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Ensaios-->A carne, de Júlio Ribeiro - Virtuose do engodo -- 02/12/1999 - 17:06 (Andrey do Amaral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A carne, de Júlio Ribeiro – Virtuose do engodo

Nascido em Sabará – MG a 10 de abril de 1845, Júlio César Ribeiro Vaughan era filho de uma brasileira com um norte-americano, de Virgínia: a professora Maria Francisca Ribeiro e o boêmio circense George Washington Vaughan, que abandonara a esposa e o filho. Orgulhoso, passou, por opção, a assinar apenas com o nome da mãe: Júlio Ribeiro, como é conhecido nos meios jornalístico e literário. Em Beapendi – MG, estudou no colégio interno Baependiano. Ao terminar os estudos, segue, aos dezessete anos, para o Rio de Janeiro a fim de ingressar na Escola Militar. Três anos depois, abandona a idéia de seguir o militarismo. Vai para São Paulo, dedicando-se ao magistério, onde passa a lecionar latim na Faculdade de Direito e retórica no Instituto de Educação Secundária. Presenciou momentos importantes da História do Brasil, como a Proclamação da República e a Abolição da Escravatura. Tornou-se excelente jornalista e gramático respeitado. Publicou seus dois romances, Padre Belchior de Pontes (1876/7) e A carne (1888), inicialmente nos jornais em que trabalhava, em folhetim. Por causa deles, recebeu muitas críticas pelas idéias extremamente radicais contidas no desenrolar das tramas.
Onze anos depois de publicar o romance Padre Belchior de Pontes (1876/7), Júlio Ribeiro ganha maior notoriedade com o polêmico A carne, escrito em 1888. Porém, essa fama trouxe a ele demérito em vez de encômios. Isso deu-se pelas trajetórias críticas e denúncias contundentes com que Júlio Ribeiro desenvolvera sua narrativa: o bacharelismo conservador, o atraso da vida rural, os maus tratos aos escravos, a impunidade, os preconceitos racial e social, o casamento, divórcio, o amor livre. Entretanto, todas essas marcas de Júlio Ribeiro foram pouco notadas, ou nem o foram, em seu romance. Preferiam observar o lado erótico do romance. Com uma personagem diferente, ativa com intensos desejos sexuais, nosso romancista foi alvo de infinitas ofensas e injúrias. Por causa dessa mulher 'perigosa', quiçá, as outras críticas de Júlio Ribeiro ficassem despercebidas ou não as queriam ver, devido ao intenso erotismo. A personagem principal Helena Matoso, mais conhecida pela alcunha de Lenita, sente fortes concupiscências. Para muitos críticos, esse intenso desejo, provocado pela carne, será considerado um “histerismo”, qualidade que advém de Magda, a histérica personagem do romance de Aluísio Azevedo: O homem (1887). Muitos estudos tecem essa semelhança devido à irritabilidade ou ao nervosismo excessivo causado pela força da carne em ambas. Para Magdá, seria certa a tese da histeria. Para Lenita, não. Araripe Junior , em sua Obra crítica, desassocia a figura da histérica Magdá da heroína Lenita. Essa relação de histerismo entre as duas mulheres foi sabiamente contestada por ele:

O autor apaixonou-se por essa tese difícil de uma mulher que, de súbito acordando da inocência, entregou-se às fúrias da carne. Passou-lhe por diante dos olhos a imagem da Fedra moderna; e o seu pincel, lançando-se de um lado para outro da tela fulgurante, fê-la surgir em toda a sua beleza e consciente hediondez. Não foi, porém, como a muitos outros tem parecido, a Fedra histérica, mas a Fedra literária. Não é um caso mórbido de uma outra Magda, mas um caso perfeitamente fisiológico. E, para isto, basta atender às cenas críticas, aos pontos culminantes do livro, em que as pujanças eróticas dessa moça, ilustrada como a quis fazer o romancista, e, portanto, inacessível aos prejuízos e pudores extemporâneos, erguem-se, desenvolvem-se, atingem ao acume, descambam e resolvem-se por um modo frio, filosófico, - progressão e resolução inteiramente incompatíveis com a fenomenalidade mórbida da histeria maior que se tem querido atribuir à amante de Barbosa.

