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Ensaios-->Da tradução: duas ou três coisas que eu sei dela -- 27/07/2000 - 23:06 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Da tradução: duas ou três coisas que eu sei dela


A tradução, entre nós, transformou-se em fetiche.
Perigosamente. 'Traduzido diretamente do alemão', foi essa a muito bem arquitetada estratégia de marketing para anunciar a tradução da obra de Kafka, que vem sendo realizada por Modesto Carone há duas décadas ou mais. É claro que isso soava razoável naquele momento inicial, depois de décadas de recepção mediada por traduções feitas 'a partir do original em inglês' - é o que se pode ler logo na abertura das traduções de um Torrieri Guimarães, por exemplo - ou do francês. Por isso, a estratégia de marketing, que hoje, à distância, se pode ouvir assim como 'diretamente da vaca', em se tratando de vender o leite. O que
também, é claro, pode até fazer algum sentido. Nunca se sabe, nestes tempos de alimentos transgênicos e de tantas falsificações grosseiras.
O certo é que não é raro, em salas de aula ou nas palestras que tenho tido a oportunidade de proferir sobre o trabalho de tradução por mim desenvolvido 'no seio da academia', me deparar com aquelas perguntas pueris e que soam como que já catalogadas, aquele 'como é, para você, a coisa da tradução', acompanhada de um indefectível gesto de esfarelar com os dedos o possível sentido da palavra 'coisa' e da pergunta, sentido este que o próprio inquiridor parece adivinhar inexistente.
Mas já que há palestras e mesas-redondas, e já que elas inevitavelmente são seguidas de 'acalorados' debates, tampouco escaparemos, nós, os perguntados, ao óbvio das respostas, já devidamente catalogadas também, como se estivéssemos a recitar uma infindável ladainha, o moto-perpétuo dos esvaziados rituais acadêmicos, a auto-indulgente reiteração de platitudes e clichês acriticamente assimilados ao marketing da indústria da cultura.

E, isso todo mundo sabe, não existe a profissão do tradutor. E não existe nada que nos proteja nesse vale-tudo da indústria da cultura, nesse vale de lágrimas da exploração inescrupulosa da força de trabalho inteletual. E alguém, numa das nossas renomadas editoras, já achou de me apontar o dedo, para classificar-me, ante a minha insistência em defender-me, como 'o último dos frankfurtianos', chegando mesmo a se achar muito sério e original na repetição do dito chistoso. E não existe nada que faça uma editora nos pagar, como é devido, pelo trabalho entregue na data acertada de comum acordo. Algumas pagam, outras demoram muito a pagar e outras não pagam mesmo. E nada, no meu caso, conseguiu impedir um editor, também tradutor, de me ameaçar com a publicação de rascunhos, a ele entregues em confiança para que o capista - era o que dizia - pudesse adiantar o seu trabalho, ou para que ele,
então se fazendo de amigo, me desse alguma contribuição importante. E tudo em nome da cultura. E tudo em nome da boa tradução. Coisas de abnegados, de generosos e engajados ativistas da causa cultural.

De um tradutor alemão de renome, de passagem entre nós antes de um retumbante sucesso em seu país de origem com a tradução de uma obra máxima da nossa literatura para o seu idioma, ele que, para santa inveja de nós todos, tradutores brasileiros, pode estar entre nós e freqüentar o cenário do livro que traduzia, ouvi esta observação, para a qual venho aqui chamar a atenção dos leitores: 'a tradução, entre vocês, se transformou em fetiche', deixando de ser aquilo que simplesmente é, um trabalho como outro qualquer, ele pensava, uma tarefa bastante humana, e que requer um tempo imenso e uma dedicação a toda prova. Tempo e dedicação, eu diria, impossíveis de serem, por exemplo, devidamente compreendidos pelo meio acadêmico.
Tenho tido alguma dificuldade, nos meus relatórios, em demonstrar que a atividade da tradução pode justificar o cumprimento do tempo integral pelo qual o Estado me remunera. Tampouco tenho merecido o devido apreço pela tentativa, mais do que necessária, de preencher lacunas da nossa bibliografia técnica em Teoria Literária. Os pareceristas conseguem até ironizar os meus passos, com observações do tipo 'o professor parece ter especial predileção por essa natureza de trabalho'.
Uma questão: traduzir, afinal, não deveria ser uma tarefa no mesmo plano do escrever, do ler, pensar, inventar, criar, enfim, de todas essas atividades próprias do ser humano. Sim, é claro, é preciso que alguns de nós a elas se dediquem. Há-que ter talento, é claro, genialidade às vezes, congenialidade, quereriam os mais eruditos. Mas é preciso, sobretudo, muito esforço e dedicação. Do meu ponto de vista, só o prazer justifica abraçar tarefas assim inglórias.
E, para meu espanto, sempre volto a encontrar os bem-aventurados, aqueles que sempre conseguem êxito, nunca tiveram nenhum problema com as editoras, sempre foram bem pagos, sempre reconhecidos. Bem-sucedidos. Gente que faz. Alguns surpreendem mesmo pela onipresença. Há quem consiga colocar na praça tantas traduções em tão pouco tempo, que eu só posso mesmo me sentir um lerdo. E eles ainda lançam seus próprios livros, dão aulas, orientam trabalhos, freqüentam insistentemente os jornais e outros meios de comunicação, enfim, estão em toda parte.

