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Ensaios-->Jorge de Lima - análise poética de um soneto -- 04/12/1999 - 10:58 (Andrey do Amaral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Jorge de Lima
(Análise poética de um soneto)

Por Andrey do Amaral - copyright (todos os direitos reservados)

“Mas, sobretudo, o que torna a poesia de Jorge de Lima resistente aos perigos que a cercam é justamente a qualidade lírica da sua imaginação.”
(Mário de Andrade)

“Jorge de Lima liquidou – espero que para sempre – com todo o regionalismo, tornando-se absurdo interpretá-lo em função do Nordeste.”
(Murilo Mendes)

“Não dividamos o mundo.
Dividamos Cristo:
todos ressucitarão iguais.”
(“A Divisão de Cristo”)


Breve biografia de Jorge de Lima

Jorge Matheos de Lima é alagoano nascido em União dos Palmares a 23 de abril de 1895. Na adolescência, vai para Maceió onde inicia sua carreira literária sob o estímulo dos regionalistas Raquel de Queiroz e José Lins do Rego, o que também podemos classificá-lo como tal, pois o regionalismo foi tema muito marcante em sua obra. Nessa fase regionalista ou nordestina, Jorge de Lima “traduz” a realidade brasileira em seus poemas, tal qual acontecera no Modernismo, principalmente no auge da brasilidade difundido na Semana de Arte Moderna em 1922.
Em seus poemas, aparecem: sua infância; a religiosidade; a miséria do povo; a paisagem, os hábitos e costumes nordestinos. A temática de Jorge de Lima é diversificada, pois percorreu por vários caminhos: poesia parnasiana, poesia épica, poesia regional, poesia mistico-católica. Ocorre em Jorge de Lima a “fusão do sobrenatural com o real, interseccionamento do concreto pelo onírico, simbiose do superficial com o oculto, – eis aí a síntese possível de seu conteúdo ”(Moisés, p. 465).
Estuda Medicina em Salvador, concluindo seus estudos no Rio de Janeiro (1914), defendendo a tese O destino higiênico do lixo no Rio de Janeiro. Retorna a seu estado natal para dedicar-se à carreira literária e à política. Porém acaba por lecionar e escrever. Foi professor de Literatura Luso-Brasileira na Universidade do Distrito Federal (1937). Precocemente, escreve o soneto “O Acendedor de Lampiões”. Volta mais uma vez para o Rio de Janeiro, dividindo sua vida entre a Política, a Literatura e a Medicina. Deixou poemas bastantes conhecidos como: “Essa Negra Fulô” e “Mulher Proletária”. Trabalhou com fotografia e escultura, editando um álbum de fotomontagem. Foi pintor e ensaísta. Faleceu no Rio de Janeiro a 15 de novembro de 1953.
Obra:
Poesia: XIV alexandrinos (1914), O Mundo do Menino Impossível (1925), Poemas (1927), Novos Poemas (1929), Poemas Escolhidos (1932), Tempo e Eternidade (em colaboração com Murilo Mendes, 1935), Quatro Poemas Negros (1937), A Túnica Inconsútil (1938), Poemas Negros (1947), Livro de Sonetos (1949), Obra Poética (incluindo os anteriores e as mais Anunciação e Encontro de Mira-Celi), (1950), Invenção de Orfeu (1952).
Romance: Salomão e as mulheres (1927), O Anjo (1934), Calunga (1935), A Mulher Obscura (1939), Guerra Dentro do Beco (1950).
Teatro: A Filha da Mãe D’Água (inédito), As Mãos (inédito), Ulisses (inédito).
Cinema: Os Retirantes (argumento de filme, inédito).


O Grande Desastre Aéreo de Ontem
Para Cândido Portinari

“Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violonista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E velo a loucura abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona como a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol .”
(Jorge de Lima)
Neste trabalho, o poema a ser analisado será o belíssimo soneto de Jorge de Lima descrito a seguir:

Essa pavana é para uma defunta
infanta, bem-amada, ungida e santa,
e que foi encerrada num profundo
sepulcro recoberto pelos ramos

de salgueiro silvestres para nunca
ser retirada desse leito estranho
em que repousa ouvindo essa pavana
recomeçada sempre sem descanso,

sem consolo, através do desenganos,
dor reveses e obstáculos da vida,
das ventanias que se insurgem contra

a chama inapagada, a eterna chama
que anima esta defunta infanta ungida
e bem-amada e para sempre santa.


