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Ensaios-->galeria de murmúrios -- 16/05/2000 - 20:34 (jorge pieiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
GALERIA DE MURMÚRIOS

'Um poeta tem que vencer esse tremor de ilhas,
ser um habitante de suas vertigens'

(F.M.)

Diversos são os instrumentos do desejo, assim como a singularidade de suas apropriações. Representar essa complexa cadeia pela expressão de idéias ou pelo exercício do pensamento é, sem dúvida, uma atitude ousada. O desejo, por si só, entremeia-se em um contexto, ora de revalorização interior, ora pela infração de condicionamentos. Em qualquer desses pontos de ruptura deve erigir-se o poeta para desbaratar as sentenças condenatórias do mundo, e para nelas estimular o fogo mais intenso dos infernos individuais. Exige-se, para isso, a transformação da ilusão, do desespero, do amor, do altruísmo e do revelado desejo que se cria no purgatório da memória.

*

Alerta a essas insinuações, convém lançar a questão: como desativar do desejo a obsessão da dúvida? O sonho é um objeto da dúvida ou aquilo que se deseja? Com certeza, o sonho é tênue, é uma membrana abstrata, não convém ser estimulado. O sonho é imotivado. Porém, de outra forma, a sua tessitura pode enveredar-se a partir da vígilia, pelo entrelaçar dos bilros às linhas da imaginação e da memória, na construção de uma renda infinita de imagens e (r)evoluções. Este é o caminho da dúvida e dos atos que dominam o espírito.
A questão é o tecido de todas as esfinges devoradoras do silêncio. Freud admitiu ser o sonho a 'realização de um desejo'. Assim, pois, a grande esfinge que nos faz meditar ou abandonar o objeto real na viagem pelo inconsciente é o próprio ensejo da dúvida sobre todas as coisas.

*

Entre a revelação da poesia e a azáfama do desejo estende-se uma ponte. E a sua construção, além das imagens de um caudaloso rio de metáforas e relâmpagos verbais, lapsos inconscientes, flertes cósmicos e in(ter)venções, há de superar o simples ludismo, o jogo de amarelinha dos vocábulos, os atributos de Onã, porquanto a sua realização atinja a força de um amálgama que para si invista do poder de pilares dessa ponte.
Destilar luz, sacrifícios, silêncios e eternidades poéticas dá-se como em um processo alquímico bem sucedido. Pois entre tantos cadinhos com ouropéis da nossa poética em voga, eis que uma trilogia se funde e atinge a quintessência da pedra filosofal. O desejo e a obsessão, seus murmúrios, suas galerias e seus sonhos. Assim dá-se com Cinzas do sol (1991), Sábias areias (1991) e Tumultúmulos (1993), do poeta brasileiro Floriano Martins (Fortaleza, 1957-), todos editados pela Mundo Manual Edições (Nova Friburgo/RJ).
*
A trilogia reunida, como aqui é finalmente apresentada, é uma obra densa que não admite do leitor a descompostura de lê-la por espasmos. Apesar de, separadamente, serem breves, o volume de sugestões e propósitos de surrealidade contidos nos pequenos livros oferece ao leitor uma profundidade poética de revelação.
A revelação dessa obra concisa e original é profanação de um esquife ou vários esquifes, uma vez que trata, incansavelmente, da apropriação memorial de entes queridos do poeta. Por exemplo, Cinzas do Sol é dedicado a Lilia, também personagem, ente etéreo, que é uma de suas avós; em Sábias Areias a dedicatória vai à memória de Consuelo, sua mãe, com quem o poeta travará a luta da lembrança; e, em Tumultúmulos, o diálogo prossegue com a memória de Floriano, seu pai.
Certamente, assinalando como Joseph Brodsky, Martins poderia repetir: 'Acho que quero conservar as coisas da maneira como eram na minha família, agora que passei a ser tudo que resta dela', ou 'todo filho, de um modo ou de outro, repete a trajetória de seus pais', ou, ainda, com a certeza irremediável, diria que tudo não passa de um simulacro da ilusão e repetiria Brodsky, simulando 'a lição final: como se morre'.
Apesar da possibilidade hermética que os relatos e poemas podem encerrar, seria irresponsável não reparar no poder e na virtude da obra, maturada e segura de sua poética. Não seria enfadonho repetir Mark Strand, quando diz que 'Talvez as pessoas não queiram ouvir as notícias que a poesia transmite, pois freqüentemente elas não são boas notícias, pois vêm do contato do poeta consigo mesmo. A poesia é um memorial dos momentos vividos e, de certa forma, um longo adeus' e que 'Um poema é real quando tem força suficiente para ser lembrado'.
Pois essa trilogia dos murmúrios reúne com satisfação essa dita. Palavras do próprio Floriano Martins em entrevista concedida a Sérgio Campos confirmam isso: 'A incomunicabilidade de um poema está evidentemente pautada pela sua incapacidade de despertar emoção em quem o lê'. E, em um outro momento, arrebata: 'O ato da criação para mim está ligado ao mais intenso delírio da lucidez. Instante em que as imagens encarnam...' Tudo isso vale para a obra aqui comentada.


