"Amigo é coisa pra se guardar no lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distància digam não, mesmo esquecendo a canção. O que importa é ouvir a voz que vem do coração. Seja o que vier, venha o que vier Qualquer dia amigo eu volto pra te encontrar. Qualquer dia amigo, a gente vai se encontrar". (Canção da América - Milton Nascimento)
Nós, humanos, temos a mania de criarmos datas para celebrarmos aquilo que deveríamos celebrar, ou no mínimo, preservar todos os dias. Com exceção de nosso aniversário, que por lógico, só acontece uma vez por ano, todo o resto nada mais é do que o reflexo de nossa frágil racionalidade que nem sempre consegue valorizar aquilo que realmente tem valor.
Sem fugir à regra, hoje, 20 de julho, comemoramos o dia do amigo, como se houvesse data específica para praticarmos um dos mais nobres e recompensadores sentimentos humanos depois do amor: a amizade!
Na atribulação do mundo moderno, até que estas datas passam a ter sentido, pois o que nos é mais caro acaba ficando em segundo plano devido à s necessidades materiais de cada um, além da competição pela sobrevivência em um mundo cada vez mais frio, solitário e violento. Já não encontramos tempo disponível para jogar conversa fora, para um café no bar da esquina, para abraçar um amigo ou enviar um e-mail.
Não há nem mesmo tempo - ou inspiração - para um aprendiz de escritor sentar e escrever um texto, falando da importància de seus amigos e o quanto estes lhe são caros. Talvez por que mesmo que eu falasse a língua dos anjos não conseguiria ter êxito nesta empreitada de dizer o que ainda não foi dito sobre a amizade, ou discorrer sobre o que significa ter amigos.
Na verdade, não há necessidade disto, pois entre verdadeiros amigos, os diálogos são mudos, próprios de cada um, carregados de uma estranha linguagem de sinais invisível, muitas vezes imperceptível para os estranhos a esta amizade, porém sincero, puro, verdadeiro.
É assim, pois, como escreveu Aristóteles, na amizade ocorre uma abertura de porta de um ao outro que pode ser vista como um engrandecimento do eu. Neste momento, nos relacionamos com nosso amigo, da mesma forma como nos relacionamos conosco mesmo, uma vez que um amigo é um outro eu. Então, a amizade tem o dom de abrir uma porta para afugentarmos o egoísmo, para fugirmos desta maldita crença de sempre buscarmos o interesse próprio e isto pode ser visto como um engrandecimento do eu.
A amizade, segundo Kant, exige sentimentos sem importància moral, pois é um assunto puramente pessoal, que requer um traço de caráter merecedor de atenção, indo de encontro ao tratamento imparcial que devemos ter para com todos, pois um amigo é uma pessoa que tratamos de modo diferente das outras.
Foi preciso abrir o jornal hoje e ler a crónica da amiga Maria Thereza Veloso, ao comentar o sucesso dos chamados shows de realidade, quando escreveu que "o segredo da bisbilhotice é fazer do outro um espelho onde perceba a si mesmo como seu próprio duplo, numa forma à s avessas de ser menos só", para receber um sopro de inspiração e perceber que numa casualidade feliz, este conceito adapta-se perfeitamente ao pensamento aristotélico em relação à amizade.
Então, que se dane o moralismo kantiano. Não há nada de imoral em reconhecermo-nos uns nos outros.
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