GALERIA DE MURMÚRIOS
'Um poeta tem que vencer esse tremor de ilhas,
ser um habitante de suas vertigens'
(F.M.)
Diversos são os instrumentos do desejo, assim como a singularidade de suas apropriações. Representar essa complexa cadeia pela expressão de idéias ou pelo exercício do pensamento é, sem dúvida, uma atitude ousada. O desejo, por si só, entremeia-se em um contexto, ora de revalorização interior, ora pela infração de condicionamentos. Em qualquer desses pontos de ruptura deve erigir-se o poeta para desbaratar as sentenças condenatórias do mundo, e para nelas estimular o fogo mais intenso dos infernos individuais. Exige-se, para isso, a transformação da ilusão, do desespero, do amor, do altruísmo e do revelado desejo que se cria no purgatório da memória.
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Alerta a essas insinuações, convém lançar a questão: como desativar do desejo a obsessão da dúvida? O sonho é um objeto da dúvida ou aquilo que se deseja? Com certeza, o sonho é tênue, é uma membrana abstrata, não convém ser estimulado. O sonho é imotivado. Porém, de outra forma, a sua tessitura pode enveredar-se a partir da vígilia, pelo entrelaçar dos bilros às linhas da imaginação e da memória, na construção de uma renda infinita de imagens e (r)evoluções. Este é o caminho da dúvida e dos atos que dominam o espírito.
A questão é o tecido de todas as esfinges devoradoras do silêncio. Freud admitiu ser o sonho a 'realização de um desejo'. Assim, pois, a grande esfinge que nos faz meditar ou abandonar o objeto real na viagem pelo inconsciente é o próprio ensejo da dúvida sobre todas as coisas.
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Entre a revelação da poesia e a azáfama do desejo estende-se uma ponte. E a sua construção, além das imagens de um caudaloso rio de metáforas e relâmpagos verbais, lapsos inconscientes, flertes cósmicos e in(ter)venções, há de superar o simples ludismo, o jogo de amarelinha dos vocábulos, os atributos de Onã, porquanto a sua realização atinja a força de um amálgama que para si invista do poder de pilares dessa ponte.
Destilar luz, sacrifícios, silêncios e eternidades poéticas dá-se como em um processo alquímico bem sucedido. Pois entre tantos cadinhos com ouropéis da nossa poética em voga, eis que uma trilogia se funde e atinge a quintessência da pedra filosofal. O desejo e a obsessão, seus murmúrios, suas galerias e seus sonhos. Assim dá-se com Cinzas do sol (1991), Sábias areias (1991) e Tumultúmulos (1993), do poeta brasileiro Floriano Martins (Fortaleza, 1957-), todos editados pela Mundo Manual Edições (Nova Friburgo/RJ).
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A trilogia reunida, como aqui é finalmente apresentada, é uma obra densa que não admite do leitor a descompostura de lê-la por espasmos. Apesar de, separadamente, serem breves, o volume de sugestões e propósitos de surrealidade contidos nos pequenos livros oferece ao leitor uma profundidade poética de revelação.
A revelação dessa obra concisa e original é profanação de um esquife ou vários esquifes, uma vez que trata, incansavelmente, da apropriação memorial de entes queridos do poeta. Por exemplo, Cinzas do Sol é dedicado a Lilia, também personagem, ente etéreo, que é uma de suas avós; em Sábias Areias a dedicatória vai à memória de Consuelo, sua mãe, com quem o poeta travará a luta da lembrança; e, em Tumultúmulos, o diálogo prossegue com a memória de Floriano, seu pai.
Certamente, assinalando como Joseph Brodsky, Martins poderia repetir: 'Acho que quero conservar as coisas da maneira como eram na minha família, agora que passei a ser tudo que resta dela', ou 'todo filho, de um modo ou de outro, repete a trajetória de seus pais', ou, ainda, com a certeza irremediável, diria que tudo não passa de um simulacro da ilusão e repetiria Brodsky, simulando 'a lição final: como se morre'.