Almir C. Bruneti , em seu ensaio Silencing the Female Voice: Critical Response to Júlio Ribeiro’s A Carne, também diverge da comparação feita às duas “histéricas”, determinando a linearidade das ações de Lenita em relação às de Magda que apresenta durante o romance um comportamento oblíquo. No caso da heroína de A carne, há apenas a necessidade fisiológica do corpo, mas não histerismo:

As stated above, Lenita’s character is said to have been based on the hysterical heroine of Aluísio Azevedo’s 1887 novel, O Homem. Quite to the contrary, there is nothing hysterical about her personality. She is always in control even whem she succumbs to the imperative of sex.

Seu último romance, ou melhor, Lenita chocou a sociedade do final do século XIX, causando-lhe incômodo, que ainda via a mulher como ser passivo, devendo ser sempre inferior aos homens. A carne recebeu vários predicativos à época, a maioria depreciativos, por causa de cenas lúbricas. Ademais, o espanto se deu não só por causa do erotismo da trama, mas também por causa de uma mulher independente, rica e inteligente – mesmo que esta estivesse atrás da máscara do sexo apresentado no romance, sendo difícil sua aceitação para o mundo de então; essa mulher de vanguarda foi vista pela miopia enferma da sociedade cujas dimensões ultrapassavam o natural, e esta, querendo perenizar conceitos e tabus ultrapassados, deixou que os momentos eróticos e exóticos fossem o único ponto máximo do romance, encobrindo a importância da heroína ao contexto social brasileiro e mundial. A cegueira da sociedade foi contaminada pelo tom “obsceno” do livro, e o mais importante foi esquecido: o surgimento de uma mulher independente, em todos os sentidos, mesmo que seja em romances. Assim salienta Almir C. Brunetti, “women are not supposed to take control, even in fiction” . O livro era dissidente e, por isso, obteve alguns poucos panegíricos e muitas depreciações. Não houve parcimônia a Júlio Ribeiro. Ele foi um escritor que causou uma espécie de cissiparidade nos leitores: ao mesmo tempo em que desdenhavam o romance, liam-no em solipsismo. Todavia, mais tardar, as críticas de tom exageradamente leviano tão-somente ajudariam a promover a obra, pois, através dos julgamentos ferinos, A carne foi ganhando mais e mais popularidade. Se não pelo seu “valor literário”, como julgavam e ainda julgam, pelo menos, pela polêmica que causou a obra, introduzindo aos leitores, mesmo sendo com suaves matizes, ideais progressistas que tanto defendia Júlio Ribeiro: modernização do Brasil, abolição da escravatura, a República, entre outros. Assim, até mesmo aqueles que repudiavam a obra, liam-na às escondidas, intencionando descobrir o proibido, querendo ter acesso ao que, socialmente, não era permitido. Nelson Werneck Sodré, em seu O naturalismo no Brasil, corrobora tal situação, confirmando a perenidade da obra quando afirma que “A carne terá longa vida, apesar de todas as suas deficiências” .
Se havia realmente deficiências, seu inimigo número um, o padre Senna Freitas, procurava sedento os “defeitos” da obra. O padre publicara vários artigos, entitulados de A carniça, fazendo um trocadilho com o título original do livro: A carne. No primeiro artigo da série, Padre Senna Freitas avisava aos leitores e ao “estômago público contra essa venda ilícita de carne pútrida, exibida a 3$000 a posta, nos açougues literários de S. Paulo” . Júlio Ribeiro, com maestria irônica, declarara “guerra” ao padre, a quem chamava de “o clown litúrgico, o palhaço de batina” , e também numa série de artigos, entitulados O urubu – Senna Freitas, afirmou com precisão de aticismo: “não lhe vou responder às críticas, vou simplesmente aguaretar-lhe a protérvia”. Com tantos artigos ofensivos, o “urubu”, recluso em seus gabinetes, certamente deliciava-se com as carnes de A carniça, sempre procurando as “incoerências” do romance a fim de publicá-las nos periódicos. Talvez, Senna Freitas quisesse ter escrito A carne.
Júlio Ribeiro conseguiu pouco prestígio e bastante demérito com seu segundo romance. Todavia, não caiu no olvidamento como queriam. Foram sucessivas edições. O povo o aceitou, embora à escura; os críticos crucificaram-no. Otto Maria Carpoux , em sua Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira, relata o que acontecera à obra:

A partir da hora da publicação, A carne foi chamado de livro escandaloso, pornográfico, sem valor literário: por outro lado é incontestável o grande sucesso popular do romance, porventura causado por aqueles defeitos.

Essa popularidade não aconteceu somente pelas cenas lúbricas e lascivas do romance. Há maestria nas descrições de lugares, dando à narrativa um tom histórico-geográfico. Manuel Bandeira, em Noções de história das literaturas, um dos poucos que elogiaram o livro, assegura que A carne é “notável aqui e ali pelo vigor e brilho das descrições” ; José Veríssimo, em sua História da literatura brasileira, onde critica escritor e obra com veemência, tem a mesma posição de Bandeira quando relata que se salva o romance “de completo malogro o vigor de certas descrições” ; por isso, também, A carne merece destaque especial em nossas letras, e, mesmo que ainda continuem estampando os “defeitos” da obra, será sempre uma referência necessária do Naturalismo Brasileiro.
Júlio Ribeiro cria uma personagem de vanguarda, Helena Matoso – Lenita – que não era o padrão da mulher do século XIX, principalmente do ponto de vista sexual. Almir C. Bruneti, ao final de seu ensaio, conclui que os contemporâneos de Júlio Ribeiro

were not yet ready to accept a woman who could, and would, take the power in her hands. He was condemned because he did not conform to the expectations of the reigning literary bigwigs. It is high time that he be recognized as the masterful creator of one of the most interesting female characters in Brazilian literature.

Escrito em 1888, realmente foi um choque para a época, perenizando sua polêmica até algumas décadas atrás. Decerto, um romance iconoclasta explicita e implicitamente. Quiçá, hoje, A carne não cause tanta estranheza como causara no momento de sua publicação e em algumas décadas seguintes. Com a chegada de um novo século, as questões relativas ao sexo não chocam como chocaram tempos atrás. Aos que julgam o romance de pornográfico, no sentido pejorativo da palavra, cometem equívocos, pois as passagens onde as personagens se envolvem em cópula são descritas e narradas à guisa poética.
Depois de se abrandar a dor pela morte do pai, a virgem Lenita, sozinha em sua sala, estava “tomada de uma languidez deliciosa” . Certa tarde, numa rede, em concupiscências da carne, ela arrosta um bronze que trouxera da casa de seu pai, o doutor Lopes Matoso. Esse bronze, estátua de Agasias, uma miniatura do escultor Bardedienne, é conhecido como Gladiador Borghése. Lenita encantara-se de súbito com a estátua: “aqueles braços, aquelas pernas, aqueles músculos ressaltantes, aqueles tendões retesados, aquela virilidade, aquela robustez, impressionaram-na de modo estranho.” Lenita estava em pleno apetite sexual. As formas perfeitas da estátua tomavam sua mente, dominando por completo sua carne. Júlio Ribeiro teve o cuidado de não dar às cenas eróticas pinceladas vulgares. Como natural, a partir daquela experiência com o gladiador, a heroína no capítulo 3 se convencera de que o que precisava “era a necessidade orgânica do macho” .

