem o corpo padecia.
O homem foi bravo até o dia em que topou com uma cabrocha da qualidade de Lindaura, a filha mais nova do velho Totonho. Ela era uma dessas moças de se mijar no primeiro abraço apertado. Foi o que aconteceu ao Bispo e o levou a deixar o cambito. Preferia ficar em lugar de mais paradeiro. Porque Lindaura vivia na gruta do Genipapo, lado de lá do rio Sulano.
Bispo havia concluído que andar para cima e para baixo atrás dos burros não dava mais pé, para desgosto do patrão. Quem tinha um xodó como Lindaura não poderia viver longe dela. Muito menos depois de casado, se fosse continuar com a burrama, o tempo todo que Deus desse viajando.
- Cadê o Bispo?
- Tá dizendo missa pra Saúde.
Aí, não. Evitar as tentações da solidão de uma mulher na flor da idade, para não ter de remediar o mal-feito. Obcecado pelo pensamento, criou coragem para sustentar com o Coronel Saleme que pusesse outra pessoa no serviço de almocreve. Ele queria a diária do eito, perto de sua Lindinha, como a chamava. Tão logo viu-se desimpedido das viagens e dos animais, pediu a moça em casamento.
No sábado de noite, vestiu a única camisa de manga comprida, passou banha de porco perfumada no cabelo e dirigiu-se à choupana do futuro sogro com a idéia fixa na cabeça. Antegozando a alegria de garantir Lindaura para os seus peitos.
- Quero ser genro do velho Totonho.
Por pura pabulagem. Alguns despeitados, preteridos nos amores da cabrocha do Genipapo, espiavam enviezados e comentavam entre si que certamente não havia nenhuma grandeza em se aparentar com Totonho.
Bispo nem se dava por achado e tratava de oficializar a conquista definitiva daquele pedaço de carne de jandaia, a mulher mais enxuta de toda a "Lagoa Vermelha." Pensava na amada com a lembrança da flor dos laranjais, a açucena da beira do rio, a rolinha faceira das malhadas.
- Lindaura.
Bispo se conhecia e já tinha idade para comprovar pela experiência que o corpo humano precisava do complemento feminino, por mais robusto que fosse. Não adiantava se fazer de besta, querendo emborcar o penico debaixo da cama. Nem tapar os ouvidos com cera de abelha ou chumaço de algodão. Sabia que ninguém tinha de lhe ensinar que aquela música invisível penetrava fundo no coração de cada um.
- Vem cá, Bispo!
O chamamento mais imperioso do que a voz do patrão. A ordem do desconhecido, a mobilização geral da humanidade. O homem tinha de correr atrás da mulher, ela o chamando ou não. Mesmo que fosse muda, não se mexesse e nem se coçasse. O camarada sentia o comichão no mais profundo da intimidade e saía de cara no ar, farejando o rumo do mistério, fenômeno que não comportava explicações.
- Bispo.
A preparação do amor era a agonia maravilhosa. Bispo ria com as folhas, achava que a vida valia à pena ser vivida. Considerava que para tudo havia jeito, desde que a boa vontade e a amizade participassem do jogo limpo.
- Hem, Bispo?
O ex-almocreve procurava colocar o pé na terra, com a intenção de criar as condições materiais para poder realizar os planos amorosos. Desde que contava com a promessa sagrada de Lindaura, tinha de começar a montar o próprio lar. Precisava construir um bom casebre na lombada altaneira do rio Sulano e adquirir alguns trastes de serventia para dentro de casa. Primeiramente, a cama de casal para colocar no cantinho da camarinha e dormir nela abraçado com Lindaura, que felicidade.
Bispo enfrentou o serviço do eito com a disposição do leão, julgando com sinceridade que o sujeito se redimia das suas fraquezas sentimentais no cabo da enxada. A lâmina da ferramenta dançava na superfície do solo. A mataria ia-se rendendo à força do homem, no corte do tronco e das ramagens, além do reviramento das raízes. O noivo estava azougado, tresnoitado de sonhos e desejos, como se o espírito do outro mundo lhe houvesse encarnado no espinhaço.
Os demais camponeses sestravam o entusiasmo do companheiro, onde já se vira tal afinco no trabalho das terras alheias, por mor de ninharia. Farofas de rapaz apaixonado, estava se vendo, comentavam todos.
O dono da terra entusiasmava-se com a produção diáriado eiteiro.
- Bispo, amanhã você pega na limpa do arroz.
A larga faixa de terra destinada pelo proprietário à plantação espraiava-se na margem do Sulano e estava recoberta de capim-andarca, carrapicho bravo e unha-de-gato. Bispo levantava cedo, tomava o café magro e se enfiava no mataréu. Dava exemplo aos demais trabalhadores na derrubada do matame embrejado e viçoso. Sua foice cortava dos dois lados da gebara, enquanto gritava para o gancheiro arrastar o rolo de capim na vertente do rio.