Apesar da possibilidade hermética que os relatos e poemas podem encerrar, seria irresponsável não reparar no poder e na virtude da obra, maturada e segura de sua poética. Não seria enfadonho repetir Mark Strand, quando diz que 'Talvez as pessoas não queiram ouvir as notícias que a poesia transmite, pois freqüentemente elas não são boas notícias, pois vêm do contato do poeta consigo mesmo. A poesia é um memorial dos momentos vividos e, de certa forma, um longo adeus' e que 'Um poema é real quando tem força suficiente para ser lembrado'.
Pois essa trilogia dos murmúrios reúne com satisfação essa dita. Palavras do próprio Floriano Martins em entrevista concedida a Sérgio Campos confirmam isso: 'A incomunicabilidade de um poema está evidentemente pautada pela sua incapacidade de despertar emoção em quem o lê'. E, em um outro momento, arrebata: 'O ato da criação para mim está ligado ao mais intenso delírio da lucidez. Instante em que as imagens encarnam...' Tudo isso vale para a obra aqui comentada.
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Em Cinzas do sol, Martins transforma Lilia, a avó a quem dedica os 13 relatos, em uma personagem cercada de fantasmas, posto que a ela vai-se concedendo a revelação dos mistérios da outra dimensão. O poeta e Lilia parecem ser uma mesma pessoa. Ocorre que Lilia é uma revelação transplantada de sua forma material em personagem. Mas tanto no poeta como na criatura a recusa da morte é vigorosa. E por várias razões: primeiro porque ao poeta cabe transcender e tornar-se imortal; segundo porque ao neto a perda tem suas significações: a perda sofrida por ele mesmo, assim como aquela pela iminente ausência do ser querido - cabe lembrar que Lilia somente viria a se encontar em definitivo com a morte um ano após a escritura deste livro -; e, por último, porque a Lilia cabe sofrer inexoravelmente a trama final de seus dias.
O fim triunfal dá-se com um brinde, acentuado pela últimas palavras: 'Somente Deus adoraria sua própria morte' [Cf. UMA ÚLTIMA TAÇA COM LILIA]. O alívio é mais que um desafogo, é a constatação da perda, no poeta, de seu próprio sangue ancestral: 'Me ajudas a ficar só esquecendo quem sou' [Cf. PESADELOS DE DIANA].
A trajetória dos relatos insinua o desconhecimento do que existe do outro lado da fronteira. É aí que reside o desmembramento do poeta de Lilia.
É impossível não perceber que Martins sofre o prazer da perda. Em uma ironia irremediável, acentua: 'Ridículo dizer que do pó de teu sangue ressurgirei' [Cf. LAZARUS].
Com a certeza de que 'Há um ponto em que toda catástrofe é natural' [Cf. ESCULTOR], o poeta conceitua a sua dúvida e seu sentimento, ao admitir que 'A morte é a queda de um sonho' [Cf. FLOR NO CABELO DE LILIA].
Cinzas do sol é a estratégia do poeta para convencer a solidão divina das situações irremovíveis. Quando, em algumas passagens, anuncia uma obviedade, sabe Floriano Martins que não repete o lugar-comum. Apenas reflete com uma nova palavra a verdade existencial e metafísica, da vida à cabala cotidiana...
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Sábias areias, segundo livro da trilogia, compõe-se de 33 sonetos reelaborados estruturalmente, e que formam um extenso poema. Nele, Martins realiza a translação de todos os seus desejos em torno da memória de sua mãe, Consuelo.
Há que se penetrar nesse emaranhado de fúria, arrebatamento, transpiração e desejo com todas as armas de que dispõe o espírito machucado. O labirinto poético é surpreendente, chega a ser atordoante. Mas tudo deve ser atribuído ao sentimento de filiação, profusamente espalhado pela solidão da alma do poeta.
