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Artigos-->Leitura do Filme - Contos Proibidos do Marquês -- 13/12/2006 - 05:22 (ALZENIR M. A. RABELO MENDES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Leitura de Filme

Formação discursiva e verdade em Contos proibidos de Marques de Sade



Maria Alzenir Alves Rabelo Mendes

Mestranda em Letras Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre – UFAC.

Professora de Literaturas de Língua Portuguesa.



O filme Contos proibidos do Marquês de Sade focaliza os fatos em torno dos primeiros momentos da Revolução Francesa, período em que o Marquês de Sade, protagonista, encontra-se confinado na Bastilha, uma prisão construída para nobres pelo Estado Absolutista, e estende-se até 1794, ano que marca um decênio de reclusão do Marquês, preso como reincidente, acusado de libertinagem, orgia e perversão sexual.

A leitura ora proposta sobre o filme tem como objetivo fazer um estudo sobre a configuração discursiva e a formação ideológica dos sujeitos historicamente situados e inscritos em espaços sócio-ideológicos, onde se contrapõem o discurso do desejo sensual, materializado em Sade, e o discurso do poder institucional, materializado naqueles que o representam. Envereda-se, portanto, pela Análise do Discurso, disciplina que solicita o enlace de saberes diversos das Ciências Humanas, especialmente, daqueles advindos da História, cuja problemática focaliza o sujeito inserido em formações discursivas, nas quais “se encontram o discurso, o sujeito e o sentido” que se constrói no contexto sócio–histórico (GREGOLIN, 2004, p.91).

A perspectiva teórica aqui assumida fundamenta-se nas idéias de Michel Foucault , e em seus estudos da fase denominada Arqueológica, na qual elaborou a tese sobre a História da Loucura na Idade Clássica. Centrando-se nas ciências que tomam o homem como objeto, o filósofo argumenta que a Psiquiatria foi constituída nas práticas institucionais como um dos instrumentos de controle sobre os sujeitos relegados ou considerados perigosos para a sociedade, tal como vivencia, no filme, o Marquês de Sade, em Charenton, um sanatório-prisão da França iluminista.

Na condição de preso, sob a tutela do Estado, Sade é submetido a técnicas de tortura no abrigo para doentes mentais, em práticas justificadas pelo fazer da medicina experimental. Ali é tratado como se fosse um objeto de experimento para a Psiquiatria que, assim como os demais saberes emergentes no século XVIII, aspira ao estatuto de ciência. Em seus estudos, Foucault indaga sobre o que confere validade aos discursos de uma dada época e lugar, sobre o que é científico ou não. E conforme afirma Crisoston Terto Vilas Boas, o objetivo de Foucault é “desvendar as ‘regras’ de uma época que tornam possível afirmar o falso, o patológico e o errado, contrafração do verdadeiro, normal e certo. (...) estabelecer a que nível se articula o “discurso da verdade”, referindo-se a questões tais como “quem diz”, “como se diz” e “que instituição o diz”. (VILAS BOAS, 1993, p.12).



Nos estudos da fase denominada Genealógica, entrelaçando-a a Arqueológica, Foucault lança-se ao estudo das origens do discurso e da articulação entre saber, poder e verdade. Esta última, compreendida não como uma verdade a ser descoberta, mas como o conjunto das regras que conferem o estatuto de verdade às práticas e aos efeitos das estratégias do poder que perpassa por todos os indivíduos, e que, implicado ao saber, sustenta a produção de verdades. Em sua análise sobre as instâncias do poder (Microfísica do Poder), Foucault argumenta que o discurso portador da verdade é instaurado no seio das sociedades, como se pode observar em suas palavras:

A verdade não existe fora do poder ou sem o poder (...) ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 1977, p.10)



Foucault centra sua reflexão nas mudanças ocorridas na França na segunda metade do século XVIII (Vigiar e Punir), quando o Estado Moderno, orientado pelo Iluminismo, abole o espetáculo da pena, o suplício público e a exposição dos corpos dos condenados como forma exemplar de punição aos infratores. A partir de 1791, o Estado adota novas estratégias de pacificação social e “domesticação do sujeito”, conforme detalha Foucault:

Forma-se, então, uma política de coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. (FOUCAULT,1999, p.127)



A filosofia do Regime visa à restauração do homem. E para isso, dentre outras medidas, fundam-se as prisões-modelos com seus mecanismos de controle, fundamentados em discursos “científicos” que se apresentam como “discursos da verdade”, capazes de suplantar a verdade da religião, até então, soberana. Segundo Foucault, há uma "economia política" da verdade, centrada na forma do discurso científico que o poder faz circular nas instituições que reafirmam os dispositivos do poder disciplinar do Estado, como as prisões, os hospitais, os centros de reabilitação do sujeito, enfim naqueles lugares onde se efetivam saberes e poderes. O final do século XVIII é o momento da adoção de métodos e técnicas que creditam a si o ajuste dos indivíduos deslocados das formas de estruturação da Racionalidade elaborada como padrão para os sujeitos de uma sociedade Iluminada.