1 – Determinação do ritmo:

LIMA, Jorge de. Antologia poética. Rio de Janeiro, Sabiá,1969.

_ U U _ U U U _ U U _
01: Essa pavana é pa//ra uma defunta
U _ U _ U _ U _ U _
02: infanta, bem-ama//da, ungida e santa,
U U _ U U _ U U U _
03: e que foi encerra//da num profundo
U _ U U U _ U U U _
04: sepulcro recober//to pelos ramos

U U _ U U _ U U U _
05: de salgueiro silves//tres para nunca
_ UU_ U U U _ U _
06: ser retira//da desse leito estranho
U U U _ U _ U_ U U _
07: em que repousa ouvin//do essa pavana
U U U _ U _ U U U _
08: recomeça//da sempre sem descanso,

U U _ U U _ U U U _
09: sem consolo, através// dos desenganos,
U U _ U U _ U U _
10: dos reveses e obstá//culos da vida,
U U U _ U U _ U _
11: das ventanias// que se insurgem contra

U _ U U U _ U _ U _
12: a chama inapaga//da, a eterna chama
U _ U U U _ U _ U _
13: que anima esta defun//ta infanta ungida
U _ U _ U UU _ U _
14: e bem-ama//da e para sempre santa.


Número distributivo Número representativo

01-1,4,5,7//10..........................................1,3,2//4
02-2,4,6//8,10..........................................2,4//2,2
03-3,6//8,10.............................................3,3//2,2
04-2,6//10................................................2,4//4

05-3,6//10.................................................3,3//4
06-1,4//8,10..............................................4,4//2
07-4,6//7,10..............................................4,2//4
08-4,6//10.................................................4,2//4

09-3,6//10..................................................3,3//4
10-3,6//10..................................................3,4//3
11-4//8,10..................................................4//2,2

12-2,6//8,10...............................................2,4//2,4
13-2,3//8,10...............................................2,4//2,4
14-2,4//8,10................................................4//4,2


CONSIDERANDOS:

No soneto de Jorge de Lima, um soneto sem título, chama-lo-emos de “Essa pavana”, apenas para não ficarmos na não-denominação de um soneto epigráfico. Talvez isso seja um ato intencional do autor, pois o corpo do poema constitui uma espécie de epitáfio, uma lápide tumular do sepulcro descrito no soneto. Com essa possível intenção, o ritmo contido no poema apresenta-se com um tom lento, soturno, triste, totalmente emotivo.
O ritmo preponderante é binário com 21 células métricas. O unitário aparece com 02 células, o terciário com 12 e o quartenário com 15.
O poema é distribuído em quatro blocos de estrofes. Nas duas primeiras estrofes, os versos apresentam uma seqüência de quatro versos, quadra ou quarteto; nas duas últimas, em três versos, tercetos.
As rimas são irregulares, porém a musicalidade no poema é deveras forte, pois trata-se de um soneto decassílabo. Mesmo não havendo regularidade na tonicidade do decassílabo, porque o esquema rítmico é variado (heróico, sáfico, gaita-galega e pentametro iâmbico), não há uma exaustiva tensão rítmica. “O decassílabo foi um dos esquemas, poemas de forma fixa, mais preferidos pelos poetas clássicos do século XVI (...). A partir dessa época, o decassílabo foi sendo enriquecido ritmicamente, com variantes de novos acentos em relação aos dois tipos iniciais ”(Goldstein, pp. 29-30), o heróico e o sáfico.
É mister observar no poema o ritmo poético dado a ele, sem, contudo, deixar de captar e compreender, com extrema atenção, a tríade indivisível do poema: cadência/significante/significado.


2 – Determinação do tema:

Jorge de Lima cita, no poema, um espaço físico bastante esdrúxulo: uma sepultura, num cemitério, certamente. E justo nos cemitérios há paz, serenidade, silêncio, calmaria e, principalmente, descanso. Descanso dos mortos, dos defuntos. Logo, o tema proposto por Jorge de Lima é o descanso que é o desejo da defunta.


