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Contos-->Vila América -- 10/10/2002 - 11:10 (Whisner Fraga) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Vila América

Foi ler o romance e achar uma justificativa para o meu ateísmo. Era Olivia cochichando no meu ouvido, “vocês ateus nos querem tirar Deus para nos dar em lugar dele... o quê?” A minha revolta, sempre foi um motim contra o dogmatismo, só que antes eu não tinha consciência e se os amigos diziam que eu ia entrar no esquema, se enganaram demais. Esquema que funciona é o meu próprio, talhado em noites de álcool e com muito livro por perto.
Já vou me apresentando que é para criar intimidade: Tiziu. Negro, da cor do pássaro. Podia ser corvo, urubu, pássaro-preto, os cambaus. Cismaram com Tiziu, ficou. No meu ramo não tem essa história de nome, perde-se o registro, a carteira de identidade e a gente fica conhecida por um montão de epítetos. Apelido é o que vale, é lei, o submundo badala e pronto, não tem mais volta.
Antigamente era somente filho de fazendeiro graúdo que ia estudar na capital, aprendi com o meu pai, um malandro. Uns anos depois o tal pródigo voltava com diploma na mão e a society era convidada a chamá-lo de doutor. Hoje? Muitos pobres ultrapassam os portões que separam os comuns dos universitários, mas só sendo loucos para acharem que vão terminar ricos com um canudo.
Desde a época da escravatura que preto é assim, açoitado a torto e a direito. Mudam-se os chicotes, mas a surra é a mesma, saquei logo cedo. Meu pai? Doutor Macedo. Fodido. Fez o diabo para ser advogado, e daí? Mesmo no tempo da onça tinha graduado que se danava. Meu pai. Por causa da cor, lógico. Passaram-no para trás uma, duas, dez vezes e quando a inteligência do danado venceu um concurso, o que lhe acontece? Uma lei estranha, forjicada de conveniência, debaixo dos panos: não se admite negro para o cargo. O velho encanou, lógico. Vendeu as calças, as cuecas, penhorou a minha mãe (teve negro falsificando senha por causa da mulata), tudo. Com o dinheiro se armou duma automática, fez questão de juntar grana o bastante para a melhor do mercado. Ganhou um capuz de brinde e virou o maior assaltante de banco da história do estado da Guanabara.
O diabo gosta do troço é pegando fogo e eu sou atualizado com revistas. Faço questão de manter uma biblioteca aqui no esconderijo. Um tal de congresso nos states e sabem qual é o maior plano da engenharia genética para o terceiro milênio? Mudar a cor da pele das pessoas. É, exatamente da mesma forma que nós trocamos de roupa. Vai ficar moleza: preciso de um disfarce, a tarde pede um anil dissimulado. Ia ou não ia facilitar a nossa vida? Tomara.
Herdei a profissão do meu pai. Só que o coroa fez questão de me mandar para a escola antes. “Não quero analfabeto tomando conta do meu império. Nós precisamos é de alguém sabido, humano, para comandar isso aqui.” Fui. A vida inteira vi o meu pai passeando no seu Lamborghini com brancas, morenas, ruivas, amarelas, mulheres de todas as estirpes e cores, não vou querer seguir o mesmo caminho de que jeito? Não é que a vida seja moleza não, que as perseguições que meu pai sofreu (tanto da polícia quanto da malandragem) quase me fizeram pensar melhor e desistir, para ser, quem sabe, levando-se em conta a abertura de hoje e a total ausência de racismo, um funcionário público.
Eu ficava pensando no Eugênio e pode até ter um pouco de vaidade aí, mas eu fiz o que ele nunca conseguiu fazer com aquele altruísmo de merda. No livro inteiro quer ajudar os outros, montar um hospital para as crianças necessitadas. Então? Ficou na lengalenga, no desejo, decidiu deixar a fortuna do Cintra de lado e eu lhe pergunto: o que ele arranjou com isso? Encrenca. Olhei os lírios do campo, depois decidi que tinha que realizar o sonho do Eugênio: ia montar um hospital para salvar essa gente de pouca idade que não tem culpa de ser pobre. Sem querer aparecer, que bandido não paga imposto e tampouco tem algum documento em seu nome, montei o “Cantinho da Anamaria”.