- Puxa no gancho, Chiquinho!
O solão começava a esquentar na medida que se alçava nas alturas do céu. A passarada do brejo assustava-se com o barulho dos homens na peleja da roça. Os preás procurando escapar para o refúgio de outras manchas da várzea, antes de morrer no cacete da travessia de lombo de fora em campo aberto.
Bispo cuspia na palma da mão e esfregava uma na outra, para endurecer os calos. Os tempos de almocreve estavam recentes, os noprós do cabo do relho não coincidiam com os da peroba alisada no manejo constante da enxada, a diferença do instrumento de trabalho.
Os matos passavam rapidamente da posição vertical para a situação horizontal, embolados, destroçados na ceifa. Os pendões tombavam impotentes ao avanço dos homens e do metal. Em uma semana, os montes de capim seriam lambidos pelo fogo da queimada.
As horas seguiam-se na cadência regular do dia. Sete, oito, novo, dez horas. A foice vadeava na macega, o suor porejava nas costas do camponês e dava reflexos para os raios de sol. O Sulano escoava pesadão, aprisionado nas margens baixas, fonte inesgotável para matar a sede dos homens e dos animais, a riqueza da "Lagoa Vermelha."
Bispo parava um momento para beber água nas conchas da mão, saboreando o perfume que subia da terra úmida, recentemente privada da cobertura vegetal. O caboclo identificava-se com a natureza, o capim torado no chão e o pedaço de madeira que se faria cabo de ferramenta. Trazia Lindaura no pensamento e a transformava na rama florida da baronesa.
Bispo levantava a vista ao horizonte e suspirava profundamente. Os pés atolados no barro lamacento, que em pouco tempo estaria semeado de arroz. A casa branquicenta do Coronel Saleme projetava-se de frente, bem plantada na elevação do terreno. Se aquela boa morada fosse dele, poderia ver Lindaura varrendo o alpendre. A flor encaixada na cabeleira negra, a cintura marcada sob o vestido de chita, os seios arredondados. À tarde, regressaria cansado da loita, para lavar os pés na água da tina e calçar o tamanco novo. Depois recostaria o espinhaço na rede para esperar a hora da janta.
- Bota a ceia, Lindaura.
Jamais. Dispunha apenas desse dinheirinho contado do eito para viver. Com a diária a mil e duzentos réis, a riqueza não passava de sete mil e duzentos no pagamento do sábado, conforme o caderninho do patrão. Menos o fiado do barracão durante a semana, não lhe sobrava mais do que dois mil réis. Se Lindaura tivesse de esperar esse cobre crescer para comprar as coisinhas de casa, iria morrer de velhice, solteirinha.
Bispo confirmou que por esse caminho não chegaria à venda e pegou a cismar num roçado por conta própria. Havia um pedaço de terra descansada na gruta "Encantada" que já dera boa malhada. O Coronel Saleme não pretendia ocupar a mancha negra nesta safra, pelo que se sabia. Com certeza, outros roceiros ainda não haviam espichado os olhos para aquele recanto fértil da fazenda.
No dia seguinte, Bispo peitou o proprietário.
- Coronel, quero plantar uma rocinha na baixada da "Encantada."
- Pra que você quer fazer malhada, Bispo?
- Coronel, o senhor sabe que estou de casamento acertado com a Lindaura, do velho Totonho.
- E você vai poder, depois do eito?
- Coronel, vou plantar a roça de noite.
Bispo aproveitou a segunda-feira de lua cheia para começar a preparar a superfície da terra que arrendara com o Coronel Saleme. Estava convencido de que retiraria daquele pedaço de barro escuro os recursos que precisava para casar, seria coisa de sete a oito meses de espera. A terra ocupava posição discreta em relação às plantações do patrão. Afastada da cerca do gado, um perigo permanente às roças alheias, parecia que o boi adivinhava que era dos caboclos. Estava dura de limpar, cravejada de gitirana, cipó-de-fogo, capim-açu e embaúba brava.
A partir desse dia, Bispo passou a suar na diária do eito; na enxada do Coronel estava a garantia do mantimento, o sustento seguro, mesmo na unha do barraqueiro. Pegava pelas sete horas e largava às onze. Dava um pulo no casebre de palha que tinha no outro lado do rio, comia dois punhados de farinha e estava de volta ao batente até as cinco da tarde. Nem chegara a avisar Lindaura e o velho Totonho da atividade noturna, queria surpreendê-los quando já estivesse com o dinheiro na mão. Colocaria tudo na bolsa da noiva.
- Vá buscar o que precisa, Lindaura.