À noite, quando se preparava para dormir, Lenita já estava liberta de seus “pensamentos pecaminosos”. Todavia em sono profundo, a imagem do gladiador surge à tona novamente. “A cerviz taurina, os bíceps encaroçados, o tórax largo, o pélvis estreito, os pontos retraídos das inserções musculares da estátua [...]” reavivavam seu sex-appeal pela miniatura brônzea.
Nas entrelinhas de A carne, Júlio Ribeiro ressalta a importância de a mulher conhecer-se fisicamente, de tocar-se, conhecer seu próprio corpo, ignorando os preconceitos estabelecidos pela sociedade. Helena, em contato consigo, “por uma intuscepção súbita, aprendera mais sobre si própria do que em todos os seus longos estudos de fisiologia” . O toque pessoal de Lenita foi o marco para que ela se tornasse uma mulher em plenitude, porém percebera que “apesar de sua poderosa mentalidade, com toda sua ciência, não passava, na espécie, de uma simples fêmea, e que o que sentia era o desejo, era a necessidade orgânica do macho” .
No capítulo 3, encontram-se as primeiras seqüências sensuais que, possivelmente, fizeram com que os leitores – sejam eles os curiosos os quais apenas leram o romance por simples desejo incontrolável de conhecer os segredos da obra “proibida” ou aqueles ainda que o leram sem pré-julgamentos, valorizando o trabalho de Júlio Ribeiro –, seguissem a leitura de A carne divulgando-a, determinando sua popularidade. Obviamente, outras cenas também são encontradas ao longo do texto, com mais fulgor até, com mais intensidade sexual. Ao final do terceiro capítulo, deparamo-nos novamente com um encontro onírico de Helena com o gladiador Borghése, onde ela se encontra numa situação de modorra “que não era bem vigília, e que não era bem sono” . O gladiador, tomando forma humana, vai ao encontro de Lenita. E ela, dividida, pois tinha medo, chegara à conclusão de que precisava de um homem real, por isso, seu prazer estava incompleto, falho e torturante, mesmo o gladiador tendo o calor de um humano:

“E Lenita rolava com delícias no eflúvio magnético do seu olhar, como a água deliciosa de um banho tépido.
Tremores súbitos percorriam os membros da moça; seus pêlos todos hispidavam-se em uma irritação mordente e lasciva, dolorosa e cheia de gozo.
O gladiador estendeu o braço esquerdo, apoiou-se na cama, sentou-a a meio, ergueu as cobertas, e sempre a fitá-la, risonho, fascinador, foi-se recostando suave até que se deitou todo, tocando-lhe o corpo com a nudez provocadora de suas formas viris.
O contacto não era o contacto frio e duro de uma estátua de bronze: era o contacto quente e macio de um homem vivo.
E a esse contacto apoderou-se de Lenita um sentimento indefinível: era receio e desejo, temor e volúpia a um tempo. Queria, mas tinha medo.
Colocaram-se-lhe nos lábios os lábios do gladiador, seus braços fortes enlaçaram-na, seu amplo peito cobriu-lhe o seio delicado.
Lenita ofegava em estremeções de prazer, mas de prazer incompleto, falho, torturante. Abraçando o fantasma de sua alucinação, ela revolvia-se como uma besta-fera no ardor do cio. A tonicidade nervosa, o eretismo, o orgasmo, manifestava-se em tudo, no palpitar dos lábios túmidos, nos bicos dos seios cupidamente retesados.
Em uma convulsão desmaiou.”
O gladiador saciava sua mente, não o corpo, a CARNE. Se ela estava sozinha, precisava de um homem, um companheiro, um macho para satisfazê-la. No capítulo 7, depois da decepção estética que tivera de Manuel Barbosa, Lenita a princípio cogitou em sair da fazenda do coronel e ir para São Paulo, onde facilmente arrumaria um homem que pudesse dar fim a sua tortura fisiológica. E Lenita vai além, exteriorando sua personalidade acerca de sua necessidade orgânica:
E se um não lhe bastasse por que não conculcar preconceitos ridículos, por que não tomar dez, vinte, cem amantes, que lhe matassem o desejo, que lhe fatigassem o organismo?
Que lhe importava a ela a sociedade e as suas estúpidas convenções de moral?

