As leis, como estão dispostas nos códigos e nas consolidações, grosso
modo, dispõem de diversas interpretações, cujas pretensas conclusões são dominadas pela
classe dominante. Pretende-se, nesta resenha, mostrar os péssimos rumos da hermenêutica
da lei, na qual falta ética e sobram interesses excusos. Além disso, o texto visa criticar a
maneira como é aplicada a lei no Brasil e no mundo, mostrando a quem somente ela atinge
e a quem ela deixa de atingir. Também é objetivo desse ensaio tentar questionar a função da
lei, hoje integralmente manipulada pelos detentores do poder.
A lei tem como função regular as relações sociais, econômicas e de
várias outras naturezas entre os homens. Desde o início da Idade Moderna, estas relações
vêm sendo asseguradas pelo ordenamento jurídico instituído, positivado, que dá
credibilidade à convivência entre os indivíduos, ao entendimento deles uns com os outros
em todas as esferas da vida. Mas, quem sai ganhando com isso tudo?
Ao longo dos tempos, desde o início da Idade Moderna, viu-se o
surgimento de uma classe burguesa e, por outro lado, de uma imensa massa proletária.
Junto a estas duas classes, acoplava-se a lei positivada, que visava 'garantir a convivência
entre os homens' que antes viviam 'o medo de perder sua vida e sua propriedade'. Ora,
quão lindas seriam estas intenções se não escondessem o verdadeiro 'porquê' do
nascimento da lei positivada. Como foi colocada sob ideais liberal-burgueses, a lei visou,
grosso modo, apenas beneficiar os detentores do poder econômico através do uso do poder
de coerção. Este, sem dúvida, é a maior característica da lei. E quando se fala em poder de
coerção, pensa-se em um poder de polícia que possa abafar as animosidades da massa
proletária.
Nota-se através dos tempos que, verdadeiramente, a função da lei tem
sido garantir à burguesia uma hegemonia inquebrável; algo que pode ser visto nos dias
atuais tamanha é a pobreza e a desigualdade social e econômica no mundo. Ao lermos
livros, doutrinas de renomados juristas, é explícita a intenção de dizer que a lei vem para
regular as relações sociais, econômicas, como num maravilhoso mundo onde todas as
pessoas são tratadas igualmente, onde o direito de todos, independente de raça, cor ou
situação econômica, é respeitado. Esse mundo não existe, e a humanidade está longe dessa
utopia.
Logicamente que a lei tem uma importância fundamental e vital para a
convivência dos indivíduos, e sempre terá (e não serei eu discordante deste fato). Quando
critica-se a lei, diz-se sobre sua nobre função, social, que infelizmente está difícil de ser
alcançada. Discorre-se também sobre sua interpretação às vezes anti-ética e principalmente
sobre sua aplicação, enfim, em quem está sendo aplicada, como está sendo aplicada e a
diferença de aplicação entre os 'tipos' de indivíduos.
Enxergando a real função da lei, podemos fazer questionamentos sobre
algumas conclusões. Não seria necessária uma remodelação, baseada em princípios éticos
(não econômicos, como sempre foi feito), da função da lei? Colocando ética e lei frente a
frente, não haveríamos de criar uma urgente função social mais competente, menos
falaciosa? Se estamos numa sociedade desigual, e se quase nada é feito para que se resolva
isso, a função da lei deveria ser 'manter desiguais as relações sociais e econômicas', como
são hoje, e não 'regular as relações sociais e econômicas' pura e simplesmente. Há muita
hipocrisia dentro desta definição, presente em vários livros de renomados juristas.
A lei, como foi dito acima, foi positivada sob interesses liberal-
burgueses, que enalteciam a igualdade e a liberdade. Por conseguinte, a interpretação do
direito quase sempre foi feita sob o viés burguês, ressalvados seus interesses. Quem tem o
poder político em mãos cria seu próprio eixo jurídico, em torno do qual a interpretação da
lei deve se conter. Nesta maneira, muitas vezes, justiça distancia-se da lei porque
prevalecerá o interesse da classe mais abastada, mesmo que falte a ética neste ato
interpretativo(há diversos exemplos, nas sentenças do nosso Supremo Tribunal Federal, que
foram efetivamente influenciadas politicamente).