*


Em Cinzas do sol, Martins transforma Lilia, a avó a quem dedica os 13 relatos, em uma personagem cercada de fantasmas, posto que a ela vai-se concedendo a revelação dos mistérios da outra dimensão. O poeta e Lilia parecem ser uma mesma pessoa. Ocorre que Lilia é uma revelação transplantada de sua forma material em personagem. Mas tanto no poeta como na criatura a recusa da morte é vigorosa. E por várias razões: primeiro porque ao poeta cabe transcender e tornar-se imortal; segundo porque ao neto a perda tem suas significações: a perda sofrida por ele mesmo, assim como aquela pela iminente ausência do ser querido - cabe lembrar que Lilia somente viria a se encontar em definitivo com a morte um ano após a escritura deste livro -; e, por último, porque a Lilia cabe sofrer inexoravelmente a trama final de seus dias.
O fim triunfal dá-se com um brinde, acentuado pela últimas palavras: 'Somente Deus adoraria sua própria morte' [Cf. UMA ÚLTIMA TAÇA COM LILIA]. O alívio é mais que um desafogo, é a constatação da perda, no poeta, de seu próprio sangue ancestral: 'Me ajudas a ficar só esquecendo quem sou' [Cf. PESADELOS DE DIANA].
A trajetória dos relatos insinua o desconhecimento do que existe do outro lado da fronteira. É aí que reside o desmembramento do poeta de Lilia.
É impossível não perceber que Martins sofre o prazer da perda. Em uma ironia irremediável, acentua: 'Ridículo dizer que do pó de teu sangue ressurgirei' [Cf. LAZARUS].
Com a certeza de que 'Há um ponto em que toda catástrofe é natural' [Cf. ESCULTOR], o poeta conceitua a sua dúvida e seu sentimento, ao admitir que 'A morte é a queda de um sonho' [Cf. FLOR NO CABELO DE LILIA].
Cinzas do sol é a estratégia do poeta para convencer a solidão divina das situações irremovíveis. Quando, em algumas passagens, anuncia uma obviedade, sabe Floriano Martins que não repete o lugar-comum. Apenas reflete com uma nova palavra a verdade existencial e metafísica, da vida à cabala cotidiana...