3 – Análise da forma, partindo do tema:

Jorge de Lima, apesar de também se filiar à escola parnasiana, não utilizou as características desta a esse soneto (Essa pavana). Os versos são livres, não há narração nem descrição exageradas, o racionalismo não é hermético. Porém, a objetividade temática e o culto da forma – o soneto – (embora aqui apenas na estrutura básica: dois quartetos e dois tecetos) mantêm-se presente. Não há rimas ricas, raras, perfeitas. Certamente, Jorge de Lima, em sua trajetória poética, não se lembrou, ou se esqueceu, de Olavo Bilac – grande parnasiano, príncipe dos poetas brasileiros – desdenhando a lei parnasiana:

“Assim procedo. Minha pena
segue esta norma.
Por te servir, Deusa Serena,
Serena Forma.”

(Profissão de fé)

Mas Jorge de Lima percorreu por muitos caminhos: do parnasiano, com o livro XIV Alexandrinos (1914) , à poesia mais social (a exemplo do poema Mulher proletária); do regionalismo à religiosidade; da poesia filosófica aos negros poemas (Poemas negros – 1947).
Em sua fase religiosa, tem um enorme desejo de separação dos infortúnios e penúrias do mundo terreno. E é justamente isso que acontece com a sua “defunta”.
Tranqüila, ela – a defunta – repousa ouvindo uma música, provavelmente de origem italiana, em compasso binário ou quartenário, de andamento lento e majestoso , que dá concórdia, quietude e serenidade ao ambiente fúnebre da necrópole, em oposição ao agito do dia-a-dia fora dos cemitérios, livrando a falecida dos reveses e obstáculos da vida.
De caráter grave, a pavana é o que abranda o sofrer da defunta, pois esta foi recém-enterrada e o pesar ainda paira no desenvolvimento do soneto pela sua morte soturna. O adjetivo infanta, cujo sentido significa quem ainda está ou permanece na infância, revela o princípio do seu sono eterno, do seu fim. Entretanto, existe uma proximidade espiritual entre o eu-lírico e a defunta. Esta recebe daquele um tratamento carinhoso, fraterno. Pois a morta recebe uma adjetivação especial: infanta, bem-amada, ungida e santa.
Essa seqüência adjetiva remete-nos a atenção e o respeito do eu-lírico para com a defunta. Infanta: divindade pueril, candura verdadeira. Bem-amada: a pessoa ditosa, a querida, a predileta, o afeto particular. Ungida: mulher que foi consagrada com óleo bentificado, sendo, portanto, o ser que recebeu piedade religiosa, compaixão pessoal. E, por fim, santa: defunta virtuosa, sagrada, pura, inocente.
Sua santidade – a principal característica da morta – é confirmada na metáfora metonímica atribuída ao sepulcro que é o próprio templo da santa no qual está confinada eternamente em seu descanso a fim de que seja contemplada em louvores por outrem.
Os substantivos também têm sua importância dentro do tecido do poema.
O concreto leito é a particularização (metonímia) do templo da santa, que é o sepulcro. O leito é o altar da santa onde estão os ramos de salgueiro silvestres os quais adornam e transformam o simples altar em morada eutímica, pomposa, bela, magnífica e, principalmente, santificada. Pois, na poesia, “os substantivos abstratos indicam generalização; os concretos, particularização ”(Goldstein, p. 60). Nesse soneto de Jorge de Lima, há tanto substantivos abstratos como concretos, com predominância deste (defunta – derivação imprópria, adjetivo substantivado – ramos, sepulcro, leito, ventanias, chama, salgueiro) em relação àquele (descanso, consolo, reveses, obstáculos, desenganos).
O eu-lírico, portanto, apesar da ausência da defunta, sente-se bastante próximo dela, pois é freqüente o uso dos concretos no soneto. E, além de tudo, são os concretos que remetem ao eu-lírico alento, serenidade, calma. Num cemitério, perto duma cripta ou sepulcro, encontramos pessoas as quais procuram extremas tranqüilidade e paz; e é justamente o que o eu-poético encontra, pelo uso de tais concretos pelo autor.
Já os abstratos são mais genéricos. O consolo, o descanso, os desenganos, os reveses e os obstáculos da vida fizeram a defunta ser, certamente, encerrada num profundo sepulcro. Dos cinco abstratos, apenas um não tem uma denotação tão drástica, pesada: o consolo. Contudo, em sua carga semântica, há todo um sofrimento inerente em si mesmo, pois aquele que perde um ente querido, imediatamente, precisa de alento, de consolo. Consolo da pavana, a música a qual abranda o ambiente sepulcral do poema. Num funcionamento mecânico, a pavana é ouvida pela defunta debaixo da terra em razão do óbice de seu viver: os desenganos, os reveses e obstáculos da vida (elementos muito bem escolhidos por Jorge de Lima).
A pavana é um substantivo especial, pois é o elo entre as peculiaridades dos concretos e rudimentos genéricos e difusos dos abstratos.
No campo de análise dos verbos, é relevante atentar para o tempo dos versos a seguir:


l.01 “Essa pavana é para uma defunta
l.07 em que repousa ouvindo essa pavana
l.11 das ventanias que se insurgem contra
l.13 que anima esta defunta infanta ungida


Os verbos sublinhados dos versos citados estão no tempo presente do modo indicativo. Essa constância determina uma certa proximidade do eu-poético em relação à defunta. Nos versos, o momento presente – o tempo – é a afetividade e o carinho saudosos destinados ao cadáver infanto.
Verbos no pretérito determinam a saudade mais distante, a nostalgia triste, a lembrança perdida no tempo. No futuro, o distanciamento; às vezes, o inalcançável. O que não é o caso do soneto, pois não há verbos no futuro. Porém, há um verbo omitido no futuro do presente (indicativo) no último verso, dentro de uma oração adjetiva, também omitida, revelado pela aplicação do advérbio de tempo sempre. São as ausências significativas. O advérbio de tempo, empregado no poema, remete-nos uma idéia de tempo futuro:
e bem-amada e para sempre santa.

Essas elipses revelam a confirmação futura do que já foi dito, sem intenção, no segundo verso:

Infanta, bem-amada, ungida e santa

Um presságio futorológico. A futorologia, presente nas entrelinhas misteriosas do soneto, traz à tona uma gradação crescente a qual revela o destino de santidade da defunta desde a sua morte (linha 02) até a sua eternidade (linha 14).
O que não é diferente com a locução verbal no passado (foi encerrada). Ela é totalmente significativa, pois indica que o fato foi consumado, não existe caminho para a volta: “a vida foi encerrada”. Essa forma composta, no soneto, “é usada ainda para confirmar-se uma ordem, ou ao concluir-se um discurso ”(Sacconi, p. 234) ,ou ainda um ato acontecido. Não poderia estar omitida como o verbo no futuro. A locução foi encerrada significa o início de todo um caminho a fim de que ela chegue à sua santidade.
É mister e relevante ressaltar, brevemente, o aspecto do verbo no soneto de Jorge de Lima. O “aspecto é a duração do processo verbal. Ao aspecto interessa a noção de início, curso, ou mesmo um instante da ação verbal. Há verbos que exprimem ação de longa duração (...) e verbos que exprimem ação de curta duração (...) os mais variados matizes de duração do processo verbal podem estar continuados na própria significação do verbo (...) na flexão temporal (Sacconi, p. 194) (...)”.
Em Essa pavana é para uma defunta o aspecto verbal é o presente permansivo ou universal e durativo. Permansivo porque é uma verdade permanente e certa: a música é para a falecida. Durativo porque a música começa a tocar num passado próximo ao sepultamento da defunta

em que repousa ouvindo essa pavana
recomeçada sempre sem descanso,

sem consolo,...