Seria por isso, pelo desejo sexual, pelas críticas inteligentes, por uma mulher emancipada, um romance licencioso? Para quem o vê com olhos poéticos, não.
Para Lúcia Miguel Pereira, no seu livro História da literatura brasileira, Júlio Ribeiro “só conseguiu compor um livro ridículo” . Atacando o naturalismo do filólogo, é mais contundente para com Helena Matoso. Para ela, Lenita é uma personagem de existência impossível que é a principal causa do fracasso do romance:

Lenita é tão inexistente, com seu corpo demasiadamente exigente, como as incorpóreas heroínas românticas. Como a maior parte das personagens do nosso naturalismo, foi uma romântica às avessas, isto é, construída, não segundo à observação, mas de acordo com as fórmulas preestabelecidas, que prescreviam a substituição dos sentimentos pelos instintos.

No capítulo 9, há a descrição de um ato sexual, feita agora por dois animais. Há a cópula de dois bovinos. Esse ato fisiológico era inédito aos olhos de Lenita. O espanto, que seria comum, deu lugar a uma sensatez magistral. Lenita “em vez de julgá-lo imoral e sujo, como se praz a sociedade hipócrita em representá-lo, ela achou-o grandioso e nobre em sua adorável simplicidade.” O concúbito dos animais foi representado, em A carne, mais contundente e agressivo em relação ao ato sexual humano. Mesmo assim, Lenita comparava a união bovina com a humana, depois de assistir, logo após a cópula dos bovinos, à união sexual de dois escravos: “à cópula instintiva, brutal, feroz, instantânea dos ruminantes, seguia-se o coito humano meditado, lascivo, meigo vagaroso.”
Atacado com veemência pela crítica, Júlio Ribeiro foi o cristo do Naturalismo brasileiro, foi alvo de censura à guisa de sua escrita chocante. A lubricidade presente em A carne contribuiu para que a obra tivesse um caráter perene, pois a lascívia da narrativa foi um fator preponderante à divulgação do romance em meio aos mundos literário e, principalmente, leigo. Este recebeu A carne como quem procura pelo proibido inócuo; aquele, por outro lado, procurou proibir o proibido nocivo, o ilícito danoso. Pura bobagem.
Essa interdição ocorreu, também, pelo seu naturalismo hiperbólico, menosprezando um dos mais puros sentimentos, comparando-o com uma condição animalesca:

“O amor é filho da necessidade tirânica [...] A palavra amor é um eufemismo para abrandar uma pouco a verdade ferina da palavra cio. Fisiologicamente, verdadeiramente, amor e cio vêm ser uma coisa só.”

Não só pela sexualidade Júlio Ribeiro recebeu repúdio. Atacando com rigor a instituição casamento, o narrador questiona os laços matrimoniais, altercando a legalidade da união de Lenita e Manuel Barbosa já que este já havia sido casado. Manuel aceita as regras sociais, mesmo sendo contra a elas:

Casar com Lenita não podia, era casado. Tomá-la por amante? Certo que não. Preconceitos íntimos não os tinha; para ele o casamento era uma instituição egoística, hipócrita, profundamente imoral, soberanamente estúpida. Todavia era uma instituição velha de milhares de anos, e nada demais perigoso do que arrostar, contrariar de chofre, as velhas instituições; elas hão de cair, sim, mas com o tempo, com a mesma lentidão com que se formaram, e não de chofre, como um relâmpago. A sociedade estigmatizava o amor livre, o amor fora do casamento; força era aceitar o decreto antinatural da sociedade.