A foice vadeou segura no desmatamento da gruta "Encantada." A estrovenga subia nos ares para tomar impulso, descia perigosa e cortante sobre os cipós e varas da gebara. Pegava na sua roça antes das seis da tarde, querendo aproveitar o restinho de claridade do sol. Mais para a noite dependeria dos raios da lua e do morrão de querosene que trazia para alumiar o serviço do campo.
À noite o cheiro da terra, guardado pela sombra da folhagem e das touceiras de bambu no aceiro da mata, ressumava ativo e embriagador. Bispo pressentia que trabalhava no filão bem escolhido, o pedaço de vargem dava-lhe esperança de colheita generosa. Aquele chão parecia fiel, dentro de alguns meses teria a recompensa que procurava, com sobra.
O caboclo entregava-se ao esforço desesperado pelo muito amor que tinha a Lindaura, para que ela tivesse o que merecia do mundo. Bispo não era cabra de duas conversas e nem de temer parada dura. Queria uma cama grande, atapetada no colchão de capim; uma mesa e quatro cadeiras. Talvez o sofazinho no canto da meia-água. Tudo teria de surgir daquela roça que prometia, com os poderes de Deus.
Feito o serviço da broca no beiço da foice, pegava no cabo roliço da enxada para destocar o terreno e afofar a terra no preparo das muçucas. Parava um momento para tomar fôlego, escutava a zoada dos grilos arranhando as pernas no âmago da capoeira vizinha. A cigarra retardatária abria o apito retilíneo no galho da copiúba antes de morrer com as costas estouradas. A cantiga do bacurau na poeira do caminho que seguia o rio abaixo.
- Amanhã eu vou!
A força da natureza, que fazia companhia ao camponês solitário no ermo da noite. Os insetos e aves notívagos juntavam-se à presença do homem no trabalho. Bispo pensava que talvez os pequenos animais fossem solteiros e estivessem dando o seu serãozinho, na intenção de arranjar companheira.
Durante a roçagem e limpeza do capinzal, Bispo havia contado com o pálido reflexo da luona em plena fase, que o espiava até as onze horas. A lua foi se retardando e aos poucos desaparecendo do céu, justamente no horário que seria mais conveniente. Obrigando o roceiro a trazer a tocha abastecida de querosene na etapa de preparo do solo para a semente.
Em dois meses de luta noturna, a metade das quatro tarefas de terra estava no ponto de maniva. Apesar de o Bispo ter chegado à conclusão de que trabalhar de noite era bem mais insosso do que de dia. Depois da energia desprendida no eito e o suor derretido pelo sol, a enxada de três libras começava a pesar mais de dois quilos à meia-noite. Hora de arriar a trouxa, esconder na mata os instrumentos de trabalho e retornar devagar pelo caminho escuro para estirar os ossos nas varas do jirau. Arrancava a luz que se dependurava do galho das árvores e avançava aos tropeços para o casebre de palha, até as seis e meia da manhã.
Antes de que o peso do sono lhe fechasse os olhos contra a própria vontade, Bispo só tinha um pensamento na cabeça.
- Lindaura.
Na névoa do sonho, pegava a falar com a noiva, fazia-lhe pequenos carinhos, prestando-lhe conta do trabalho e refazendo os planos mútuos de futuro. Demência deliciosa que o dominava por momentos, até que a brutalidade do corpo o apagava como um morto na cama rústica.
Daurinha, minha negra, nossa malhada está quase toda plantadinha. Vamos ter boa colheita, escolhi as manivas de mandioca verdadeira, daquelas que dão raízes volumosas depois de seis meses. Não poderá ser diferente desta vez. Nossos esforços não serão em vão, que Deus não vai permitir tanta judiação. Foram noites e mais noites dando duro na plantação, enterrando naquele chão os dias de domingo e feriados sem parar um só.
Você sabe que na primeira semana a lua nos ajudou bastante. Depois, a claridade noturna começou a falhar, a luona fazendo covardia com o nosso partido, tivemos de levar o morrão para alumiar a gruta "Encantada." Como poderia trabalhar de foice e enxada na escuridão? Logo estaria puxando em rabo de cobra julgando que fosse cipó-de-fogo.
Pena que a conta do gás pegou de aumentar para mais do contrato no caderno do barracão. Durante muitas noites, preferia fazer a fogueira de galhos secos no meio da roça para orientar o trabalho. O diabo foi que essa luz não podia ser transferida de lugar quando o serviço se afastava. Mas dava jeito e economizava o dinheirinho ganhado no eito.
O mais importante que tenho para contar é que o mandiocal está grelando, brotando todinho nas muçucas do terreno mais alto e na lombada das leiras no pedaço embrejado da gruta. Garanto a você que caprichei no traçado, a plantação está linheirinha. A semente é de primeira, vai dar uma roça de encher a vista dos invejosos. Plantei tudo de mandioca branca, tipo casca-de-seda, que produz muita massa e quase nenhuma cambueira na casa de farinha.