*

Sábias areias, segundo livro da trilogia, compõe-se de 33 sonetos reelaborados estruturalmente, e que formam um extenso poema. Nele, Martins realiza a translação de todos os seus desejos em torno da memória de sua mãe, Consuelo.
Há que se penetrar nesse emaranhado de fúria, arrebatamento, transpiração e desejo com todas as armas de que dispõe o espírito machucado. O labirinto poético é surpreendente, chega a ser atordoante. Mas tudo deve ser atribuído ao sentimento de filiação, profusamente espalhado pela solidão da alma do poeta.
É interessante notar que a revelação do desejo é admissível enquanto transgressão da realidade. O tratamento material da ilusão é visível. Há um descarado complexo edipiano em flor, provocado pela ausência ou a lembrança da solidão adquirida.
Em todos os sonetos podemos encontrar repetidamente palavras como formas, cristais, abismos, cinzas, nudez e vertigens, que repercutem inconscientemente, convergindo para o corpo e suas soluções de prazer. O corpo do poema, o corpo materno.
Ora, é evidente que o segundo livro (o da mãe) é originário do primeiro (o da avó), por suas próprias razões de descendência direta. Nesse caso, e mais revelada a gravidade desse revolvimento de fantasmas, o poeta neto e filho, simultaneamente, é o maior cúmplice umbilical do desejo materno - ancestral e presente. Complexo, pois, em todas as relações existenciais, a obra não poderia deixar de ser também complexa.
O poeta confessa que 'Tuas lágrimas Danças que me queimam / Óleos na concha de teu ser Tua forma Mãe' é também 'Tua selvagem forma que me destrói... / Sou eu que canto Esquece que sou tua presa'.
A partir daí Martins decide se apropriar do corpo do poema/mãe por meio de requintes verbais bem definidos: 'Virei sempre ao teu encontro' - '...A cada toque em tua pele Alma / lacerada Os cristais se dissolvem Nudisforme' - '...Era teu corpo o espelho ou / sua ilusão meu degredo' - '...Teu / corpo contra o meu Totem desfigurado Em chamas' - 'Tua / imagem se alimenta de meu corpo' - 'Meus versos desejam / o crime de tuas entranhas' - '...O / calor de tua tumba enroscando-se em mim...'.
Louco, desenfreado, arrependido ou extasiado, nos últimos sonetos, o poeta acrescenta: '...Desci tanto para / encontrar teu fim Três noites teu corpo me / abrindo as urnas do êxtase', que tanto pode referir-se ao tempo de realização do poema, como aos sofrimentos da despedida, ou ainda à datação dos episódicos desejos e sua consumação espiritual.
Certo é que, similarmente ao estertor de uma cópula só há o momento final para que a respiração se desafogue e se suspire aliviado: 'Teu nome é ausência Vertigem da memória' - '...Tua ausência / indaga o que a morte celebra' - 'Perco teu nome' - '...Ali onde / esgotamos o corpo deste livro Louco esforço / de lucidez Improvável sem o furor de suas / areias...'
Talvez aí nesse quase-afogamento poético é que resida a dificuldade desse segundo segredo das mortes murmuradas. Mas talvez seja assim que a morte de um ídolo se aposse do desejo desesperado...