O gerúndio de repousa ouvindo indica uma idéia de continuidade da ação. O ouvir da defunta é, de fato, o “combustível” para o seu descanso. O alento para o seu fim mórbido.
Os demais verbos no presente (anima, insurgem, repousa) determinam a total passividade da morta em relação ao meio. Porém, não uma passividade submissa e, sim, uma passividade solitária e individual. Uma subordinação ao seu estado de morta a qual será revertida pelo último verso (e bem-amada e para sempre santa.)
Há no texto uma curiosidade significativa: o uso dos particípios como qualificadores dos substantivos, a derivação imprópria, (sepulcro recoberto, pavana recomeçada, chama inapagada). Essa forma nominal dos verbos – o particípio passado – é um recurso bastante usado por Jorge de Lima. Quiçá, para fugir dos padrões estabelecidos pela gramática normativa, pois, quando se “libertara” da estética parnasiana, Jorge de Lima cultivou bem nossa brasilidade, influenciado pela época da Semana de Arte Moderna (1922); o regionalismo, expressando sua infância, deixando de lado qualquer regra, seja de cunho gramatical, seja de cunho social, seja de cunho religioso, seja de cunho pessoal...
Como poeta modernista, as regras muitas vezes ficaram para trás. É claro que o texto analisado é um soneto, muito cultivado pelos parnasianos. Entretanto, aqui sem tantas determinações, mesmo porque os modernistas também usavam o soneto, porém com um quê sarcástico. Jorge de Lima, como tantos outros, obliterou das regras e das marcas parnasianas em função do encanto e da importância do Modernismo. Ele não resistiu e tornou-se um autêntico poeta modernista, ou desparnasiano. “Ao aceitar o Modernismo, seu verso se alonga em tons proféticos e exclamativos, algo parecido com os versos eloqüentes com que Castro Alves condena a escravidão ”(Rodrigues, p.177).
Todavia, ao contrário de Vinicius de Moraes que lera uma resenha do livro de Willian Strunk Jr., The Elements of Style, a qual dizia que “uma frase não deve conter palavras desnecessárias ”, como adjetivos e advérbios. “O escritor deve insistir no emprego do substantivo expressivo que contém em já si um elemento de caracterização. Evita sobretudo carregar a frase de adjetivos, como quem carrega um fardo ”(Lapa)
Jorge de Lima utilizou, em seu soneto com maestria, uma cascata de adjetivos e dois advérbios antitéticos: nunca, empregado no segundo quarteto (linha 05) e sempre, também no segundo quarteto (linha 08), sendo repetido – iteração – no último terceto (linha 14). Dois advérbios (nunca e sempre). Uma certeza: a saudade do eu-lírico pela defunta a qual descansa em

sepulcro recoberto pelos ramos

de salgueiro silvestres para nunca
ser retirada desse leito estranho

O advérbio “negativo” de tempo, nunca, determina o distanciamento espiritual entre os dois (o eu-lírico e a defunta). Pois, em momento algum – nunca – ela sairá do leito o qual, para ele, é estranho, anormal, misterioso. Mas, pelo menos, de corpo permanecem juntos.
Em contrapartida, o advérbio “afirmativo” de tempo – sempre – relata que a defunta será, além de outros louváveis encômios, para sempre santa. O uso do advérbio sempre tem como fim a eternização de sua característica principal: a santidade (...para sempre santa.), reforçado pelos dígrafos vocálicos em e an, dando idéia de continuidade progressiva e eterna, juntamente com a belíssima aliteração musical de /p/, /r/, /s/, /m/ e /n/.
A utilização dos adjetivos é um tanto curiosa. Há adjetivos cuja conotação, e até mesmo sua denotação, é lânguida, definhando-se aos poucos num sentido mórbido-santo. Talvez até pela perfeita ou casual escolha, pelo poeta, dos substantivos concretos acompanhados dos adjetivos de funestação indissolúvel (leito estranho, profundo sepulcro, ramos de salgueiro silvestres).
Por oposição à languidez dos adjetivos citados anteriormente, há no texto a tríade de esperança de vida do eu-lírico pela defunta: a chama inapagada (artigo/substantivo/adjetivo), reafirmada pelo seu aposto: a eterna chama.
A chama inapagada é a metáfora que finaliza o soneto. A chama, fraca ou forte, resiste à força das ventanias que se insurgem contra ela, a eterna chama. Os qualificadores inapagada e eterna significam a imortalidade da pavana que preserva sua vivacidade animando a defunta, posto que ‘animar’ significa “dar alma ou vida ”. Assim a defunta, mesmo num profundo sepulcro, resiste aos óbices que nascem a fim de deixá-la desalmada, soturna. Porém a chama vive, não está apagada. Ela permanece acesa e inapagada.
Toda adjetivação presente no tecido do poema, acerca da morta, é relevante. Os adjetivos possuem carga semântica afetiva. À defunta, são atribuídas qualidades crescentes (infanta, bem-amada, ungida e santa), revelando a intenção do eu-lírico de carinho e veneração por ela. Essa seqüência é a gradação crescente, começando na primeira quadra, com uma longa pausa no meio do soneto, e se encerrando no segundo terceto.
Outro recurso bastante utilizado no poema é o encadeamento ou cavalgamento, ou ainda “enjambement” (substantivo francês). O encadeamento no soneto de Jorge de Lima não é confuso nem traz ao texto ambigüidade, como é comum em muitos poemas quando contêm o “enjambement”, ao contrário, chega até ter características lúdicas, como é o caso do encadeamento do primeiro verso