É só esperar, a natureza está do nosso lado. Não há motivo para que estivesse contra e se opusesse ao viço da rocinha. Nós somos pobres, mas cumprimos com todos os deveres e obrigações. Não matei ninguém, nunca roubei e nem fiz mal às filhas alheias. Tomo o patrão como testemunha para me dar folha corrida e morar em qualquer outro engenho.
Quando a gente se casar, hem Daurinha? Com o dinheiro que vamos apurar na farinhada, se pode até falar em pagode e bebidas para os parentes e amigos. Vamos comprar um bode capado da comadre Sebastiana e preparar a buchada para a festança. O velho Totonho vai se babar de alegria e com certeza mandará matar quatro ou cinco galinhas gordas. A gente casando, o povo comendo e bebendo, não vai ser bom?
Precisamos dar uma mão de cal caprichada na casinha em que vamos morar. Tornar as paredes claras e lisas, para que possam refletir o sol da manhã e sejam um atestado do nosso bem-viver. Fazemos questão que toda a gente da "Lagoa Vermelha" aponte a casinha branca e nos identifique com o dedo apontado. Para que digam naturalmente que ali vivem a Lindaura e o Bispo, com muito amor, graças a Deus.
Nossa roça vai ocupar mais de quatro tarefas de terra, uma beleza. Você sabe que aquele pedaço de chão estava descansado, fazia mais de três anos que o Coronel Saleme não o utilizava. Vai dar um mandiocal viçoso, agaranto. Deu um trabalhão botar o matagal abaixo, foi um serviço de escravo. Tinha vez que a foice rangia na cepa do bordão-de-velho e fazia a lâmina brilhar na claridade do lampião de querosene. Na limpeza do terreno, as raízes dos tocos chiavam dentro do barro preto, a enxada cantava que nem um berimbau.
Tudo será transformado em folhas viçosas e boas raízes. Os grelos-meninos ainda não sabem viver no mundo. Têm medo do menor ventinho que sopra do Sulano, querendo baixar a cabeça na muçuca e nas leiras, quando vem o chuvisco do aguaceiro. A plantação vai saber se defender do tempo e crescer bonita na entrada do inverno. Lá para novembro, a gente estará desmanchando as mandiocas bem criadas na casa de farinha.
Digo a você que jamais esqueci dos motivos, plenamente justificados, que me levaram ao trabalho puxado pela noite a dentro. Enfrentava tudo de peito estufado. Lindaura merecia todos os sacrifícios, queria fazer a felicidade dela e minha. Poderia haver motivo mais relevante para tirar fogo das pedras?
A fazenda "Lagoa Vermelha," antigo engenho de fogo morto, tinha de ser bem administrada e dispor de vargens extensas e férteis. O Coronel Saleme não podia ser apontado como o pior de todos os patrões. Praticava suas ruindades e algumas bondades, reconheciam os caboclos. O eito era pesado, um dia de oito horas completas batidas na sineta da casa-grande. Os preços cobrados no barracão puxavam sempre para o lado da carestia. Dentro do costumeiro da gente do campo, o dono precisava compensar no caderno do fiado a malandragem de meia dúzia de trabalhadores manhosos, que tapeavam o serviço na hora da produção.
Todos imaginavam que Bispo faria um bom casamento. Lindaura parecia uma flor, além de séria e ativa dentro de casa. Totonho não era tão ruim, apesar de ser um velho sovina, xinguento e abusado.
- Sogro é sogro, consolava-se o futuro genro.
Bispo demorava-se algumas vezes, apreciando com ar sisudo o ambiente do mandiocal, nos fins das tardes feriadas e domingueiras. Certificava-se do avanço das folhinhas que brotavam do talo das manivas. Chegava terra às touceiras para dar-lhe mais substância vegetal, os maiores cuidados com os pés mirrados. O olho vigilante para o esperado ataque da saúva, a maldita formiga-de-roça que traçava o caminho na mata em direção à plantação alheia.
Ao descobrir o carreiro que avançava entre as gebaras, concentrava-se na busca ao buraco do formigueiro. Dava garra da lata de formicida, misturava um pouco de água para fazer o veneno render. Derramava o líquido leitoso no gargalo dos panelões, a pretensão decidida de acabar com a praga no âmago da terra. A batalha sem trégua, as formigas surgiam em outros pontos de mais difícil acesso, ameaça permanente ao mandiocal da gruta "Encantada."