É interessante notar que a revelação do desejo é admissível enquanto transgressão da realidade. O tratamento material da ilusão é visível. Há um descarado complexo edipiano em flor, provocado pela ausência ou a lembrança da solidão adquirida.
Em todos os sonetos podemos encontrar repetidamente palavras como formas, cristais, abismos, cinzas, nudez e vertigens, que repercutem inconscientemente, convergindo para o corpo e suas soluções de prazer. O corpo do poema, o corpo materno.
Ora, é evidente que o segundo livro (o da mãe) é originário do primeiro (o da avó), por suas próprias razões de descendência direta. Nesse caso, e mais revelada a gravidade desse revolvimento de fantasmas, o poeta neto e filho, simultaneamente, é o maior cúmplice umbilical do desejo materno - ancestral e presente. Complexo, pois, em todas as relações existenciais, a obra não poderia deixar de ser também complexa.
O poeta confessa que 'Tuas lágrimas Danças que me queimam / Óleos na concha de teu ser Tua forma Mãe' é também 'Tua selvagem forma que me destrói... / Sou eu que canto Esquece que sou tua presa'.
A partir daí Martins decide se apropriar do corpo do poema/mãe por meio de requintes verbais bem definidos: 'Virei sempre ao teu encontro' - '...A cada toque em tua pele Alma / lacerada Os cristais se dissolvem Nudisforme' - '...Era teu corpo o espelho ou / sua ilusão meu degredo' - '...Teu / corpo contra o meu Totem desfigurado Em chamas' - 'Tua / imagem se alimenta de meu corpo' - 'Meus versos desejam / o crime de tuas entranhas' - '...O / calor de tua tumba enroscando-se em mim...'.
Louco, desenfreado, arrependido ou extasiado, nos últimos sonetos, o poeta acrescenta: '...Desci tanto para / encontrar teu fim Três noites teu corpo me / abrindo as urnas do êxtase', que tanto pode referir-se ao tempo de realização do poema, como aos sofrimentos da despedida, ou ainda à datação dos episódicos desejos e sua consumação espiritual.
Certo é que, similarmente ao estertor de uma cópula só há o momento final para que a respiração se desafogue e se suspire aliviado: 'Teu nome é ausência Vertigem da memória' - '...Tua ausência / indaga o que a morte celebra' - 'Perco teu nome' - '...Ali onde / esgotamos o corpo deste livro Louco esforço / de lucidez Improvável sem o furor de suas / areias...'
Talvez aí nesse quase-afogamento poético é que resida a dificuldade desse segundo segredo das mortes murmuradas. Mas talvez seja assim que a morte de um ídolo se aposse do desejo desesperado...
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Por sua vez, o último volume da trilogia, Tumultúmulos, remove definitivamente as cinzas do último túmulo, o da memória intrigante do pai. Em 49 páginas, concentram-se metáforas da morte sublimada ou a angústia da perda, ou mesmo a propriedade do corpo ancestral, mediante a montagem de sintagmas extraídos de um purgatório que é a memória desvendada do poeta, a partir do mais recôndito esconderijo de sacrifícios: o túmulo do pai.
Indiscutivelmente, o confronto entre pai e poeta adquire uma representação autobiográfica consistente, mas que supõe, como sói acontecer, a interação com a memória ficcional.
Também não é um livro de leitura fácil, no sentido de leveza. Tumultúmulos exige uma leitura de emoção, atenta, secreta, como se ao leitor fosse necessário iniciar-se na aflição do desejo.
É nesse contexto que chamas ardem e consomem a figura do pai nas palavras do poeta, representando a não-aceitação do espelho de si mesmo. A dor premeditada e desvendada é um sortilégio que atravessa SALAS DE RECONHECIMENTO (3 poemas de versos livres e bem encadeados, que distribuem uma uniformidade melódica em seus versos incertos), COLUNAS CIRCULARES (21 relatos, prosa poética) e ENTRADAS INVISÍVEIS (5 sonetos) - as três partes em que se divide a obra, e que são arrematadas por uma CODA.