Resolvi não misturar negócios e toquei somente o roubo desses estabelecimentos que guardam o dinheiro alheio. Nada de tráfico, furtos menores, não: dá rolo demais. No meu bando tinha de tudo: especialista em informática, em armas pesadas e leves, em carro, roupas, disfarces, explosivos, telecomunicações, nutricionista, profissionais de todas as áreas. Até professor, para as crianças. Modéstia de lado, uma organização de primeiro mundo do crime.
Só que não foi a vida inteira assim não. Meu pai não soube, porque nesta existência, o segredo é a maior virtude de qualquer um, mas eu já tive a minha própria gang. Digo “a minha” porque não foi herdada de ninguém, eu mesmo organizei. Nove anos, todo mundo de canivete escondido menos eu, que era o chefe e tinha uma faca, tal de adaga, que o pessoal dizia ser arma de líder.
Nessa época consegui meu primeiro inimigo. Garoto topetudo, cismou com a galera, nem imaginava o que podia representar uma cambada de moleques juntos, viu a nossa turma, o olho cresceu, quis me desbancar. Qual é? Esse barato de liderança dá até tese, porque não entendo como é que um monte de gente igualzinha a mim cisma de me obedecer, mas uma vez que você a tem, não quer largar mais. Eu fui uma cria solta pelos becos, tinha que dar nisso, onde ia arranjar uns trocados para o cigarro e os chocolates?
Daí que o nosso negócio era simples. No início, tudo preto no branco, nada que deixasse os representantes da lei de cabelos em pé. No máximo meliantes, o que não nos enquadrava em artigo nenhum do Código Penal. O trampo era até digno, se tirarmos esse lance de preconceito da cabeça. Vigias de carro. Dez, já contei? Uma hora da tarde e nos encontrávamos na avenida Voluntários da Pátria, onde eu ia ditando as ordens do dia, cada um para um canto, com um pedaço de papel na mão. Tinham que ser diários esses mapinhas que eu mesmo desenhava durante a noite, porque segunda-feira tem lugar que é mais movimentado do que na terça, não tem? Tinha que fazer um esquema, organizar a coisa.
Tiziu no posto, que chefe também pega no batente, estacionava um, não podia ser Fusca, que pobre não tem grana para pagar luxos de vigilância particular, corria com a frase decorada, doida para deixar a garganta, pode dar uma olhadinha aí? Se deixasse, ótimo, ganhava um amigo e cliente. Agora, tivesse um carrão importado e ficasse pechinchando o serviço, era deixar uma lembrança na pintura, serviço para a minha miss adaga.
Qual o quê? A vida nem sempre é moleza, tem dia que foi feito para a gente se foder. Quem é que pinta no meu caminho, no maior descaramento do mundo? X-tudo. É, ele mesmo, o do topete. O meu ponto era na Voluntários mesmo porque já que eu mandava no pessoal, tinha que ter umas regalias. Nunca que ia andar meia cidade para chegar ao meu local de batente. Duas horas e eu subindo para o canto de maior movimento, levei um susto quando vi o gordinho lá tomando o lugar a mim reservado. Enfezei, lógico, era minha obrigação ser valente, todo patrão era. Não é que o safado tinha desmontado o aparelho de barbear do pai? Para o caso de um imprevisto, ele disse quando eu cheguei. Fui logo gritando para ele sumir da minha frente. Apareceu uma gilete do tamanho da mão dele e zap, tenho a marca até hoje no meu pescoço. Minha camiseta ensopada, tirando a cabeça eu era um vermelho só, pensei que fosse morrer, é a primeira coisa que a gente pensa quando vê sangue. Safei-me. Umas veias que deram um jeito de emendar, nenhuma mais grossa, uns pontos aqui e ali, fiquei novo em folha.
Semana depois que saí do hospital, reunião extraordinária. Pagar mico de graça? Não quero pisar em minhoca, vamos comer o X-tudo com ketchup. Ia ter artéria sem remendo na parada. Complicado encontrar o sujeito. Cidade se avolumando, cada buraco que nunca pensávamos existir. Quinze dias de procura, pista no Bar do Neném, paramos em frente à casa do maldito.
