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Ensaios-->MEU TIPO INESQUECÍVEL: PROFESSOR FRANCISCO GALVÃO FREIRE -- 26/04/2000 - 22:37 (Mario Galvão) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A Seleções do Readers Digest, durante muitos anos no Brasil a única revista digna desse nome, publicava em suas edições um pequeno ensaio em que algum autor focalizava o seu MEU TIPO INESQUECÍVEL.
Assíduo leitor de Seleções, como de tudo mais que encontrava pela frente que tivesse letras impressas no idioma português, quando garoto, sonhava um dia em escrever um desses ensaios.
Está aí agora, a Usina de Letras, dando-me esta oportunidade.
O meu tipo inesquecível é o meu próprio pai, o Professor Francisco Galvão Freire, nascido em Campinas, local tão fora de propósito para seu nascimento como para mim foi a cidade de Botucatu.
Acontece que o Francisco Galvão era descendente de família de Guaratinguetá, com avô piraquara, ou seja, pescador do Rio Paraíba do Sul, com muitos gens de índio correndo nas veias, junto com sangue português. Era para nascer ali mesmo, junto às barrancas do Paraíba, no bairro do Campo do Galvão, que tinha as casas inundadas todos os anos em dezembro e janeiro.
Acontece que seus pais, a mãe de família rica da cidade valeparaibana, das mais cheias de preconceitos e tradicionalismos, tinham sido obrigados a fugir para Campinas devido à ira inconformados pais da noiva, Julieta.
Em Campinas, morreram tuberculosos, ambos, na mais triste miséria, quando meu pai tinha apenas 4 anos.
Foi levado de volta para Guaratinguetá pela bisavó, uma cafusa, que morava na Praça Piratininga, bem no centro do bairro do Campo do Galvão.
Ali cresceu o órfão Francisco, felizmente de boa índole, como ele mesmo dizia, não se misturando com a molecada pobre e ociosa, mas sempre ajuizado, estudando muito, com vontade de ser alguém. Na escola, muitas vezes, na falta de caderno, era o papel de embrulhar o pão do lanche que era usado para tomar notas.
Como o ensino era público e gratuito, lhe foi possível formar-se professor na Escola Normal, naquela época afamada em todo o estado de São Paulo pela qualidade de seus mestres. Naquela época, Guaratinguetá era a chamada Athenas do Vale. Hoje, é apenas do Vale, pois todo o polo econômico e culural regional deslocou-se para Taubaté e São José dos Campos.
O Professor Francisco, como educador e professor de muitas e muitas gerações de valeparaibanos, em Queluz, Lavrinas, Aparecida, Pindamonhangaba, Taubaté e Botucatu, onde terminou sua carreira e onde eu nasci, mereceria muitas e muitas páginas pela sua dedicação e anônima passagem pela história.
Mas não é essa faceta que o faz meu tipo inesquecível.
São por tiradas incríveis, por um temperamento e uma filosofia de vida que se tornaram para mim lições imorredouras de comportamento humano e social.
A começar pela sua crença diferenciada, um panteísmo caboclo que nunca mais encontrei tão original e interessante.
Ele me dizia: 'Veja meu filho. A Terra é um ser vivo, em si mesma. Ela tem circulação, que são os rios e os mares. Ela tosse, através dos vulcões e tem um sistema nervoso complexo que faz com que a crosta trema aqui e ali, em terremotos, certamente quando algo a incomoda. Ela tem calor interno, portanto, a meu ver, ela é viva, podendo abrigar vida em sua superfície. Os outros planetas que conhecemos, se tiverem vida, terão vida também. Agora, se já morreram, não devem ter vida nem na superfície, nem no seu interior.'
Não é de uma pureza cristalina?
Olhando as estrelas:
'Veja meu filho, tudo pulsa, tudo se movimenta, tudo também é vivo. Deve existir o ser infinitamente grande e o ser infinitamente pequeno, mas tudo, tudo isso, é Deus.'
Essa crença quase oriental do meu pai não o impedia de, de tempos em tempos, ir à missa e até de comungar com a minha mãe.
E explicava:
'Na vida em sociedade, meu filho, a gente deve acompanhar a maioria, quando isso não custa nada, e deve também agradar ao máximo as pessoas que a gente ama. Sua mãe fica tão contente de eu ir à missa e, com tantos comungando, porque vou ficar só eu sem acompanhar os demais?'
Foi visitar meu irmão seminarista dezenas de vezes e sempre perguntava:
'Tem certeza que não quer voltar para casa?'
Meu irmão brigou com minha cunhada. Ela saiu da cidade onde morava e foi para nossa casa, em Guaratinguetá. Fez um esparramo, chorou, recclamou e meu pai ali, firme, ouvindo.
Foi buscar um táxi na Praça Conselheiro.
'Vamos já para a sua casa, resolver isso! Assim não pode ficar!'
O táxi rodou mais de 100 quilômetros e estacionou em frente a casa do meu mano.
'Agora desce e vai lá se entender com o seu marido,porque esse assunto tem que ser resolvido entre vocês dois.'
Ela desceu e ele voltou para Guaratinguetá a tempo de assistir o jornal falado da Tupi e jantar a sopa de inhame que minha mão preparava com maestria.Os brigões viveram junto mais várias dezenas de anos.