Bispo descobria-se acocorado na malhada, tirando a mira na fileira das muçucas, a cova de onde brotavam dois tenros pés de mandioca. Começava a compreender que as plantações tinham acanhamento em aumentar de tamanho na presença de estranhos, à plena luz do dia. Preferiam guardar o calor que captavam do sol, sugar a seiva da terra com as pequenas raízes e deixar para crescer nas altas horas da madrugada, longe das vistas incômodas. O noivo achava que, nesse aspecto, as plantinhas eram tão pudicas quanto Lindaura, moça solteira de respeito, a linda do velho Totonho.
Às vezes Bispo marcava os pezinhos mais taludos, para verificar o segredo do crescimento no dia seguinte. Contava as folhas de alguns brotos, media a altura dos talos. Para confirmar a alegria na outra manhã com o desenvolvimento maravilhoso.
- Estão crescendo mesmo...
Cada passo daquela roça tinha um significado surpreendente para o camponês. A certeza do casamento que se realizava. Abraçar Lindaura na cama grande, emprenhá-la na primeira cruza, aguardar feliz o bruguelo em nove meses. As quatro tarefas transformavam-se no sentido da vida, planos e satisfações que faziam parte das necessidades da pessoa mais simples.
Dias em que perdia a paciência. Contava nos dedos os meses que se arrastavam até a colheita, a farinhada e a venda dos sacos no barracão. Avaliava alarmado os perigos que poderiam impedi-lo de casar com Daura. A seca despropositada nesse inverno, o ataque do novo tipo de formiga, a inutilidade na aplicação da formicida cara.
- Um tempão...
Balançava a cabeça desolado e marchava capiongo para descansar no jirau de varas do casebre.
No terceiro mês de plantados os toletes de maniva, a roça deu sinal de que precisava de nova limpada. O trabalhador rural andava relativamente folgado nesse tempo, afora o combate às formigas.
Os matos que haviam sido postos abaixo pela foice e destroçados pela enxada, reforçado com o tiro de misericórdia das labaredas na queimada, tinham deixado sementes e descendentes escondidos nas dobras da terra.
A limpeza obrigava o homem a programar novamente as jornadas noturnas.
- Esse mato é uma praga.
Bispo deu de dobrar no serviço, que nem o sino da igreja do Riacho Doce, no dia em que morria gente graúda do lugar. Onde haveria de casar brevemente, com a proteção dos santos e o consentimento dos homens da terra. Lindaura valia a pena. Queria poder enrolar carinhosamente nos dedos a basta cabeleira da doce morena, passar o braço em torno da cintura dela. As pernas grossas, a garantia de gozos futuros e infinitos. O par de peitos mais saborosos do que favos de mel.
Pegava no eito do Coronel Saleme bem cedo, ainda com o sol friozinho. Arrastava a estrovenga até que o calor se avizinhava do meio-dia. Devorava a gororoba sem nem sentir o gosto, por via de obrigação e necessidade. No começo da tarde, reiniciava a trabalheira, a fim de merecer os mil e duzentos réis de crédito no barracão. Acompanhando com atenção a descida do sol no rumo horizontal, quando o vento mudava de direção e se tornava mais agradável. Tomava o banho na corrente fresca do Sulano, fazia a boquinha de farinha seca e botava a enxada nas costas a caminho da gruta "Encantada."
Marcava no calendário as noites de lua, procurando fazer coincidir o serviço da malhada com o clarão do céu. Trabalhar na base da tocha da lamparina ficava caro, o querosene havia subido de preço no barracão o mês passado. Preferia atrasar o horário de entrada a cada noite. Esperar o olho amarelado que brilhava por trás do outeiro, os tempos de lua nova ou da cheia. No quarto minguante e no crescente, espantava a escuridão da mata com a chama bruxuleante do candeeiro de lata. O serviço urgia, os matos avançavam com mais força.
Tirava a camisa de saco encardida para trabalhar mais livre, o frio da noite ainda estava longe. Fazia soar a enxada velha nos golpes aos montículos de terra, libertando do cerco mortal as hastes da plantação que em pouco tempo se enraizariam na terra para formar a mandioca da farinhada. A peça de três libras ceifava sem contemplação os remanescentes da mataria que teimavam em invadir o terreno sagrado da roça do homem.
O dlém-dlém no barro e nas pedrinhas soava como música nupcial aos ouvidos do camponês. O som parecia augurar-lhe a certeza do futuro, a garantia das raízes grossas e de muita massa. Bispo não poderia se permitir um engano no manejo da enxada, que o ferro resvalasse no falso das covas e decepasse indevidamente o talo plantado. Julgava-se um fino roceiro, acostumado com o traçado, sabedor do que fazia.
Por momentos suspendia a atividade de raspagem do solo com o ferro frio e respirava os ares da noite. A brisa trazia o odor de terra úmida e matéria orgânica em decomposição no interior da floresta. Observava o disco amarelo da lua cheia que surgia pelos lados marítimos do Pratagi, procurando distinguir a mancha escura da face pálida onde vivia o santo cavaleiro.