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Por sua vez, o último volume da trilogia, Tumultúmulos, remove definitivamente as cinzas do último túmulo, o da memória intrigante do pai. Em 49 páginas, concentram-se metáforas da morte sublimada ou a angústia da perda, ou mesmo a propriedade do corpo ancestral, mediante a montagem de sintagmas extraídos de um purgatório que é a memória desvendada do poeta, a partir do mais recôndito esconderijo de sacrifícios: o túmulo do pai.
Indiscutivelmente, o confronto entre pai e poeta adquire uma representação autobiográfica consistente, mas que supõe, como sói acontecer, a interação com a memória ficcional.
Também não é um livro de leitura fácil, no sentido de leveza. Tumultúmulos exige uma leitura de emoção, atenta, secreta, como se ao leitor fosse necessário iniciar-se na aflição do desejo.
É nesse contexto que chamas ardem e consomem a figura do pai nas palavras do poeta, representando a não-aceitação do espelho de si mesmo. A dor premeditada e desvendada é um sortilégio que atravessa SALAS DE RECONHECIMENTO (3 poemas de versos livres e bem encadeados, que distribuem uma uniformidade melódica em seus versos incertos), COLUNAS CIRCULARES (21 relatos, prosa poética) e ENTRADAS INVISÍVEIS (5 sonetos) - as três partes em que se divide a obra, e que são arrematadas por uma CODA.
Tumultúmulos é uma obra que tenta aproximar o leitor dos objetos transcendentes da memória. Seus textos cruzam um espaço de devaneio para atingir um pai inatingível.
Neles, o poeta se apropria da voz de uma criatura, o pai, 'Tua voz tem origem nas entranhas de um sonho' que, por sua vez, torna-se sombra, 'formas ressurgidas do caos' - 'o prolongamento da falta no poeta'. Aqui o poeta apresenta o pai como antítese da ordem, o caos, fazendo-nos crer que a organização da memória se dá a partir da imperfeição. O prolongamento do poeta na extensão de seu pai é a certeza do mais-que-imperfeito. Gera o conflito entre pai e filho, como formulado no ensaio Dostoiévski e o Parricídio, de Freud: 'Você queria matar seu pai, a fim de ser você mesmo pai. Agora, você é seu pai, mas um pai morto (...) Agora, seu pai está matando você'.
E Floriano Martins tem consciência disto, mesmo quando admite que 'Todo homem quer saber onde se distingue do pai', pois logo em outra passagem complementa: '...Que deuses amar senão os perdidos?'
Esse conflito, de súbito, parece desaparecer no quarto relato da segunda parte do livro, quando, autobiograficamente, o poeta ressente-se do desaparecimento do pai 'dias antes de nascer minha filha'. Como se ao tornar-se pai, as iras manifestas ao seu próprio pai se dissipassem. Mero engano. As relações se complicam. Uma estranha e eterna relação de pais e filhos, que pode encontrar natureza com a tão bem pronunciada e nunca a ele revelada Carta ao Pai, de Franz Kafka.
A prova disso encerra-se no final do livro, quando Martins implora: 'Volta ao teu mundo imperfeito, pai' - 'O futuro que inventas, mas que te recusas a habitar. Recuso-me a ser tua intolerável referência'.
Sem dúvidas, este terceiro volume é o mais completo da trilogia. O mais absurdamente lógico e real. E que talvez encerre o circuito denso da memória tumularmente revolvida, pela catarse poética, no exorcismo de seus fantasmas mais próximos.

*

Com Cinzas do Sol, Sábias Areias e Tumultúmulos, apostos agora sob a mesma lápide com a inscrição Colunas circulares, podemos asseverar que a criação e os desígnios de poeta em Floriano Martins estão plenamente satisfeitos. É um poeta maduro, que passa a ter uma responsabilidade com a sua obra futura. E não podemos esquecer dos traços surrealistas imanentes de sua obra. Isso pode ser conferido a partir de Octavio Paz, para quem 'não é tanto a criação de poemas que o surrealismo se propõe, mas a transformação dos homens em poemas viventes'. Acentua ainda Paz, que 'o surrealismo pode criar novos estilos, fertilizar os velhos ou, inclusive, prescindir de toda a forma e converter-se em um método de busca interior'.
Especificamente nessa trilogia, ainda citando Paz, vale dizer que Martins 'converte seus poemas em objetos de beleza e, ao mesmo tempo, em testamentos espirituais'.
O que se completa no poeta não é o acaso, mas o cumprimento dos desejos mais abissais. Lembrando Kierkgaard, em seu Temor e Tremor (Elogio a Abraão), 'o poeta não pode cumprir aquilo que o herói realiza: só lhe resta admirá-lo, amá-lo e rejubilar-se com ele. Entretanto não é menos favorecido do que este, porque o herói é, por assim dizer, o melhor de si mesmo, aquele de quem está enamorado, feliz por não ser herói; para que o seu amor seja feito de admiração. O poeta é o gênio da recordação. Nada mais pode fazer do que recordar; nada mais senão admirar o que foi cumprido pelo herói.'
O herói redime-se no poeta e mártir. Agora, ambos estão sublimados em suas dimensões, até que um novo (ou ancestral) rito devolva a alucinação e descerre novamente as entradas que conduzem a uma galeria de murmúrios...
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