Logo, Lenita “não poderia nunca despontar legitimidade” da união. Lenita só tinha uma alternativa: ser amásia de Manduca, decisão dela. Afinal, o amor era uma extensão do desejo carnal de ambos. Assim, os amantes, sem pudores, viam-se apaixonados, sem, entretanto, a permissão da lei. Isso foi mais um ataque aos valores – decerto muito hipócritas – da sociedade do final do século XIX, característica notória do Realismo/Naturalismo, principalmente europeu, que através do adultério desorganizava a célula familiar.
No capítulo 14, encontramos explicitamente o ataque frontal à união matrimonial, prenunciando uma relação ideal no futuro:

“Que é o casamento atual senão uma instituição sociológica, evolutiva como tudo que diz respeito aos seres vivos, sofrivelmente imoral e muitíssimo ridícula? O casamento do futuro não há de ser este contrato draconiano, estúpido, que asenta na promessa solene daquilo exatamente que não se pode fazer.”

A carne contém cenas de intenso apetite sexual. Júlio Ribeiro pormenoriza cada movimento do ato, descrevendo-o, do início ao fim, com uma precisão cinematográfica. Todo detalhe, acerca do ato, é relatado com uma adjetivação precisa, caracterizando uma perfeitíssima ótica erótica das relações amorosas.
Seria A carne uma romance pornográfico? Seria mesmo Júlio Ribeiro um devasso? Muitos acreditam que sim. Para outros a opinião é divergente.
Seguindo à risca a escola de Émile Zola, Júlio Ribeiro acentua o sexo em A carne. Alfredo Bosi, em sua História concisa da Literatura brasileira, afirma que, mesmo estando A carne, juntamente com os romances O homem e O livro de uma sogra de Aluísio Azevedo, presa às grades do naturalismo, o romance dá margem a “desvios melodramáticos ou distorções psicológicas grosseiras” , como o suicídio de Manduca, por exemplo. Talvez isso, tenha prejudicado a solidez de A carne. Bosi, completa que “a obra de Aluísio (com exceção do Cortiço), a de Inglês de Sousa, a de Adolfo Caminha e a de Júlio Ribeiro caíram sob o peso de esquemas preconcebidos, pouco vindo a salvar-se do ponto de vista ficcional” . Por fim, Bosi diz que A carne e O cromo de Horácio de Carvalho “são meros apêndices do Naturalismo” .
“Josué Montello, entretanto, procura entender e explicar a razão da incontestável popularidade de A carne: o sensualismo é o ponto de contato natural entre as gerações que se sucedem. E é disto que se aproveita possivelmente o romance de Júlio Ribeiro, daí derivando a sua perenidade, a despeito de todo o mal que dele se tem dito em mais de meio século.”
José Veríssimo diz que A carne está “nos mais apertados moldes do zolismo, e cujo título só por si indica a feição voluntária e escandalosamente obscena do romance” . E conclui, sendo contraditório:

Mas A carne vinha ao cabo confirmar a incapacidade do distinto gramático para obras de imaginação já provada em Padre Belchior de Pontes. É, como dela escrevi em 1889, ainda vivo o autor, o parto monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo(138). Mas ainda no nosso mofino naturalismo sectário, um livro que merece lembrado e que, com todos os seus defeitos, seguramente revela talento. (grifo nosso).

