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Contos-->Escanção -- 07/10/2002 - 02:37 (Patrick Azevedo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ela entrou na sala e eu percebi que nem todo o vinho do mundo poderia me salvar aquela noite. Mas mesmo assim pedi que ela fosse pegar mais umas garrafas na cozinha. Eu não estava adivinhando nada. Só não queria ficar por baixo, não aquela noite, e o vinho me ajudava com as frases de efeito, e ela sempre ficava por cima, com vinho ou sem vinho, sempre tinha as melhores frases, sempre foi melhor com as palavras do que eu. Queria ser escritora, mas tinha a vontade frouxa. E o pior é que ainda escreve os melhores contos que já li, confesso que fico de pau duro com os contos dela, fico mesmo, e você também ficaria se lesse, mas não vai ficar, porque ela só mostra seus contos para mim, ela quer que eu fique de pau duro, não você. Acho justo. Estamos juntos há mais de dois dias, dois anos não é muito, mas é mais que dois dias. É o suficiente pra saber que uma garrafa de vinho não seria o bastante. E eu não estava adivinhando nada, era só olhar a cara da mulher pra saber.

Não vai querer que eu abra, não é?

Claro que não. Tá vendo algum pêlo grosso e nojento saindo do meu ouvido?

Pêlo grosso e nojento... Não, não tô. Mas não tá longe de começar a sair aos montes, do ouvido e do nariz.

Mas nunca vai me pegar um velhinho metido a zen fazendo ioga no parque...

...com a maior dor nas costas, querendo ser novo, pintando cabelo, desejando a filha mais nova do vizinho, cheio de manias estranhas, que se fodam as visitas, vai peidar em público, coçar a bunda e o saco, isso você já faz, não precisa ser velho, é como meter o dedo no nariz e arrotar na mesa...

Ah, vai se foder! Eu só pedi pra trazer a garrafa, não pedi pra abrir. Dá essa merda!

Ela sentou no sofá, dobrou as pernas com a elegância das francesas de filme de época e a saia levantou. Agora eu lembrei que as culpadas de tudo foram as coxas. E talvez sua elegância. Ela era elegante demais pra mim. Gostava de sair de salto alto, e isso me deixava real e simbolicamente mais baixo do que ela. Não que eu tivesse algum complexo de inferioridade; ela é que brilhava demais. E eu... eu só queria beber e provar os pratos e nada de jogar conversa de intelectual politizado ou artista entendido para ouvidos que fingiam entender o que eu nem ao menos fingia que sabia explicar. Não gostava disso, e ela sabia, e quando chegávamos em casa a gente fazia amor, e isso era como se fosse o único momento em que a gente podia ser igual, acho que ela pensava isso, ou eu é que penso que ela pensava isso, ao menos era isso que parecia, “já que você não consegue mesmo chegar ao meu nível, então me satisfaça, faça pelo menos seu papel de homem, me dê prazer, tente me dar prazer, veja se isso você consegue”, era como um teste, ela estava apenas fazendo um favor. Era horrível. É, acho que era um complexo, sim. Como as francesas conseguiam ser elegantes com tanta roupa e – dizem – tão pouco perfume?

Você não muda mesmo, não é?

Por que continua comigo, então?

O táxi vai chegar em meia hora.

Continua desesperada quanto ao tempo...

Coisa que você devia ser também. Ou talvez quanto a você mesmo.

Quer um gole? Pra onde vai?

Não sei. Quero sim. Talvez pra casa da mamãe. Ou então devo passar a noite num hotel.

Toma. Eu sabia. Sabia mesmo. Eu me conheço. Mais cedo ou mais tarde ia dar nisso.

Não vem com papo de que “somos muito diferentes”. Eu me esforcei o quanto pude. EU me esforcei...

Mas eu já sabia. Pra que me esforçar se...

Já sabia o caralho! Como já sabia? Ah! Como eu odeio essas coisas! Já sabia... Seja homem e assuma sua incapacidade... Se eu tentei por que não custava tentar também?

Mas eu tentei...

E não dê de ombros! Não há coisa mais patética do que ver você dar de ombros! Nunca faça isso em público. Não destrua o resto de dignidade que há em você.

