Usina de Letras
Usina de Letras
158 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62213 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10356)

Erótico (13568)

Frases (50606)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140798)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Ensaios-->Razão e Paixão em "As Bacantes", de Eurípedes -- 02/08/2000 - 11:39 (Leonardo Almeida Filho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



'Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como uma feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte; só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto e o absurdo da existência em representações com as quais se pode viver: o sublime como domesticação artística do susto e o cômico como alívio artístico do nojo diante do absurdo.'
Nietzsche em 'O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música'.


1. INTRODUÇÃO

Aristófanes, em sua comédia 'As Rãs' encenada em 405 a.C., mesmo ano em que é representada 'As Bacantes', cristaliza poeticamente as críticas mais comuns que eram endereçadas ao poeta de 'Medéia'. Nessa comédia, 'As Rãs', encontramos no Hades uma disputa surrealista entre Ésquilo e Eurípedes pelo trono de rei da tragédia, disputa essa a ser mediada pelo próprio Dioniso. O resultado dessa querela literária é a preponderância do pensamento conservador de Aristófanes revelado pela vitória de Ésquilo, o poeta dos grandes temas e valores gregos, sobre o 'falastrão sofista' Eurípedes que ousou trazer para as ruas de Atenas, ao homem comum, as grandes tensões trágicas, banalizando a tragédia e dessacralizando o mito.

Ora, Aristófanes apenas usou de seu talento cômico para despejar críticas, no mais das vezes improcedentes, ao grande poeta trágico. É verdade quando o trata de inovador da arte trágica, é verdade quando o acusa de encenar as grandes paixões humanas, é verdade quando o aponta como hábil manipulador da palavra, sim, tudo isso é verdade, mas daí a caracterizá-lo como sofista, um incentivador da primazia da 'ratio', é simplesmente inadmissível.

Enquanto Ésquilo, grosso modo, faz de seu teatro a representação profundamente religiosa de um evento lendário e Sófocles, com seu antropocentrismo, apresenta já um distanciamento, com os deuses agindo pela voz dos oráculos e adivinhos, a tragédia de Eurípedes, como seria de se esperar, invade as ruas de Atenas. Que mais poderia um poeta maior como Eurípedes fazer senão inovar a tragédia que, em sua época, já era um gênero com maioridade definida, elevado à perfeição por Ésquilo e Sófocles ?

A acusação de que o poeta seria um porta-voz dos sofistas e portanto um manipulador das palavras no sentido pejorativo, merece uma breve discussão histórica e uma refutação concreta na própria obra de Eurípedes.

Na fase vital produtiva do poeta, Atenas fervilha com idéias as mais díspares, com novas formas de ver e pensar o mundo, e dentre elas há a preponderância das idéias de Protágoras e Górgias, sofistas. O ponto fulcral desses novos pensadores é a ruptura com a tradição em todos os setores da vida. Para eles tudo deve ser discutido racionalmente, não há mais espaço para exacerbações passionais. As normas da pólis devem surgir do pensar.

O mundo grego, não bárbaro, sai da tradição para a contradição (antinomias) e essa contradição é habilmente explorada pelos oradores sofistas que sustentavam ' a concentração do interesse filosófico no homem e em seus problemas' e 'a redução do conhecimento à opinião, e do bem à utilidade com o conseqüente reconhecimento da relatividade da verdade e dos valores morais, que mudariam conforme os lugares e os tempos;' (Dicionário de Filosofia, Abbagnano).

Nesse ponto confundem Eurípedes com os sofistas, veêm no frescor de seus trocadilhos e na habilidade sutil e refinada de sua técnica literária o exercício poético dos sofistas. Veêm assim que sua tragédia inovadora é menor que a de Sófocles e de Ésquilo. Não é por outro motivo que o poeta, em sua época, não alcança o mesmo apelo popular ou o mesmo sucesso nos concursos trágicos que seus antecessores. Não há como sustentar o argumento dos críticos de Eurípedes; não se constata em sua obra a suposta assepsia da paixão humana em nome de ideais de razão pura. Não há em suas tragédias a defesa do ideal socrático de 'conhecer para não errar', pelo contrário, Medéia e Penteu vêm desmentir essa linha de argumentação.

A análise de 'As Bacantes' mostra a surpresa que o texto carrega quando comparado com as obras anteriores do poeta. A tragédia foi escrita por Eurípedes já no final de sua vida e surpreende pela guinada formal e temática: a adoção de forma e tema 'arcaizantes', quando comparada ao ponto formal e temático em que o próprio Eurípedes havia deixado a tragédia.

O texto utilizado neste trabalho é a tradução para o português realizada por Mário da Gama Kury, presente no volume número 5 da coleção 'A Tragédia Grega', Jorge Zahar E., 1993.

2. RAZÃO VERSUS PAIXÃO EM 'AS BACANTES'

A peça é, junto com Ifigênia em Áulis, das últimas produzidas pelo poeta e foi representada pela primeira vez em 405 a.C., na Macedônia semi-bárbara. Trata da vingança de Dioniso contra o rei Penteu que proibira o culto ao Deus. O texto apresenta o Rei Penteu de Tebas em conflito com o culto a um novo deus que se infiltra na cidade (Dioniso). Na figura de Penteu está cristalizada a Pólis, o Estado. Ele, o rei, representa as razões do Estado e, mais que isso, a Razão pura, o equilíbrio, o comedimento. Penteu é o simulacro da religião oficial e aristocrática da Pólis (olímpica) cujos deuses não admitem qualquer desmedida dos mortais que venham a sequer sonhar com a imortalidade.