Tantas acusações não foram suficientes para determinar o valor da obra. É provável que o gosto pessoal dos críticos por histórias diferentes do enredo e do desenrolar de A carne muitas vezes fizeram com que a obra recebesse uma crítica infundada, sendo que, ao que se percebe, muitas críticas são repetidas em conteúdo, tendo pouca ou quase nenhuma variação. Júlio Ribeiro, explorando o voyeurismo, quis propositadamente questionar os valores sociais. Os olhos de Lenita são enfeitiçados pelo próprio pensamento, contaminado por sua incessante volúpia. O ambiente ao seu redor contribui para o crescimento do apetite imaginativo de Lenita. Após o coito dos bovinos, Lenita assiste ao concúbito de dois escravos “no solo arenoso do matagal” . Nessa qualidade de voyeur, o sexo atinge novas dimensões para Lenita. Ela, presenciando e descobrindo o que antes era desconhecido, apenas imaginado, pelas “cenas cruas da natureza” , estava totalmente “torturada pela CARNE, mordida de um desejo louco de sensações completas” .
O sexo, no texto, encontra nuanças diversas, não só ocorre com o contato carnal de duas pessoas. Provavelmente, a intensidade dos instintos das personagens, condicionada pelas circunstâncias apresentadas durante a narrativa, tenha prejudicado a aprovação da obra, pois as exageradas características naturalistas formaram um óbice para que a obra obtivesse um destaque especial, no sentido qualitativo, em nossas letras. Na verdade, a desaprovação de A carne veio pelo medo de que surgissem novas Lenitas.
Em outros romances realista-naturalisras, a mesma temática foi abordada, entretanto os outros ficcionistas deram às cenas lúbricas uma sensualidade bem mais branda, tênue, fazendo com que, nos momentos eróticos, não tivessem uma excessiva obscenidade, apenas cenas num determinado grau de sensualismo, não atingindo uma “vulgaridade animalesca”.
Júlio Ribeiro transpôs para o seu romance A carne um sexo mais carnal, mais anticonvencional. O que é corroborado pela volúpia de Barbosa, a incessante vontade sexual de uma mulher e pelas posições as quais Barbosa moldava Helena durante a cópula.
Minucioso nas descrições, nosso ficcionista apresenta o ajuntamento carnal dos protagonistas de uma forma curiosa:

Desceu um pouco, deitou-se de bruço, e, arrastando-se como um estélio...........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
Lenita desmaiou em um espasmo de gozo................................................... ...................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................

Mesmo sendo aqui mais discreto, não foi digno de abonações, recebendo a sanha de muitos. Críticas depreciativas à parte, A carne foi bastante divulgado pelo cunho sexual. Há, é certo, algumas passagens desconexas, como o laboratório que o casal montou na fazenda, o que, entretanto, poderia ser possível, mas é estranho. Algumas descrições hiperbolicamente exageradas que tornam a narrativa enfadonha, como a missiva de Barbosa para Lenita e vice-versa, por exemplo. Apesar das “irregularidades”, A carne prende o leitor à narrativa através das atitudes e dos pensamentos das personagens principais: Helena Matoso e Manuel Barbosa.
Se o romance não é tão louvável, como determinaram os críticos, pelo menos a intenção de Júlio Ribeiro foi precisa. Criticou com veemência o casamento e explorou o sexo sob diversas maneiras: os pensamentos lascivos dos protagonistas, o coito dos animais, o voyeurismo, a relação proibida dos amantes Helena e Barbosa... A carne só não foi uma “obra-prima” porque Lenita era um perigo à sociedade patriarcal, por isso alegaram que o romance era obsceno, pornográfico e sem qualidades literárias.
Romance profano? Talvez, sim., Porém, antes de tudo, uma narrativa a qual foi contundente em relação à sociedade que não estava pronta para receber A carne, em 1888. Júlio Ribeiro quis, de certa forma, antecipar as questões que envolvem o ser humano, como o sexo, por exemplo. Não foi feliz; o que estamos conseguindo agora, ele queria adiantar-se e expor tais questões à transição do século XIX para o XX. Em Santos – SP, dois anos depois de sua obra polêmica, Júlio Ribeiro morre a 1º de novembro de 1890. Todavia, seu espírito ficou e A carne também.

Brasília, novembro de 1999
por Andrey do Amaral




























BIBLIOGRAFIA


BANDEIRA, Manuel. Noções de história das literaturas. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1960.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 36 ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
BRUNETI, Almir. Silencing the female voice: critical response to Júlio Ribeiro’s A carne. Washington DC: Howard University, 1996.
FREITAS, Senna. A polêmica – Júlio Ribeiro e Padre Senna Freitas. In (anexo): RIBEIRO, Júlio. A carne. São Paulo, Três, 1972
JUNIOR, Araripe. Obra crítica. Rio de Janeiro: MEC/ Casa de Rui Barbosa. Vol. II, 1960.
PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira. Vol. II. Rio de Janeiro: José Olympio, 1950.
RIBEIRO, Júlio. A carne. 11 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
_____. A carne. São Paulo: Três, 1972.
VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira – de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 5 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.





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