O poeta e artista-plástico inglês William Blake (séc.XVIII) ao criar o perturbador poema Provérbios do Inferno, perverte toda a noção moralizante usual dos provérbios cristãos e projeta sua obra além do seu tempo, vindo a influenciar simbolistas e surrealistas que admiravam a ligação inusitada entre erotismo e misticismo do seus versos.
Incompreendido no seu tempo, visto como excêntrico, visionário e louco (o que acabou se tornando, tendo várias internações), William Blake tinha uma visão muito particular da libido, segundo ele os prazeres sexuais era santos e através deles se atingia uma nova pureza e inocência. Essa forma de pensar, unindo o sensual e o espiritual, é muito próxima do Tantrismo hindu ? um tipo de Yoga que professa a conexão com Deus através da energia sexual (a kundalini). Não sabemos se o poeta teve acesso a esse tipo de informação, o que sabemos é que sua visão foi chocante para a Inglaterra puritanista e pré-vitoriana da sua época, ocasionando uma série de aborrecimentos e perseguições.
O inferno exercia um enorme fascínio sobre o poeta, tanto que os seus últimos livros foram escritos imitando o estilo bíblico, constituindo uma espécie de bíblia negra que ele denominou Bible of Hell . O seu interesse pela temática o levaria a ilustrar a Divina Comédia de Dante.
Dada essa rápida introdução, cabe agora analisar alguns versos do poema que intitula esse artigo.
O poeta começa imperativo: ?Conduz o teu carro e teu arado por sobre os ossos dos / mortos.? Incitando o leitor a esquecer os mortos, o passado, a tradição, as raízes e seguir confiante em busca de seus objetivos. Algo que, não acidentalmente, contempla o que Cristo disse: ?Deixai aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos? ou ?abandona pai, mãe, filhos e segui-me.?
Com ?A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria? e ?A prudência é uma solteirona rica e feia / cortejada pela impotência?, o poeta condena toda forma de bom-senso.
Em ?Quem deseja mas não age gera pestilência?, antecipa o que Freud diria, dois séculos depois, sobre a natureza das doenças psicossomáticas.
Professa o narcisismo e a auto-estima: ?Aquele cujo rosto não se ilumina, jamais há de / ser uma estrela?. Enquanto o Cristianismo condena a vaidade.
Reprova a introspecção e a ociosidade: ?A abelha atarefada não tem tempo para tristeza.? Portanto, ?os alimentos sadios não são apanhados com / armadilhas ou redes.?
Ridiculariza os fantasmas: ?Um cadáver não vinga as injúrias.?
?Os tigres da ira são melhores que os cavalos / da educação.? Blake era fascinado pelo Tigre, segundo ele, por ser o símbolo da tirania divina a qual o homem se submete; enquanto, o Cordeiro é o símbolo da bondade patriarcal de Deus. Aqui, um paradoxo que só a linguagem poética justifica, pois como um Deus pode ser tirano e bondoso ao mesmo tempo?
Em ?As prisões se constróem com as pedras da lei / Os bordéis com os tijolos da religião?, o poeta ataca a ambigüidade do clero e da justiça.
Refuta a o sentimento de culpa: ?A raposa condena a armadilha, não a si própria.?
Algo misógino ou machista em ?Que o homem use a pele do leão, a mulher / a lã da ovelha.?
Prescreve a autenticidade: ?Dize sempre o que pensa e o homem torpe / te evitará.? E condena a humildade : ?A águia nunca perdeu tanto tempo / como quando resolveu aprender com a gralha.?
Propõe o dinamismo : ?Da água estagnada espera veneno? e conclui de forma cruel : ?A raposa provê para si, mas Deus provê para o leão ? mostrando que Deus tem preferência pelos fortes , subvertendo a velha crença de Deus preferir os fracos e humildes de coração.
O vigor estilístico blakeano inspirou Nietszche (no seu ódio ao cordeiro, o rebanho humano), Baudelaire (no seu decadentismo satanista), o futurista Marinetti (no seu violento anti-clericalismo e no tom provocativo de suas composições), em Strindberg, e o poema em questão ganhou uma versão musicada pela banda de rock brasileira As Mercenárias na década de 80.