Putz, vergonha. Absoluta, irremediável. Vou esclarecer. O Cacau estava com dor de barriga, traçou uns bagulhos mal-apresentados, se deu mal. Nove compareceram: já dava uma surra boa. Projeto claro, era esperar o pivete pintar na porta e cair em cima, murro, pontapé, o inferno. Só não podia nada cortante, eu tinha salientado. Isso era por minha conta, a adaga sedenta, se não cuido direito da própria arma, outro cuida. Cadê dificuldade? O X-tudo estava do lado de fora da casa, até aí tudo bem, não ia ser preciso usar de violência com quem não tinha papel principal na história. Detalhe: o pai dele também estava junto. Zoom: o moleque estava levando uma surra digna de adversários do Éder Jofre. Esculhambação mesmo, sem piedade. Os oito me olhando, comecei a suar frio, né? Dei a ordem que esperavam, atacamos o coroa, o que a gente tinha ido fazer com o X acabamos fazendo pior com o outro.
Pai o quê? Nem padrasto. Um enrolado da minha mãe. Salvamos o sujeito da morte e ainda saiu fazendo gracinha? Dos meus. Tornamo-nos onze daquele dia em diante. Metade do Flamengo eu deixei por conta do X-tudo, que com o tempo acabou se tornando vice-líder.
Um dia tínhamos que sair da rua. Organização que se preze tem sede. Durou doze anos e eu só acabei com ela para assumir a do meu pai, que tratava de assuntos maiores e já era sólida no mercado. Enquanto isso, o X ficava morando na casa que arrumamos para as reuniões, com a desculpa de vigiar o local. O bairro tinha muitos bandidos e arruaceiros em geral, um roubando o outro, não podíamos nos dar mal. Ladrão que é surrupiado pelo companheiro de ofício não merece respeito nem da mãe.
Matriculamos o X na escola e numa academia de musculação. Se ele é essa força toda hoje, deve isso à turma. Tirando o Cacau que resolveu dar término à vida que era até razoável, todos estavam comigo até anteontem. Tem diploma na parede da sede que não acaba mais, acabamos virando uma família, porque das originais, nenhuma prestava a não ser a minha, mas que também acabou cedo com a morte do meu pai e da minha mãe. Filho único, se eu não tivesse uns três bambinos, o meu sobrenome tinha ido para a cucuia.
Matar? É, já matei sim, nesse ramo todos matam. Oito, nove, não sei bem ao certo, não saio contando as pessoas que assassinei, como fazem os matadores profissionais. Acho que é para não ficar pensando em pecado, sentimento de culpa, esses lances. Mesmo eu não dando a mínima para a história de Deus, pode ser que o sujeito exista de fato, aí vai ser punição de qualquer modo, que assassínio deve somar uns pontos vermelhos na carteirinha. Como eu dizia, tem hora que não dá, é um refém que não cala a boca, outro que dá uma de herói e tenta impedir o assalto, a gente não suporta a pressão e bum, o tiro sai e pronto, fim.
O meu xodó era uma Glock 9 mm, também herança do velho. Com ela tive uma inspiração e inventei o assalto flash, que ainda outro dia estava sendo imitado pelos larápios argentinos. O nosso lance é roubar pouca grana, para que os policiais não se dêem ao trabalho de nos procurar. Se ficamos muito tempo numa agência, damos tempo para o guarda acionar o alarme, a polícia cerca o banco e estamos presos. Então a onda é roubar uma agência em menos de dois minutos, pegar o dinheiro que está nos caixas, deixar o cofre em paz, ir embora e tudo bem. Desde que começamos nesta modalidade não matamos ninguém. O Ministério da Saúde e o IML agradecem.
