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Contos-->NA CURVA DO TEMPO -- 16/10/2002 - 08:23 (Vânia Ramos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

NA CURVA DO TEMPO


Ele estava ali, lindo, visível, generoso. A muitos já havia beneficiado ao longo de sua vida, por onde quer que passasse, sem distinção, sem temores, apenas com a força da natureza pura. Falo de Timbó, um rio caudaloso e farto que cortava muitas cidades pobres do agreste nordestino, levando vida e esperança em forma de alimento. Nos períodos de inverno mais rigoroso, avançava, ameaçava, mas nunca causava destruição. Parecia milimetrar o nível exato do alcance de suas águas para favorecer sem desatinar. Alvo de curiosidade e admiração, despertava amor e poesia aos visitantes ou moradores do lugar e seguia varando cidades, povoados, fazendas, mostrando o seu poder e a sua formosura sem recuar. Adultos, crianças, animais e plantas, todos usufruíam a grandeza das suas águas. As donas-de-casa debruçadas sobre pedras - postas ali pelo tempo - cumpriam suas tarefas diárias, enquanto vigiavam as crianças que se divertiam ao pescar piabas com panela, usando as sobras das refeições; os adolescentes mergulhavam nas águas escuras buscando em tocas virgens os camarões, as traíras, os jundiás e outros seres viventes que habitavam aquelas paragens; o homem lavava o seu animal, sem cerimônia, dividindo o mesmo espaço. Árvores frondosas, de origens e datas desconhecidas, eram vistas por quase toda a margem, e derramavam seus galhos robustos sobre as águas calmas dando-lhes um toque de encantamento.

Cedro Verde era a mais privilegiada das cidades ribeirinhas banhadas pelo nosso rio monumental. Adultos e crianças desfilavam inocentes pelas ruas transportando o valioso líquido indispensável à sobrevivência. Meninas-moças exibiam os traços vistosos que explodiam através das vestes inundadas e dos decotes avantajados, enchendo de cobiça os rapazolas da redondeza. E a rotina pacata de seus habitantes transcorria com satisfação e serenidade. Simples e felizes viviam intensamente cada dia, sem preocupação com o futuro, como se a vida não tivesse amanhã.

A casa era comprida, o corredor estreito e longo com quartos nascendo no seu caminho, sala e cozinha no final; grandes degraus davam acesso a um enorme quintal que se prolongava até a beira do rio, acolhendo suas águas nas épocas de enchentes. No fogão rústico, a lenha queimava sem pressa, com labaredas brandas aquecendo uma panela de barro que ia aos poucos dando forma ao cozido e fazendo exalar o cheiro que definia o sabor do prato.

Aída não desgrudava da saia da mãe. Por ser a filha caçula acompanhava todos os seus passos: apanhar água na fonte, levar o almoço de seu Alonso na marcenaria da Fazenda Sucupira, pegar lenha na mata. Sempre saltitante, na leveza e graça dos seus oito anos, com os cabelos dourados a bailar sobre os ombros ao soprar do vento, percorria estradas, cruzava córregos, se lançava aos campos em busca de flores e frutos silvestres, competindo com abelhas e beija-flores; tudo sob o olhar atento de dona Ester.

- Aída, não se afaste muito e nem coma coisa que não conheça.

- Certo, mãe, é só um maracujá.

E dona Ester, cuidadosa, examina minuciosamente a fruta.
- Mas minha filha, este fruto tá todo bichado!

Aída corre desesperada à procura de algo que a livre do efeito desastroso do seu ato. Uma poça d’água formada pelas últimas chuvas é o seu único recurso; por várias vezes repete o gesto de pegar com as pequenas mãos o líquido salvador para limpar as impurezas. Dona Ester a alcança e novamente se espanta com o que vê:

- Oh não! Menina, veja o que tem nesta poça!

Um enorme cururu - sapo de grandes proporções -, mais feio e inchado do que a natureza o fez, boiava sem vida naquele lago temporário. Aída não resistiu a mais um engano e, numa limpeza estomacal espontânea, vomitou tudo o que havia ingerido durante o dia, e aprendeu, a partir dali, a ser mais exigente com as suas escolhas.

Em noites de lua cheia a claridade natural compensava a energia débil e escassa, e a vizinhança se reunia na calçada para ouvir com atenção e guardar para as gerações futuras as histórias pitorescas contadas por seu Alonso - tão detalhadas que dispensavam argumentos:

“- Estava eu a caçar uma robusta raposa com o meu compadre, na mata do Tupiniquim, quando ouvi, bem longe, a voz do Luiz Gonzaga a repetir sempre uma mesma frase musicada. Chamei sem ter resposta, então andei, andei até dar de cara com um disco quebrado enganchado num arbusto e, sempre que o vento batia mais forte, a ponta do galho seco riscava no vinil fazendo tocar um pedaço da música Asa Branca.”

Seu Alonso era um brilhante contador de histórias, conseguia reunir adultos e crianças, e mantê-los por horas embebidos nas suas fantasias.

O louro Dengoso - a mais antiga cria da casa - cutuca levemente os pés de dona Aída trazendo-a de volta à realidade. Emitindo sons confusos, numa linguagem rasgada, insiste repetidas vezes:

- Aída, Aída, papagaio quer comer.

Dona Aída se levanta com certa dificuldade, segue cansada, parece carregar sobre os ombros o peso de todos os anos. Caminha pensativa “que terá sido do rio Timbó? Anos atrás, quando lá estive, suas águas finas, quase paradas, mais pareciam lágrimas dos deuses”. E, lançando um olhar saudoso em direção ao céu azul parece novamente se perder na imaginação “quantos de nós já foram transferidos para a outra dimensão!” Na sua memória, ainda em perfeita lucidez, passam e repassam fitas de toda uma vida, idas sem retorno. Encrenca, seu lindo gato angorá, agarra o tricô que ela deixou cair sem perceber e vai desfazendo o emaranhado de voltas que o transformavam num objeto firme, num novelo – de certa forma, uma amostra da ação tempo.



>>Texto a ser publicado na Antologia TEMPO DEFINIDO, da Editora Scortecci.
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