Sim, o resto, porque você levou embora quase tudo. No fim das contas eu só acabava servindo de bibelô de luxo, eu só tinha valor quando eu era uma língua na tua buceta num banheiro qualquer de festa, quando eu era um pau bem duro no meio das tuas coxas. Só assim eu tinha valor, não é mesmo?

Eu achava que você gostava...

É, gostava. Mas eu não sou burro o bastante pra não perceber que era só assim. Era só assim... E se um dia eu perdesse meu pau, como é que ficaria? Passa essa porra dessa garrafa pra cá, já bebeu quase toda...

Eu quero beber! Eu quero beber! Eu comprei essa garrafa! Essa e todas as outras que você bebeu! Eu vou beber!

O táxi havia chegado, era a quarta vez que o cara buzinava. Levantamos juntos, ela pra janela, eu pro quarto. Estava escuro, as luzes queimaram. Pensei em pegar a arma em cima do guarda-roupa e acabar com tudo isso. Acabar com os complexos. Acabar com as angústias. Pôr um fim na miséria, a miséria do sentimento corrompido. Na sala, ela deixou a garrafa cair. Era a última. Acabar com as lembranças. Todas elas. As boas e as más. Ela tinha um grande senso de humor, quando a conheci. Talvez foram as coxas e o senso de humor, os grandes culpados. Íamos a festas e fingíamos que não nos conhecíamos. Eu conversava com umas garotas no bar e ela ficava de longe olhando, esperando a hora certa. As garotas eram bem atraentes e iam ali sabendo o que queriam. Se fosse no momento oportuno não hesitaria em leva-las ao meu apartamento. De repente ela se aproximava, ficava de papo com algum cara perto da gente, eu com as meninas, ela com os caras. A gente nem se olhava. Então, sem mais nem menos, ela chegava e ficava entre eu e as pequenas e me beijava como uma louca, ninguém entendia nada. Ou então ela me acordava com a língua molhada e fria passando pelos meus culhões e acabava com tudo na boca – eram as melhores manhãs. Isso era bem no começo. Grande senso de humor. Um dia tudo acaba mesmo. O que fica é o que nós fizemos. E no nosso caso o saldo não era nada positivo. Eu não estava admirando a arma. Eu só estava tomando coragem. Era mesmo difícil para eu tomar uma atitude de homem.

PUTA QUE PARIU!!! Pára de buzinar, seu merda!

Mas não foi daí que ligaram pedindo um táxi?

Não, ligaram pedindo um indiano em cima de um elefante! Ninguém vai mais sair! Não é preciso mais, desculpa!

Era mesmo difícil tomar uma atitude de homem... Era só ficar no quarto, estava escuro, não tinha o perigo do espelho, pôr a arma na boca ou na cabeça ou no peito e puxar o gatilho. Mas não.

Ai, meu pé, puta que pariu!

Era o último vinho, sabia?

Vai se foder, a gente compra mais depois! Agora pega um curativo...

Senta aí, deixe-me ver... Foi fundo?

Aaai, não mexe! Não mexe!

Calma, porra, calma...

Por que tá me olhando desse jeito? Pega logo qualquer coisa e faz um curativo... Anda...

Ela tinha belas coxas, e bela voz quando implorava. Talvez os culpados fossem as coxas, o senso de humor, a bela voz rouca que fazia quando implorava. Ou talvez porque ela não foi embora, e iria passar mais uma noite ali. Talvez porque ela parou de falar e ficou me olhando, e só. Talvez porque quando ia me levantando pra pegar o curativo ela disse não com a cabeça, e eu fiquei ali, ajoelhado, e ela ali, sentada. Talvez porque ela tirou o vestido pela cabeça, e eu a despi sem tirar os olhos dela, com cuidado pra não tocar no pé que sangrava.

Talvez porque fosse linda. Fazia muito frio porque a janela estava aberta. E a garrafa estava quebrada no chão, o cheiro do vinho pela sala, minha língua era molhada no vão; os olhos fechados pro mundo. O sangue escorria do pé.

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