- Valei-me, São Jorge.
As águas do Sulano que escoavam apertadas e suaves entre as margens de canutões refletiam a claridade noturna como uma fita tremulante. Bispo cismava sobre o mistério da força da lua e a paixão dos namorados, o semblante brejeiro de Lindaura pairando no ermo da gruta "Encantada."
Lindinha, você é a minha verbena que não murchará nunca. A malhada logo estará em ponto de ser colhida, vamos desmanchar as raízes grossas na casa de farinha do Coronel. O mandiocal dá gosto de ver, está inteirinho e sem falhas pelo meio, o viço escuro cobrindo o pedaço de terra descansada. A plantação mais taludinha do lado do Sulano, um pouco mais fraca no aceiro da mata.
As mãos do teu noivo estão mais calosas do que o costume, mas não me arrependo nem um tico da empreitada. Trata-se da honra do meu nome, do conforto que merece minha mulher e da saúde dos moleques que vão nascer fortes e parrudos, um atrás do outro. O que queremos e vamos fazer, sem nenhuma dúvida.
Tudo indica que o casório está garantido. Pode marcar a festa para o dia 13 de dezembro, a data de Santa Luzia, nossa santa protetora. Precisamos sair cedo para o Riacho Doce, as testemunhas e parentes devem ser apressados, daqui até a igreja é uma tirada boa na palheta. Nada será feito fora do acordo com os homens e a lei do padre.
Deixei de ser almocreve para ficar perto da minha noiva, você sabe disso. Também para poder juntar um dinheirinho. Fiz como imaginei e te prometi. Não sou mais lorde do que os companheiros do eito, mas tenho minhas especialidades. Não me faltará força nos braços para terminar a tarefa a que me impus de caso pensado.
Parei até de caçar, distração que tanto apreciava. Todos os domingos pegava da espingarda velha de feixe e me mandava para as matas. Derrubar uma carnezinha fresca nas costas do veado e do porco caititu. Espero poder voltar brevemente às escapadas em busca dos bichos do mato. Será bom preparar uma espera para as pacas que estão comendo o coco catolé. Logo que a gente se arrume.
Afastei-me das pescarias que às vezes fazia à noite. Gostava de fisgar um jundiá gordinho nas águas cinzentas do rio Sulano, uma traíra nas baroneses do brejo. Prometo-te ser melhor pescador, do Natal em vante. Preciso cortar algumas varas de meiú nas capoeiras de Duas Bocas e comprar as linhas de arame 22 na feira de Rio Largo. Tudo faremos mais sossegadamente depois da visita ao padre do Riacho Doce.
Esse povo vai ter de reconhecer e gabar o Bispo, teu marido, como cabra macho e de muito respeito. O Coronel Saleme está apalavrado de padrinho, pode ser até que arranje os animais para a viagem do casamento. O velho Totonho não vai ter direito de falar tantinho assim de mim e nem de você. O genro dele é um homem de calete, todos sabem disso na "Lagoa Vermelha," nunca fiz isso ou aquilo fora do traçado. A filha caçula vai passar para boas mãos, só queremos que ele tenha gosto e te dê a benção de pai. E nosso patrão, sua aprovação.
Você sabe que sou capaz de virar o dia e a noite no caboda peroba, mas não de zombar dos mais velhos e superiores. Se queria a Lindaura e ela me querendo, foi para cumprir os ditames do costume e da tradição. Se dessa maneira alguma coisa sair errada, não será do meu alcance e julgamento. Namoro, noivado e casamento. Nos seus prazos e condições, sem subterfúgios de qualidade nenhuma. Conforme aprendi na lição do finado meu pai, que Deus o guarde.
- Quem anda com segredo não presta.
O mandiocal chegou ao ponto de colheita, estava maduro e bonito. A mancha de terra coberta do verde escuro da folhagem de maniva parecia um tapete semovente, os talos vermelhos se equiparando em tamanho e altura. Bispo pretendia contratar gente para ajudar na farinhada, não seria tarefa para duas ou três pessoas. Arrancar a mandioca na roça, carregar nos caçuás para a casa de farinha. Raspar a casca das raízes sujas de barro e lavá-las nas águas do córrego. Cevá-las no caititu e espremer a massa na prensa para a retirada da manipueira. Além de peneirá-la. Antes de jogá-la no forno para ser revolvida na pá do rodo de madeira, a fornalha de bambu queimando embaixo para secar.