Soraia é do mesmo esquema. Bandida, fria, tudo que eu quis evitar numa outra pessoa porque estaria olhando para um semelhante, sabendo que não se pode confiar em alguém assim. Amar, meu bem, amar é até o fim, até a morte, até onde a gente não sabe. Era o que dizia e eu cheguei a zombar de sua filosofia de botequim, de puta. Mas é assim que os malandros se apaixonam, é na sarjeta, não adianta vir limpinha, sem atrativos vadios, vem meu bem que os tormentos aguardam a saturação dos nossos gozos, era assim comigo e Soraia, sabíamos que não éramos donos de nada, nem de nós mesmos, só doávamos os corpos às suas vontades, eram eles que falavam, não nós. Eu a possuía, o X, o Peleco, todos, assim era o namoro bandido, o rodízio da rosa túmida carmim esgarçada que convidava submissa ao encaixe e suplicantes e dóceis nossos mastros se erguiam caminhavam na direção correta entrando saindo entrando enquanto a bebida era distribuída igualmente para brindarmos a comunhão. Quem disse que no desespero não existe amor e que não se encontra isso ali, que só em um lugar puro, não, sinto dizer, mas não funciona assim, árvore boa de vez em quando gera frutos estragados. Para fazer parte daquilo tinha que entregar tudo, a boceta, o pau, a bunda, a vida. Amar, meu bem, é até a degeneração do ser rumo ao nada, entrega irrestrita até onde a gente não sabe, é ir, encontrar o fim, subjugá-lo, ultrapassá-lo. Eu de frente para ela sabia que o mundo nos pregava peças, mas nada tinha importância a não ser a excitação que é viver no limite das coisas.
Eu morri no dia vinte e nove de fevereiro, faz dois dias.
Aqui? Nem caldeirão fervendo nem portais do paraíso. Um vazio que não é vazio, tudo é amarelo, de uma densidade total, onde nada atravessa ou existe. Uma cor tão forte, tão intensa e profunda que é como se eu também fosse a cor, como se tivesse me fundido ao amarelo. Dessa matiz intensamente completa resta somente a consciência de que eu fui alguma coisa e que por enquanto não sei o que sou. Não posso saber como é a morte de cada um, conheço a minha. Sinto a presença de vidas, mas elas não estão perto, impossível explicar o que não consigo reconhecer, é pedir para um recém-nascido dar aulas de física quântica. Às vezes desconfio que o que as pessoas chamam de alma afinal seja isto.
Daqui continuo vendo o Peleco, o X-tudo, a turma continua sem mim e o que era provável acabou acontecendo: o X tomou o meu lugar. Foi um tiro na testa depois do assalto ao Banespa, o esquema de sempre, as notas já divididas, nenhuma surpresa. Resolvi comemorar com Soraia, saímos para uns uísques, rir um pouco. Eu no banheiro, ela na cama, exaurida, animal abatido por pouco tempo. Amor, meu bem é até o fim, ela chegou com um trinta e oito na mão, lenta, ainda carregando o danado, alvejou os meus miolos, quatro vezes. O X a caçou pela cidade inteira, para vingar o companheiro, a encontraria nem que fosse no fim do mundo, na esquina onde o Zé perdeu as botas, na puta que a pariu.
Se eu pudesse sentir alguma coisa, estaria tranqüilo agora, porque eu sei que o X vai continuar com os meus projetos e mesmo quando ele morrer e outro assumir o cargo que foi meu, haverá este porém em todas as sucessões: levar adiante as obras do grupo. O crime tem que continuar, há uma função social filosófica teológica sexual nele, a transgressão é o exemplo de que não se pode ficar contente a vida inteira com a mesma situação, mostramos o caminho, é impossível acabar com o assassinato, o tráfico, o latrocínio, com as infrações, existem teses e teses sobre o assunto, tudo pode ser encarado como fora-da-lei, inclusive a lei, eis porque não é possível acabar com o crime: ele é necessário. O mundo é egoísta, por isso o bandidismo sempre terá lugar, ele é independente, uma carreira autônoma. Eu sei que nenhuma importância tive, a não ser para mim mesmo, para o meu luxo, mas para a criminalidade, o que fui? Mais um. E em breve serei esquecido.
A presença inquietante do azul que se aproxima manhoso, lento. Sei que é Soraia. Agora descobrimos que as coisas se fundem aqui, neste lugar plástico e inorgânico. Estou vingado, o amor e a morte que os poetas tanto defenderam são faces da mesma moeda, essa filosofia que a gente considera utópica, ela é verdadeira. O azul vem se arrastando leitoso, tímido, vasculhando o novo domínio e almejando a união. Um verde majestoso, denso, profundo, começa a se formar e eu não sei o que vai ser daqui para frente.
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