Fillip Kaufman, o diretor do filme, inicia a abordagem sobre esse contexto em Contos proibidos do Marquês de Sade, focalizando o espaço da rua, onde uma multidão, suja e mal vestida, aglomera-se no patíbulo para presenciar a guilhotina em ação, um instrumento moderno, projetado no início da Revolução Francesa, para aplicar de modo igualitário a pena capital aos que praticaram crimes do mesmo gênero. Tal procedimento foi adotado somente na segunda fase da Revolução, a partir de 1791, pelo regime de Terror levado ao extremo por Robespierre, um magistrado que se colocava como defensor da causa revolucionária e da moralização da França. (BURNS McNALL, 1977, p. 614).

A cena seguinte do filme constitui-se numa ironia ao modelo político da época. Enquanto uma mulher nobre sentenciada é conduzida à guilhotina, uma faixa vai sendo erguida no meio da multidão ostentando o lema Iluminista: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Lema esse irônico naquele cenário de miséria e violência, incongruente com um regime que propõe uma sociedade livre e organizada igualitariamente. No entanto, até mesmo para os condenados, a igualdade apregoada pelos mentores daquele novo regime é algo relativizado. O Marquês de Sade relata em seus escritos da Bastilha que, durante o tempo em que ali esteve preso, assistiu dos seus aposentos mais de mil execuções. Porém não se tem relato de que naquela cadeia suntuosa, os pobres fossem aprisionados junto aos nobres.

A ironia é mais evidente quando os dizeres “Morte à Tirania”, estampados na camisa de Samsom, o carrasco oficial, tornam-se legíveis quanto mais ele se aproxima da pessoa condenada para a execução da pena imputada por tiranos, travestidos de democratas em posição de mando. A pena de morte na guilhotina é instituída por eles como um dos dispositivos cerceadores de qualquer discurso que ecoe sentidos contrários à “ordem do discurso” em voga. Em tal ordem, a liberdade é um conceito contraditório, pois condena e aprisiona de acordo com julgamentos próprios de uma instância de poder.

As cenas das execuções, projetadas na tela, são evocadas pela memória de um sujeito que se enuncia como expectador e ao mesmo tempo como narrador-personagem das ações que têm como materialidade discursiva a obra literária de Sade, seus contos, Cento e vinte dias de Sodoma, Justine, Diálogo entre um padre e um moribundo, dentre outros, e textos teatrais, cujos personagens são extraídos do ambiente social da época e se revelam praticantes ou, pelo menos, simpatizantes das mesmas práticas sexuais que fizeram do Marquês um abominado da República de Napoleão. Este tendo galgado o poder exerce-o também com tirania e dá prosseguimento ao moralismo instaurado por Robespierre, deposto e guilhotinado em 1794.

Napoleão, porém, acatando as sugestões de seus conselheiros e harmonizando-se com as novas medidas disciplinares substitui a pena na guilhotina pelas técnicas de domesticação do corpo, ministradas em casas de correção com fachadas de clínicas de recuperação mental. O Marquês de Sade foi removido para uma dessas clínicas, de nome Charenton, por ordem de Napoleão, dez dias antes da queda da Bastilha, um monumento símbolo da era dos “reis-sóis”.

O confinamento de Sade em um asilo destinado a “insanos” é significativo, tendo em vista que ele representa o desejo de romper com as tradicionais estruturas reinstauradas na França no período napoleônico, seu confinamento é, pois, uma estratégia de poder que visa o apagamento do sujeito na sociedade, uma vez que o louco, naquele período, não tinha identidade, nem cidadania. Sade, ao longo de sua vida, saiu e retornou ao confinamento por diversas vezes, e veio a falecer no sanatório em 1814, ano em que Napoleão foi derrotado e abdicou do poder. Embora não tenha sido Napoleão o primeiro a mandá-lo para a prisão.