Muito se fala do logicismo formal de Kelsen, o qual baseia a
interpretação dos fatos sociais em si naquilo que está colocado no ordenamento jurídico
instituído. O silogismo mostra a maneira pela qual o direito deve ser visto, partindo-se da
lei, passando posteriormente pelo fato até chegar-se a uma conclusão. Dogmatiza-se certos
preceitos para que se 'enclausure' a interpretação do direito. As chamadas lacunas do
direito são absorvidas pelo ordenamento jurídico que, então, pode ser considerado
completo, perfeito. E tudo (qualquer interpretação) cabe dentro daquele ordenamento. Algo
só pode ser legítimo se for, antes de mais nada, legal. Muitas sentenças, enxergadas por este
viés, são proclamadas cegamente. Vê-se apenas a forma da lei e a maneira como o fato
pode ser encaixado nesta lei; deixa-se de lado, muitas vezes, a justiça. É um grande
problema, a interpretação tendenciosa da norma.
Já a aplicação da lei sempre está ligada a um fato que é citado por esta
lei. Mas, como a lei pode ser aplicada da mesma maneira para cidadãos que,
economicamente ou socialmente, são diferentes? Resultado: A aplicação real das leis, da
maneira como elas se põem no ordenamento jurídico, só se dá aos indivíduos pouco
abastados. Vista dessa maneira, às vezes a lei não converge com ideais de justiça, sendo
apenas a expressão da vontade de quem tem o controle do aparelho coercitivo do Estado. E
como o Estado é, de certa maneira, a representação da hegemonia burguesa sobre o
proletariado, a aplicação da lei sempre esteve fadada a interesses excusos.
O que se vê hoje é o reflexo da vontade de quem tem o poder nas mãos.
A sabedoria popular diz que a lei só é aplicada no '3P', ou seja, no pobre, nos cidadãos da
raça negra (pretos) e nas prostitutas. Banqueiros falidos, que usurparam os cofres públicos
brasileiros, estão longe de verem a lei ser aplicada neles. A inércia ao punir políticos
corruptos mostra o rumo da aplicação da lei no Brasil. Penitenciárias abarrotadas de
pessoas pertencentes à classe pobre são vistas em todo o território, enquanto na política
nacional vemos exemplos e mais exemplos de indivíduos impunes. Falta ética à aplicação
da lei, não só no Brasil, mas no mundo inteiro.
Não seria conveniente reestudar, sem hipocrisia e com mais
transparência, para quê a lei vige? Diante de uma situação delicada na qual se encontra a
maioria da população mundial, a busca da verdadeira função da lei não se faz obrigatória?
Miguel Reale expôs um pensamento interessante, que leva em consideração esta situação
delicada do mundo de hoje e que induz a uma crítica na maneira de pensar a lei. Diz ele que
'os que se inquietam com o futuro do homem, numa época de marcada transição
curiosamente coincidente com a passagem para o novo milênio, não escondem a mais
profunda preocupação perante certos desgarramentos da sociedade de massa, sempre mais
dominada pela obsessiva posse e gozo das últimas benesses propiciadas pelo progresso
tecnológico, que tende a transformar as novas gerações em atormentados joguetes da
civilização do orgasmo , que se caracteriza pela incontida ansiedade de imediata fruição de
tudo aquilo cujas virtudes e vantagens os poderosos meios de comunicação enaltecem, em
perene e aliciosa propaganda, que obedece, tão-somente, à nunca satisfeita ambição
empresarial'. Diante desta sincera reflexão, temos a obrigação de levar este ideal para o
direito, a fim de redefinir a função da lei, aplicá-la eticamente e interpretá-la de uma
maneira justa e igual para todos.
Referência Bibliográfica:
REALE, Miguel. 'Paradigmas da Cultura Contemporânea'. Editora Saraiva, 1999, São
Paulo, 1ª edição.
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