Tive os meus quinze segundos de fama, como qualquer leitor deste site pode ler no meu currículo, mas depois fiquei sem entender como é que alguns conseguem prolongar a mágica para além desses efêmeros instantes. Eu precisaria de muito espaço para enumerar aqui os tantos convites que, então, me foram feitos, as propostas às vezes indecorosas. As editoras parecem contar com a nossa vaidade irrefreável. Não acreditariam jamais que alguém pudesse não ceder às promessas irrecusáveis de sucesso, recusar-se ao pacto. Um cafezinho aqui, um Adorno em dois meses, um Peter Handke rapidamente chupado das inevitáveis traduções francesas. E eis-nos de volta às traduções indiretas. Em outras palavras, por que suar tanto para traduzir direto do alemão, se os franceses, os espanhóis, os italianos, todos eles traduzem tão bem, e sempre antes de nós. Não é uma baba?
É isso aí. Apenas um começo de papo. Tenho muitas coisas para contar. São anos de ostracismo. De janela, seria mais poético talvez. Tenhos muitas coisas no disco rígido, armazenadas, essa gaveta pós-moderna, de resto, tão abarrotada. Este é, repito, apenas um começo de papo. É o meu tema. É o meu dilema. Um dia achei que poderia vir ser tradutor. Depois entendi que ser tradutor não era assim tão simples, mas que poderia, de qualquer modo, traduzir. E que é isso o que realmente nos interessa. Viver disso? Nem pensar.
Despedi-me, assim, do fetiche, com muito sofrimento, é claro, que ninguém é de ferro. Rasteiras, tombos, arranhões, porradas. Houve de tudo um tanto. Doeu. Mas valeu também. Agora olho com enorme respeito o trabalho da tradução, o meu e o de tantos outros 'modestos construtores', conforme queria José Paulo Paes no título de um seu artigo sobre a tradução dos best-sellers. Como sigo sendo admirador de todos os bons trabalhos realizados e publicados, independentemente de todas as considerações que eu mesmo pudesse fazer em contrário ao sistema de produção da nossa 'tão incipiente' indústria cultural. Eu, o leitor admirado das traduções de Kafka, sobre isso não haja nenhuma dúvida, feitas por Modesto Carone. Eu, que não entendo, por exemplo, como uma Lya Luft pode ter traduzido tanto. Eu, que gostaria de reverenciar aqui o tour de force que foi a tradução de 'Extinção' do Thomas Bernhard feita por José Marcos Mariani de Macedo, que também traduziu, entre tantas outras coisas, magistralmente, 'O Naufrágio do Titanic' de Hans-Magnus Enzensberger.
Eu, que acho que toda tradução deveria ser tarefa de um grupo, se possível anônima, e sempre passível de um remake, não importando quem viesse a cometer o atrevimento. Eu, que me penitencio da ingenuidade do início, que sempre ri muito com a sugestão do grande escritor Uilcon Pereira, de que traduções deveriam sempre merecer penas bastante severas, em chibatadas talvez, como queria o seu humor carinhosamente ferino. Eu, o último dos frankfurtianos, o talvez inconveniente cronista de um momento vital para a cultura brasileira, quando a tradução se fez fetiche e alguns, como eu, passaram a traduzir direto do alemão.

Certa vez, um tradutor festejado, ao assumir o cargo de editor numa editora à qual prestei serviços, apresentou-se-me como um que só fazia traduções definitivas. Logo a seguir mostrou-me a que vinha e se perdeu nesse labirinto insano de vaidades e de pequenas malvadezas. Também, é preciso que se diga, num mercado editorial tão insipiente como é o nosso, não é difícil fazer coisas definitivas. Iluda-se, quem quiser, e salve-se, quem puder. A vida é muito breve. Não há razão para se buscar a eternidade assim com tanta antecedência. Ao trabalho.
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