Para todos os filhos ensinava:
'Não é fácil ser bom. Porque ser bom não é apenas não praticar o mal, que isso é até fácil. Ser bom é praticar todo o bem que é possível fazer, no pouco tempo que temos para viver.'
É mole? - diriam os meus filhos.
Na escola profissional de Botucatu, sabiam que ele tinha vindo do ensino primário, sem qualquer experiência de ensino profissionalizante e de trato com máquinas e oficinas.
No entanto, todos os dias, visitava a sala repleta de fresas e tornos. No final, procurava o técnico encarregado:
'Seu fulano, dê uma olhadinha na fresa número 35, que ela está com problemas.'
O técnico sorria, certo de que era engano, ia até a máquina e...tinha realmente um defeito.
Um dia, criou coragem, não suportou mais e inquiriu o professor sobre o mistério de como ele conseguia detectar defeitos nas máquinas, se não
entendia nada de nada de mecânica e maquinário.
'Ora, é muito simples. Eu não entendo de mecânica, mas entendo de barulho. Quando passo pela máquina todos os dias e ela está com seu barulhinho inalterado, é porque está tudo bem. Mas, se o barulho está entrecortado ou esquisito, eu tenho certeza de que ela está com algum defeito...Daí peço para você examinar.'
Detestava contendas e jamais teve um problema com a justiça, embora acalentasse o ideal, depois um dia realizado,de ter um filho formado em Direito.
Dizia:
'Como posso acreditar na justiça dos homens? Advogado bom é o que consegue provar que o preto é branco, porque provar que o preto é preto, qualquer um prova, não precisa de um bom advogado.'
Nos dias em que os oito filhos se reuniam no almoço comemorativo ao Dia das Mães, colocava uma placa no centro da mesa:
'É proibido hoje discutir futebol, política e religião'
Nunca houve encrenca nas reuniões da família.
Tinha senso de humor e gostava de brincar, divertido.
Um dia, chego em casa para almoço e, cheio das vontades e não quer isso, não quer aquilo, vislumbro um potinho com algo estranho dentro, na ponta da mesa.Pergunto o que é, ja fazendo careta:
'É miolo de vaca' - responde antes que minha mãe me atenda e proteja.
Faço cara de mais nojo ainda. Ele enche uma colher e vem para o meu lado, ameaçando:
-- Se nunca provou miolo, vai ter que provar agora!
Surpreso por uma brutalidade que nunca vi antes, disparo por baixo da mesa, saindo do outro lado, cruzando a sala em direção aos quartos. Ele atrás, de colher cheia de pasta marrom claro, atrás de mim, vociferando;
-- Vai aprender a comer miolo, moleque.
Tento pular a janela, mas me enrolo todo na cortina que cai ao chão, a sanefa fazendo um barulhão enorme, tudo de trambolho!
Estou como um gladiador romano, de costas para o chão, inerme, enrolado na cortina e ele sentado em cima de mim, com a colher cheia. Não entendo nada o que minha mãe grita, apavorada, enquanto ele enfia a colher goela minha abaixo.
-- Come menino. Come que é saudável!
Depois de me encher a boca e de me passar a colher nos lábios, pergunta, ainda sentado sobre o meu peito:
-- Que gosto tem miolo?
Lambo o raio da gororoba, surpreso e confirmo que miolo de vaca tem gosto de doce de leite.
E era doce de leite, daqueles marrom claro, cheio de pururucas.
Foi só risada, dele, de minha mãe e de minhas irmãs.
Só levei dele, de verdade, algumas pancadas, num dia em que mereci.
Era bem cedo. Eu já era taludo, adolescente. Acordei e com preguiça não levantava. Ele entrou no quarto e abriu as janelas, de par em par, deixando entrar a luz.
-- Levanta, rapaz. Não aprende que precisa acordar cedo. Veja como é, a gente ensina cachorro, ensina leão, ensina até zebra, mas gente, tanto tempo ensinando, e não aprende! Tá parecendo uma zebra, moleque, levanta e vai tomar café que sua mãe não é sua escrava!
Naquele dia, estava um tanto nervoso, o que não era usual.
Levantei-me, escovei os dentes, passei pela copa onde ele e minha mãe tomavam café.
Lá do portão, ouvi-o gritando:
-- Venha tomar café, menino!
Gritei bem alto, em tom malcriado, que zebra não tomava café.
Ele me alcançou na esquina. Naquele dia, levei uns cascudos merecidos em frente aos meus colegas, eu que nunca tinha apanhado na infância toda, o caçulinha mimado.
Quando voltei para casa, amuado, ele em pouco tempo me fez fazer as pazes, sem tocar no assunto, como se nada tivesse acontecido, chamou-me para ver um novo Atlas Geográfico que havia comprado para mim.
-- Olha aqui, não lhe falei, a Terra é um ser vivo, que respira. Tem um até um sistema circulatório...
Um tipo inesquecível. O meu tipo inesquecível.
Saudade do Professor Galvão. Teríamos certamente hoje grandes papos.Quem sabe ainda vamos ter? Afinal, o infinitamente grande não acaba sempre se encontrando com o infinitamente pequeno? Tudo não é uma coisa só, Deus?

Mário Galvão é jornalista e profissional de RP




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