Bispo e Mané Paulo, de dorso nu, giravam a manivela da roda que movimentava o caititu. A corda encardida saía do entalhe da roldana, viajava suspensa no ar em direção à orelha do caititu. Maria Sebastiana empurrava as raízes de encontro às lâminas dentadas de roer mandioca. A emenda do barbante voava para lá e para cá, seguida pela vista dos homens que manejavam o sarilho na força do braço.
O movimento fazia Bispo transportar-se ao futuro desejado nas graças da negra simpática que era Lindaura do velho Totonho. A perspectiva prazerosa representava o segredo da força do caboclo jovem. A noiva, um pedaço de morena que dava água na boca. Já sentia a grandeza do corpo dela entre suas mãos. As pernas roliças e os seios macios que se escondiam por baixo da roupa de uso caseiro.
O caititu gemia devorando as raízes de mandioca que Sebastiana empurrava sem parar contra as serras afiadas. Ossalpicos de massa molhada iam grudando no rosto e nos cabelos da cevadeira a tal ponto que sobressaíam através do pano vermelho amarrado à cabeça, lenço de trabalho.
Os dois homens enviavam de cá para lá a força dos braços por meio da rodona grande, folgada no eixo central, com o esquisito barulho do peleco-peleco. Mané Paulo soltava o veio no ar, deixava-o dar uma volta em falso, enquanto mudava de mão. Bispo seguia-lhe o exemplo para contrabalançar o ritmo modorrento.
No amplo salão da casa de farinha, a mandioca se amontoava, a cada hora renovada pelas viagens dos burros que chegavam da gruta "Encantada." No conjunto, predominavam as raízes de casca fina e branquicenta, do tipo mais massuda. Bispo gabando-se da escolha das sementes para o plantio, os tubérculos graúdos enchiam a vista do jovem noivo. Ele sabia que não podia falhar naquela tentativa de resolver seus problemas matrimoniais. Os esforços extraordinários teriam de dar o melhor resultado, Lindaura não agüentava mais na espera do dia sonhado.
Os burros emprestados pelo Coronel Saleme revezavam-se no carreto, as cargas atufavam os caçuás com a produção da roça bem plantada. Três mulheres espragatadas com a bunda no chão encarregavam-se da limpeza das cascas, as facas afiadas na faina da raspagem do reco-reco-reco. Elas jogavam as raízes nuas e brancas no balaio da ceva, que passavam à gamela de água barrenta. O destino final, as lâminas cortantes do caititu de Maria Sebastiana.
O fogo esquentava as lajes de cerâmica do forno, a fumaça tomava conta do ambiente, um cheiro só de palha queimada. Os nós do bambu estourando a cada momento, pufo-pufo-pufo. Bispo tinha de alertar João Benedito para dar dois talhos nos gomos da madeira oca, evitar que os traques do fogaréu desajustassem as emendas do teto da peça de cozinhar farinha. A massa secando, o movimento de vai-e-vem do velho Durval na pá do rodo.
Bispo encarregava-se pessoalmente de dar mais duas voltas no fuso da prensa, notava que a manipueira diminuía o jorro na escorrida. Um estalido seco na prancha, sinal de que as dobras da madeira negra chegaram ao máximo de compressão. Qualquer esforço adicional poderia fazer estufar a massa mole por entre as folhas de bananeira que a envolviam na capa protetora.
Lindaura, figura de honra da farinhada, tomou como tarefa o peneiramento da massa enxuta que provinha da prensa, separando a goma das cambueiras. Ao sinal do mexedor, jogava pequenos volumes dentro do forno. O rápido movimento do rodo tocava superficialmente a massa misturada, a úmida e a seca.
Bispo regressava da prensa para acudir Mané Paulo, o companheiro esfalfava-se no cabo da manivela. O noivo demorava-se um instante no carinho passageiro à prometida, as mãos escorregavam familiarmente sobre os braços roliços da jovem mulher. A palma calosa apalpando a cabeleira negra dela, o homem bebendo àvido o sorriso que brotava no canto da sua boca.
A roda de madeira entalhada, que servia de guia à corda para transmitir o movimento ao caititu, parecia estar empenada. Começava a emperrar, exigindo maior esforço dos robustos puxadores. O longo barbante trançado voava bamboleando em direção ao pescoço da peça giratória sob o controle de Maria Severina. O nó do meio marcava as sucessivas idas e vindas. O caititu chiava que nem um porco na hora de sangrar, coin-coin-coin.
O mutirão da farinhada durou três dias e três noites. O movimento na casa de farinha da fazenda "Lagoa Vermelha" ocupou nove pessoas, sem contar o principal interessado e a ajuda da noiva. Quando Bispo deu o basta, os companheiros estavam caindo de sono e cansaço. Esgrouvinhados. A roda grande parecia haver derramado lágrimas, a graxa preta escorrendo do buraco do eixo. O caititu semelhava um tatu-peba que fugia da toca, lambuzado de massa pinguenta. O fuso da prensa tombado de lado, como se descansasse do esforço de apertar a massa contida entre as folhas de bananeira. O forno ainda quente, querendo soltar uma fumaçazinha de despedida. O sabiá-gongá já esgaravatava os resquícios da goma no rego de drenagem da manipueira que escoava pelo solo.