O Marquês já havia sido preso outras vezes. A primeira vez deu-se em 1763 (seis anos antes de Napoleão nascer), acusado por Jeanne Testard, uma prostituta, de orgia, sodomia e blasfêmia, e de obrigá-la a renegar Deus. Em 1768, outra prostituta, Rose Keller, acusou-o de mantê-la como refém durante vários meses, esse fato motivou a polícia de Paris a fazer alerta nos bordéis de que Marquês era um elemento perigoso. Constam ainda, nos registros históricos, outros atos dessa natureza que fizeram de Sade um freqüentador de presídios.

Adepto da Filosofia Natural, regido pelo princípio de que na natureza nada é bom ou mau, cruel ou criminoso, Sade coloca-se em posição contrária aos valores de sua época. Oriundo do regime monárquico em derrocada, ele fica deslocado no plano sócio-político pela sua não inserção nos filões da Revolução e nos clubes republicanos. No plano moral, seu deslocamento se dá pela rejeição que lhe é reservada por ser porta-voz da libertinagem, termo que designava os libertinus, no sentido de recusa a crenças religiosas, adeptos a inclinações naturais, a licenciosidades sensuais e à liberdade absoluta de pensamento.

Sade é, também, acusado de perversão, considerada na sua época como um desvio do comportamento normal e aceitável socialmente. Ao pervertido restava o tratamento psiquiátrico ou a exorcização dos demônios atiçadores de impulsos sexuais incontroláveis. Desse modo, Sade enquadra-se entre aqueles sujeitos, cujo discurso é passível de interdição. Para Foucault (A Ordem do Discurso), os interditos atingem o discurso porque

revelam, cedo, de imediato, o seu vínculo ao desejo e o poder. E com isso não há com que admirarmo-nos: uma vez que o discurso - a psicanálise mostrou-o -, não é simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo; é também aquilo que é objeto do desejo; e porque - e isso a história desde sempre o ensinou - o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos. (FOUCAULT, 2002, p. 2)



Nesse contexto, interpenetram-se e confrontam-se discursos e instâncias de poder. Essas instâncias presentificam-se na figura do Abade Coulmier, o diretor do sanatório, que pretende recuperar Sade, espiritualmente, através da técnica da confissão, um procedimento, segundo Foucault, “pelo qual o sujeito é movido a produzir sobre a sua sexualidade, um discurso da verdade, que é capaz de ter efeitos sobre o próprio sujeito.“ (Microfísica do Poder p. 264), no sentido de fazê-lo expiar e expurgar de si as forças do “mau”. O discurso religioso tem sua validade questionada quando é inserido no sanatório o discurso científico emergente no século XVIII.

O médico psiquiatra, o Dr. Royer-Collard, nomeado por Napoleão para inspecionar Charenton, vale-se de um arsenal tecnológico bizarro para “curar” o doente, o obcecado por sexo, o pervertido, que é assim considerado por negar os valores morais, o polêmico Marquês de Sade, agora feito prisioneiro em uma instituição de “recuperação mental”, onde os procedimentos técnicos adotados para disciplinar o corpo e a mente do sujeito, não diferem dos dispositivos de punição, dispositivos esses equivalentes às formas, anteriores ao Iluminismo, de supliciar os condenados.

O filme de Fillip Kaufman põe em relevo apenas as situações em que o protagonista, o Marquês de Sade, encontra-se sob o controle da instituição disciplinar que objetiva o refinamento das idéias pela “disciplina do corpo” e pelo cerceamento do discurso que se interpõe à verdade do Estado. O cineasta é, pois, o sujeito-autor que organiza um campo de configurações onde os sujeitos estão marcados por um momento histórico específico: o da imposição do Estado-Razão através de seus instrumentos de regulação social. O autor não se dá a conhecer pela sua identidade individual, e sim pela função assumida: a de conjugar os elementos construtores dessa configuração a partir da História e da Literatura, e ambas

implicam efeitos de sentido peculiares a essa produção e, ainda, a literatura dialoga com uma exterioridade perpassada pela história, que constitui memória discursiva em diferentes produções e implica efeitos de sentido decorrentes da inscrição dos sujeitos e dos discursos em diferentes lugares sócio-histórico-ideológicos. (FERNANDES, 2005, p. 2)



A História é a configuração discursiva através da qual se toma conhecimento dos lugares sócio-ideológicos onde se inscrevem os sujeitos da enunciação: o nobre pervertido, o escritor louco, o rebelde Marquês Sade; o representante do poder espiritual, o Abade Coulmier, que, respaldado no que lhe confere a religião, é o encarregado da cura espiritual do “possuído”, e propõe-na através da arte mímica e literária; e o Dr. Royer-Collard, o representante do poder da “cura do corpo”, validado pela ciência.