Essa pavana é para uma defunta
infanta, bem-amada, ungida e santa,

O adjetivo infanta retira toda carga tenebrosa e fúnebre do substantivo, pois aquele, significando candura pueril, pureza, extingue de imediato o sentido funesto de uma primeira leitura do poema com o cavalgamento do primeiro verso. Mesmo existindo, no soneto, vocábulos horrendos, sua significação pávida está drasticamente presa por três fortes barras de palavras, três versos. Uma no início do soneto

infanta, bem-amada, ungida e santa,

e outra no final, servindo de base para o peso dos signos nefastos os quais preenchem o poema

que anima esta defunta infanta ungida
e bem-amada e para sempre santa.

E por que a primeira frase (Essa pavana é para uma defunta) não possui vocábulos esbatidos, tênues? Simples; no primeiro verso, dá-se a apresentação das duas principais vertentes do soneto: a pavana e a defunta. Uma espécie de apresentação dos termos a serem desenvolvidos durante a leitura dos versos. Sem nenhum elemento qualificador, eles, em si, trazem uma enigmática significação até o final do primeiro verso, o que acabará com o sentido a eles destinados no decorrer dos versos seguintes, o “enjambement”.
Em princípio, temos um certo distanciamento do eu-lírico para com a defunta., pois o pronome demonstrativo “essa” e o artigo indefinido “uma” determinam o aparente afastamento do eu-poético à defunta. Essa asserção absorta gera um conflito, entrando em choque com a seqüência adjetiva contida nas extremidades do soneto (linha 02 e linhas 13 e14). A força continuada em série dos adjetivos, destinados à morta, aniquila todo o pesar do primeiro verso, bem como também dos substantivos funéreos e agônicos. Porém, o que mais estabelece o abrandamento dos infortúnios presentes no soneto é, sem dúvida alguma, a pavana. O descanso eterno da defunta está garantido pela música serena descrita no soneto: a pavana.


4 – análise isotópica semêmica das palavras da cesura:

01 - /para/: preposição, indicando fim, finalidade.

02 - /amada/: adjetivo revelador das qualidades da defunta. Ela, realmente, é querida, estimada .

03 - /encerrada/: particípio passado do verbo encerrar cujos significados denotativos se enquadram bem ao sentido dessa forma nominal. “1. Meter ou guardar (em lugar que se fecha) (...) 5. Guardar ou fechar dentro de (algo ou, fig., alguém) (...) 6. Fechar-se; enclausurar-se .”

04 - /recoberto/: outro particípio, porém funcionando como qualificador, adjetivo, a fim de dar mais expressividade pela regressão imprópria da palavra; serve de elo entre o substantivo sepulcro e as folhagens, que abrandam o “peso” da sepultura.

05 - /silvestres/: adjetivo derivado de selva. Qualifica uma locução adjetiva, de salgueiro, representando o grilhão (verde, selvagem) que determina que a defunta estará para todo o sempre dentro de sua morada sepulcral. Os ramos do salgueiro silvestres, arbustos de pouca altura, cujos folhagens fortes e rasteiras, presas ao sepulcro, confinam a defunta à eternidade dentro do estranho cárcere.

06 - /retirada/: novamente outro particípio, que começa sua significação no verso anterior com o advérbio nunca. A defunta, pelo uso do particípio passado, está confinada dentro de seu esquife anormal, seu sepulcro fora do comum, amenizado pelo eufemismo de leito estranho.

07 - /ouvindo/: mais uma forma nominal do verbo como cesura. O gerúndio, diferente dos particípios, faz com que a ação verbal não tenha fim, persista numa infinita amplidão, bem marcante no verso 07.

08 - /recomeçada/: começar novamente. A pavana está a todo tempo recomeçando, sem descanso, em completa melancolia.

09 - /através/: núcleo da locução prepositiva (através + de), conjunto de duas palavras. Serve de caminho para a passagem da pavana a qual alenta o sono da defunta que repousa ouvindo os sons melancólicos da pavana.

10 - /obstáculos/: o fim da gradação decrescente (sem descanso, sem consolo, através dos desenganos e obstáculos da vida). O anticlímax. O óbice à santidade da defunta ungida e santa. Os obstáculos, substantivo abstrato, fazem uma ligação intínseca com a cesura do verso 11, ventanias.