O comandante-em-chefe da operação teve pouco alento para dar a derradeira ordem naquela batalha:
- Minha gente, vamos descansar.
À noite foi que Bispo pôde fazer e recontar a despesa, o lucro e o prejuízo da farinhada. Teria de dar uma gratificação ao pessoal que colaborara com ele no desmancho do mandiocal, além da cuia de farinha que entregara a cada um. Não seria justo de sua parte dizer apenas muito obrigado a todos. Mais as doze cuias que cabiam de renda ao Coronel Saleme, pelo uso dos equipamentos da casa de farinha.
Na hora em que teve de negociar com o barracão as oitenta cuias de farinha que lhe restaram, destacado o saco que mandou guardar na casa do velho Totonho, foi que Bispo avaliou com pesar o desastre em que se metera. Não dispunha de burrama para vender a produção por bom preço na feira de Rio Largo. Teve de submeter-se à faca cega do patrão. O Coronel Saleme botou o pé atrás, nem parecia o padrinho do casório. Adquiriu a farinha ensacada pelo valor estipulado previamente: dez tostões, a cuia.
O senhor não imagina o quanto fiquei abestalhado depois de tudo terminado. As noitadas de lua no cabo da peroba na roçagem das quatro tarefas de terra, a semente e o plantio da mandioca. As limpezas da malhada e a trabalheira da farinhada. Esforços e resultados perdidos. Restaram nas minhas mãos quinhentos réis, cinco tostões de favas contadas. Menos de uma diária de eito nas terras do Coronel Saleme. O senhor está me acreditando?
Não queria bancar moda e nem dar bom exemplo aos trabalhadores da "Lagoa Vermelha". Ninguém se arriscava a entrar pela noite a dentro em roçado particular, com tenções de riqueza. Todos faziam o serviço na conta, descansavam o tempo necessário e comiam o pedacinho de charque com a farinha do barracão. Num feriado, numa boca de tarde, pescavam um peixinho no rio Sulano. Matavam uma paquinha na espera da palmeira catolé, o coco maduro caindo no chão. Bispo não queria bancar o sabichão, era tudo por mor do casamento com Lindaura.
Daurinha chorou lágrimas de sangue quando mostrei a ela o que sobrou do tesouro encantado. A riqueza sonhada do casório, marcado para daí a pouco mais de mês.
A hora de repensar a situação. Devagar, fui acertando com Lindaura como se poderia resolver o problema. Assim fui levado a pedir opinião do próprio velho Totonho, o conhecimento do Coronel Saleme.
Digo ao senhor que tive de baixar a pancada. Arriei a crista de galo do primeiro poleiro e fui bater na porta do patrão. Tinha decidido pedir-lhe um empréstimo de longo prazo para que pudesse me casar, a dignidade que a família de Lindaura e a do Coronel mereciam.
Subi degrau por degrau a escada da casa-grande. O chapéu na mão, a esperança de que fosse compreendido pelo dono da propriedade. Abri-lhe a alma como se fosse um menino arteiro que pedisse perdão das travessuras cometidas. Os sucessos recentes que ele já tinha adivinhado.
- O que você quer de mim, Bispo?
- Seu Coronel, quero que o senhor me empreste cem mil réis.
Coronel Saleme rebateu a bucha na pancada:
- Como você vai me pagar esse dinheiro?
- Seu Coronel, vosmecê não é meu pai, mas é meu patrão; o que eu ganho, recebo das suas mãos; o senhor pode descontar um tostão de cada dia de trabalho meu; sem esse dinheiro, não posso me casar na igreja do Riacho Doce com Lindaura...
O Coronel Saleme foi rápido na decisão:
- Bispo, você é um caboclo de confiança; tome aqui o dinheiro que você precisa e seja feliz.
Digo ao senhor que rodei quase quatro anos no eito para pagar aquela dívida sagrada, contraída com o bom coração do Coronel Saleme. Foram mil tostões, amortizados durante mil dias de serviço, sem faltar um só.
Lindaura me apoiou em tudo e recompensou com juros de judeu, toda a vida, disposta de corpo e alma. Ela pagou mil vezes mais aquele dinheiro suado e chorado.
Bispo chamou a mulher que remexia nas panelas, nos fundos do casebre enfumaçado onde vivia até hoje, cercado de filhos e netos.
- Lindaura, minha velha, conta aqui pra esse senhor como foi que a gente se casou, conta...



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