Kaufman imprime na obra suas concepções despojadas de moralismos sobre o assunto, isto é, a exacerbação sensual do protagonista. Este transita dos acontecimentos concretos da história, ao espaço da transgressão literária, onde dá materialidade a seu sistema filosófico de subversão moral em uma configuração que se rege por leis internas próprias. O filme de Kaufman é, portanto, construído pelos recortes dessas configurações, identificadas pelas marcações temporais e pela inserção de personagens extraídos da história e dos recortes da obra escrita por Sade na Bastilha e em Charenton. Dentre outros contos que compõem o filme, destacam-se Justine, Cento e vinte dias de Gomorra, Diálogo entre um Sacerdote e um Moribundo, considerados extremamente perniciosos pelo conteúdo depravado, logo, proibidos de circulação, o que não os impedia chegarem ao público que, ávido, se deleitava em cada palavra lida ou ouvida de alguém que soubesse ler.

Nos contos, Sade filtra a natureza complexa do ser que, sob a máscara dos pré-conceitos e da “vestimenta” da “boa moral”, encobre um outro ser atormentado por pulsões eróticas que beiram à perversão. Sobre este aspecto, o crítico Yvanna Bastos diz que a maior proeza de Fillip Kaufman “é fazer com que o espectador simpatize com seu protagonista: um homem que colocava seu prazer acima de tudo e de todos, e para quem o sofrimento alheio (físico ou psicológico) atuava como um potente fator rumo ao êxtase sexual”.

No entanto, os procedimentos “curativos” do Dr. Royer-Collard em muito beiram a perversão. O psiquiatra imputa ao “doente” um tratamento de tortura, cuidando de limitar cada vez mais suas possibilidades de ação, confinando-o definitivamente e proibindo de vez sua escrita quando Sade expõe as práticas sexuais dele em Os crimes do amor, uma peça de teatro encenada pelos “doentes”, através da qual, os expectadores são dados ao conhecimento sobre as “preferências” do falso moralista na intimidade conjugal com uma bela adolescente retirada de um convento.

Madeleine, a jovem camareira, transita por entre moralistas, amorais e “imorais”, por entre “loucos” e “não - loucos”, e possibilita que a Literatura “perigosa” de Sade também transite para além dos muros de Charenton. Por meio dela, os de Sade chegam ao editor e conseqüentemente ao público, também, ávido pelos “assuntos pervertidos”. O “pervertido” aqui toma seu sentido original, ou seja, aquilo que põe de lado o silenciamento sobre a sexualidade.

E a verdade que tem livre circulação, no contexto do filme, é a verdade de base religiosa, herdada dos clérigos medievais, ora negada, ora aceita durante a Revolução. Porém, legitimada pelo poder político na figura de Bonaparte, que determinou a disciplina do desejo e de sua expressão, mas o desejo contido resultou nas práticas de perversão trazidas à luz na obra de Sade, recebida como extravasamento “tresloucado” e uma afronta à ordem por um “insano”, “possuído” e praticante de orgia. Prática essa não tolerada pelo Estado porque, segundo o historiador Burgo Partridge, “[a orgia] não é essencialmente organizada, nem tolerada pelo Estado ou pela sociedade, visto que surge da equação gratuitamente estabelecida pelo indivíduo, face à sociedade ou ao Estado com o sentimento de reclusão e cerceamento que o aflige”. (PARTRIDGE, 2003, p.08).

A França daquele cenário não podia admitir o trânsito livre de herdeiros da aristocracia, representada no filme pela Senhorita Renar, uma metáfora construída por Sade que, no contexto do filme, desnuda o gosto da nobreza que vai de “caliente a bestial”. A Senhorita Renar, nas palavras do narrador/personagem, “devido a sua origem nobre tinha a liberdade de infligir dor e prazer ... até que um dia, encontrou-se à mercê de um homem, cuja habilidade de infligir dor excedia a sua”.

