DíVIDA
Encontrei-o numa fila de banco. Reconheci de cara. Estava envelhecido, o rosto murcho. Ele se lembrava vagamente de mim. Conversamos coisas va-gas. Ele poderia nem se lembrar - e acho difícil que lembrasse - mas eu não esqueci nunca: esse sujeito tinha uma dívida comigo.
Foi coisa do tempo de criança, eu frequentava o curso primário. Para chegar na escola, a pé, cortava caminho por um morro de barro - quando não havia chovido. A escola ficava na descida do morro.
Certo dia, ganhei da madrinha uma moeda de dois cruzeiros, valor que dava para um festival de puxa-puxas. Minha mãe fez um embrulhinho com a moeda e me mandou para a escola. Não me lembro se o uniforme não tinha bolso, sei que levava o embrulho na mão, com todo cuidado, como uma peça rara. Na subida do morro, encontrei o sujeito. Quando me viu foi puxando conversa, como um lobo que sonda o carneirinho. Claro, estava curioso para saber o que havia no embrulho. Uma hora perguntou:
-O que você leva aí na mão? Posso dar uma olhada? - e tomou o volume de minha mão.
Ao desembrulhar a moeda, me disse: olha, menino, dê adeus pra esses dois cruzeiros. E foi embora sem que eu pudesse fazer alguma coisa. Acho que essa foi a minha primeira decepção com as pessoas.
Ele agora estava na minha frente, murcho, alquebrado. Quem sabe eu fizesse o mesmo: deixe ver quando você leva aí na carteira? Depois sumisse com o dinheiro. Seria bem feito. Ficaria ali parado, com cara de bobo, como eu fiquei na ocasião. Só não sei a quanto equivaleriam os dois cruzeiros, com juros de quarenta anos. Não era pelo dinheiro, não! Era por quarenta anos de desconfianças, de decepções com o próximo. Talvez mesmo vendendo tudo que possuía não conseguisse saldar a dívida. Fui chamado por um caixa, ele por outro, os pensamentos se perderam. Depois, ele se despediu: até mais!
-Até mais, retribuí - certo de que mais um roubo tinha ficado impune no país.
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