Tumultúmulos é uma obra que tenta aproximar o leitor dos objetos transcendentes da memória. Seus textos cruzam um espaço de devaneio para atingir um pai inatingível.
Neles, o poeta se apropria da voz de uma criatura, o pai, 'Tua voz tem origem nas entranhas de um sonho' que, por sua vez, torna-se sombra, 'formas ressurgidas do caos' - 'o prolongamento da falta no poeta'. Aqui o poeta apresenta o pai como antítese da ordem, o caos, fazendo-nos crer que a organização da memória se dá a partir da imperfeição. O prolongamento do poeta na extensão de seu pai é a certeza do mais-que-imperfeito. Gera o conflito entre pai e filho, como formulado no ensaio Dostoiévski e o Parricídio, de Freud: 'Você queria matar seu pai, a fim de ser você mesmo pai. Agora, você é seu pai, mas um pai morto (...) Agora, seu pai está matando você'.
E Floriano Martins tem consciência disto, mesmo quando admite que 'Todo homem quer saber onde se distingue do pai', pois logo em outra passagem complementa: '...Que deuses amar senão os perdidos?'
Esse conflito, de súbito, parece desaparecer no quarto relato da segunda parte do livro, quando, autobiograficamente, o poeta ressente-se do desaparecimento do pai 'dias antes de nascer minha filha'. Como se ao tornar-se pai, as iras manifestas ao seu próprio pai se dissipassem. Mero engano. As relações se complicam. Uma estranha e eterna relação de pais e filhos, que pode encontrar natureza com a tão bem pronunciada e nunca a ele revelada Carta ao Pai, de Franz Kafka.
A prova disso encerra-se no final do livro, quando Martins implora: 'Volta ao teu mundo imperfeito, pai' - 'O futuro que inventas, mas que te recusas a habitar. Recuso-me a ser tua intolerável referência'.
Sem dúvidas, este terceiro volume é o mais completo da trilogia. O mais absurdamente lógico e real. E que talvez encerre o circuito denso da memória tumularmente revolvida, pela catarse poética, no exorcismo de seus fantasmas mais próximos.
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Com Cinzas do Sol, Sábias Areias e Tumultúmulos, apostos agora sob a mesma lápide com a inscrição Colunas circulares, podemos asseverar que a criação e os desígnios de poeta em Floriano Martins estão plenamente satisfeitos. É um poeta maduro, que passa a ter uma responsabilidade com a sua obra futura. E não podemos esquecer dos traços surrealistas imanentes de sua obra. Isso pode ser conferido a partir de Octavio Paz, para quem 'não é tanto a criação de poemas que o surrealismo se propõe, mas a transformação dos homens em poemas viventes'. Acentua ainda Paz, que 'o surrealismo pode criar novos estilos, fertilizar os velhos ou, inclusive, prescindir de toda a forma e converter-se em um método de busca interior'.
Especificamente nessa trilogia, ainda citando Paz, vale dizer que Martins 'converte seus poemas em objetos de beleza e, ao mesmo tempo, em testamentos espirituais'.
O que se completa no poeta não é o acaso, mas o cumprimento dos desejos mais abissais. Lembrando Kierkgaard, em seu Temor e Tremor (Elogio a Abraão), 'o poeta não pode cumprir aquilo que o herói realiza: só lhe resta admirá-lo, amá-lo e rejubilar-se com ele. Entretanto não é menos favorecido do que este, porque o herói é, por assim dizer, o melhor de si mesmo, aquele de quem está enamorado, feliz por não ser herói; para que o seu amor seja feito de admiração. O poeta é o gênio da recordação. Nada mais pode fazer do que recordar; nada mais senão admirar o que foi cumprido pelo herói.'
O herói redime-se no poeta e mártir. Agora, ambos estão sublimados em suas dimensões, até que um novo (ou ancestral) rito devolva a alucinação e descerre novamente as entradas que conduzem a uma galeria de murmúrios...
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