11 - /ventanias/: substantivo feminino carregado de conotações lúgubres e medonhas, sendo o fecho conseqüencial dos outros abstratos citados antes das ventanias.

12 - /inapagada/: adjetivo que se opõe aos significantes de significados negativos. A chama sobressai nos abstratos; tem mais força; mantém-se acesa; resiste à torrencial ventania.

13 - /defunta/: adjetivo substantivado. A mudança da classe gramatical desse significante determina o esquecimento, a saudade contida no significado. Porém , o qual será personificado e louvado com esmero.

14 - /para/: preposição que denota finalidade ao destino da defunta: ser para sempre santa. Esse propósito é a eternização revelada no último verso pela preposição para.


FIGURAS DE LINGUAGEM RELEVANTES

Gradação crescente: “infanta, bem-amada, ungida e santa” (v.02).
Metáfora: “infanta, bem-amada, ungida e santa” (v.02).
Aliteração: “infanta, bem-amada, ungida e santa” (v.02).
Assonância: “infanta, bem-amada, ungida e santa” (v.02).
Hipérbole: “foi encerrada” (v.03).
Catacrese: “foi encerrada” (v.03).
Hipérbato: “profundo/sepulcro” (v. 03/04).
Antonomásia: “leito” (v.06).
Metonímia: “leito” (v.06).
Eufemismo: “leito estranho” (v.06), “ventanias” (v.11).
Prosopopéia: “a chama eterna/que anima” (v. 12/13).
Iteração: “sem” (v.08), “sem” (v. 09).
Iteração: “dos” (v.09), “dos” (v. 10).
Iteração: “chama” (v.12).
Hipérbato: “a eterna chama” (v.12).


5 – Determinação da estrutura:

1º segmento: (da linha 01, “Essa pavana”, até a linha 02, “ungida e santa”): há nesse trecho a explanação da pavana e da defunta que estarão presentes ao longo do poema.

2º segmento: (da linha 03, “e que foi encerrada”, até a linha 04, “pelos ramos”): nos versos 03 e 04, encontramos a descrição, não detalhada, de onde a falecida foi enterrada, ou encerrada, num profundo sepulcro.

3º segmento: (da linha 05, “de salgueiro”, até a linha 06, “leito estranho”): novamente há um detalhamento do sepulcro: leito estranho, agasalhado e protegido por folhagens rasteiras.

4º segmento: (da linha 07, “em que repousa”, até a linha 10, “da vida”): o momento mais soturno do poema é encontrado nesse segmento. Encontramos nesse trecho os infortúnios e desditas da vida. Da vida morta da defunta, a qual descansa a ouvir a patavana.

5º segmento: (linha 11, “das ventanias que se insurgem contra”): a menção das ventanias é, quiçá, o grande empecilho que surgirá contra a chama a qual vai animar a morta, a defunta. A morta não é cosmopolitana; é, sim, santa. Não se habituará aos estorvos que lhe cercam, Mas está sob proteção divina; recebeu unção com óleo bentificado, santo. A defunta está ungida.

6º segmento: (da linha 12, “a chama inapagada”, até a linha 14, “ sempre santa.): o mote de exaltação é pleonástico. A adjetivação de louvores, presente no primeiro segmento, é novamente repetida no sexto e no último segmentos. Porém aqui surge outra seqüência qualificadora, além dos atributos já destinados à defunta. A nova dupla de adjetivos agora qualifica a chama: inapagada e eterna. Essa adjetivação vivificadora acerca da chama é o fecho que determina a amplidão de imortalidade da defunta, principalmente pelo penúltimo vocábulo, o advérbio de tempo sempre.

Obs.: não se pode fazer uma perfeita determinação da estrutura, pois toda seqüência dos versos é construída por “enjambement”. Portanto, o sentido do primeiro verso só se completa no segundo; o sentido do segundo, no terceiro e assim até o último verso do soneto.

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BIBLIOGRAFIA

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LIMA, Jorge de. Poesia completa. 2.ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. v. 1.
MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. 20. ed. São Paulo, Cultrix, 1997.
MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
RODRIGUES, A. Medina et. alii. Antologia da literatura brasileira – o modernismo. São Paulo, Marco,1979.
SACCONI, Luiz Antonio. Nossa gramática – teoria e prática. 20. ed. São Paulo, Atual, 1994.



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