Sade, o elemento propagador dessa verdade incômoda, “retirada das páginas da história” para as páginas da literatura como um espaço de transgressão, torna-se alvo de cerceamento, já que uma outra verdade, forjada na Razão não pode tolerar aquela que se lhe opõe, e não oculta o seu gosto pela libertinagem, tão frisada pelo Abade Coulmier nos seus diálogos com o Marquês, como prática demoníaca, e não como forma de liberação do desejo recalcado pelo terror, tanto das penas do inferno cristão da velha ordem, como da guilhotina moralizadora de Robespierre.

Verdades dessa natureza causam incômodo aos remanescentes do Antigo Regime (Ancien Régime) e aos expoentes do modelo que se implantava, a República. É nesse contexto que Napoleão impõe a sua verdade e, como expressão máxima do poder temporal, autoriza os instrumentos reguladores e cerceadores daqueles que porventura coloquem em xeque as práticas governamentais adotadas. Embora a “pureza sexual” dos Franceses não seja a causa primordial do governo napoleônico, sua orientação religiosa, não pode admitir na República sujeitos com o passado sexual de Sade.

O confinamento em presídios e sanatórios torna-se um dispositivo de controle para os elementos nocivos à ordem vigente. O recolhimento de Sade ao sanatório justifica-se nas práticas libertinas e nos atos de violência sexual cometidos por ele na juventude. Atos estes que não são contemplados pelo cineasta que faz um recorte da vida do personagem e contempla somente os fatos em torno da Revolução Francesa até a morte do Marquês. Tem-se, assim, um confronto entre o discurso do filme, como uma expressão artística na qual o artista reelabora a realidade e imprime nela o seu juízo de valor, contraposto ao discurso da História que se apresenta como configuração pautada na objetividade e livre de pré-conceitos. Portanto, a figura do Marquês de Sade com sua escrita erótica e insurrecta, mostra que a sexualidade e o desejo são manifestações humanas e traçam um percurso em direção à superação dos obstáculos que cerceiam a liberdade do indivíduo.

Contos proibidos de Marquês de Sade, como materialização de duas configurações discursivas diferentes, a História e a Literatura, põe constantemente em interlocução os sujeitos em conflito, construídos por discursos através dos quais se pode apreender formações ideológicas advindas de outros contextos. De um lado, os valores de matriz espiritualista e, do outro, os valores materialistas, ambos disciplinadores do desejo do indivíduo e disciplinados pelo poder institucionalizado que tentam se afirmar como discursos portadores da verdade.

No filme, a ficção e a realidade se interpenetram e se confundem, tanto pela retomada do dado histórico, como pelo recurso da inserção de cenas, construídas a partir da leitura dos contos de Sade por Madeleine, a camareira. Os contos, como gênero de ficção, têm materialidade distinta do filme. Ambos pertencem a configurações diferentes da História. Mas mesclam-se a esta e tecem uma nova configuração discursiva na qual Sade é, nas palavras de Foucault, “aquele que dá à inquietante linguagem da ficção, as suas unidades, os seus nós de coerência, a sua inserção no real”.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



1 - BASTOS, Yvanna. Comentário sobre o filme Contos Proibidos do Marquês De Sade Disponível em http://www.texasfilmbarao.com.br

2 – BURNS McNALL, Edward. História da Civilização Ocidental. (Tradução de Lourival Gomes Machado e Leonel Vallandro). 20ª Edição. Porto Alegre, Globo, 1977.

3 - FERNANDES, Cleudemar Alves. Literatura: Forma e Efeitos de Sentido. In: II Seminário de Estudos em Análise do Discurso, 2005, Porto Alegre. http://www.discurso.ufrgs.br/sead/simposio3.html. Porto Alegre: UFRGS, 2005.

4 - FOUCAULT, Michel. A microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979.

5 -_______, A Ordem do Discurso (Tradução de Edmundo Cordeiro com a ajuda para a parte inicial do Antônio Bento). Versão para PDF por Júlio Babão, 2002.

6 -________, Vigiar e punir - nascimento da prisão. (Tradução de Raquel Ramalhete). 21ª Edição. Petrópolis, Editora Vozes, 1999.

7 - GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault: o discurso e a arqueologia dos saberes. In: Foucault e Percheux na análise do discurso-diálogos &duelos. São Carlos, Clara Luz, 2004.

8 - PARTRIDGE, Burgo. A Historia das orgias. (Tradução de Leonel Cândido Silva Phêbo) Lisboa, Edições Século XXI. 2003.

9 - VILAS BOAS, Crisoston Terto. Para Ler Michel Foucault. Imprensa Universitária da Ufop, 1999.



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