Dioniso por outro lado significa justamente a desmedida, a paixão desenfreada, os arroubos do pathos, o êxtase e, por conseqüência, a possibilidade de caminhos impensáveis pela razão, a serem trilhados por mortais. Deus do vinho, da embriaguez, da fertilidade e colheita, da orgia enquanto retorno ao caos, que por ser caos propicia a criação de novo cosmos.

Seria óbvio, não improcedente, caracterizar o texto como o conflito entre a religiosidade (ateísmo, teísmo) e a razão, porém esta análise segue por outro diverso caminho, o caminho subjacente ao texto. Eurípedes não era um poeta tão óbvio em seus textos que admitem várias camadas de interpretação. Dado o contexto sofístico da época e as polêmicas intermináveis entre sofistas e tradicionalistas, nas quais o poeta foi incluído, a análise da tensão conflitual no texto enriquece-se quando direcionada para a identificação das potências em conflito: Razão/Penteu versus Paixão/Dioniso.

Penteu, cujo nome significa 'dor/luto', motivo pelo qual Dioniso, no verso 664 lhe diz: 'teu nome te predestinou à desventura', incorpora todas as características inerentes à postura requerida aos habitantes da pólis. Ele é um fiel guardião dos deuses olímpicos, devoto dos deuses oficiais. Não é por outra razão que ironiza Dioniso: 'Existe lá um Zeus que é pai de novos deuses?' (verso 618).

Esse verso sintetiza o pensamento oficial em relação à Dioniso, o não reconhecimento de sua filiação olímpica. Dioniso, oriundo de cultos cretenses e bárbaros, nunca foi prazerosamente reconhecido como Deus helênico. Sobre esse assunto Albin Lesky nos esclarece:

'Antes de tudo, não se trata de um dos deuses olímpicos, de cunho homérico, cujo triunfo essa tragédia quisesse mostrar. No primeiro capítulo, já nos referimos ao fato de que a velha epopéia não podia, ou não queria, tomar muito conhecimento de Dioniso, nem foram seus poetas que o levaram ao coração dos homens, mas, em poderoso movimento, o seu culto arrastou o povo diretamente à maravilha do êxtase. E a esse Deus e a suas festas misteriosas, Eurípedes ficou conhecendo no norte macedônico, de maneira bem mais direta e em versão bem mais próxima da original, do que seria possível na Hélade civilizada.' (A Tragédia Grega, Lesky, Albin - p.227/228)

O próprio texto de 'As Bacantes' ratifica as palavras de Albin Lesky:

'Dioniso- Todos os bárbaros celebram seus mistérios.
Penteu- Mas nisto eles são menos cultos que nós, gregos.
Dioniso- A diferença talvez seja nos costumes;
em termos de esclarecimento eles vos vencem'
(versos 633/636)

'Coro - Nosso desejo é adotar também
a fé que a maioria das pessoas
mais simples recebeu e põe em prática.'
(versos 571/573)

O caráter eminentemente popular e tradicional do culto báquico é realçado pelo poeta na boca de Tirésias. Vale notar o recado direto de Eurípedes às idéias dominantes de sua época:

'Não temos pretensão quanto ao conhecimento
de tudo que é divino. Nenhum pensamento
afetará as tradições que recebemos
de nossos ancestrais, antigas como o tempo
e resistentes aos sutis raciocínios
dos cérebros sofísticos.'
(versos 253/258)

Ainda sobre a remota origem de Dioniso é o Coro que expõe:

'Não é difícil realmente crer
na onipotência de um poder supremo,
seja qual for a verdadeira origem
das divindades que desde os primórdios
e ao longo dos tempos imemoráveis
têm a força de lei entre os mortais
pois vem da natureza sua origem.'
(versos 1.166/1.173)

Penteu, no texto, combate a divindade em nome da moral e da decência gregas, ameaçadas que estão por um 'culto sórdido' (verso 297), 'um culto infame' (versos 340), 'novo mal para nossas mulheres, capaz de corrompê-las nos lares tebanos!' (versos 479/480).

Essa faceta moralista de Penteu é constantemente ressaltada pelo poeta; aliado a isso, Eurípedes explora o perfil preconceituoso do Estado/Penteu com relação aos cultos populares (dionisíacos). Tanto é assim que poeta descreve nos versos 881/897, na fala do primeiro mensageiro, as atividades das bacantes como uma total harmonia e paz, ao contrário do que inferia o preconceituoso rei. Elas, no alto monte, relata o mensageiro efetivando o contraponto necessário para evidenciar o viés de pensamento do rei, descansavam bucólicas 'e não como a descreves em tuas conversas,/ completamente embriagadas pelo vinho/ e pelo som das flautas doces, procurando/ discretamente a bela Cipres na floresta.' (versos 899/902).

Dioniso, nos versos 1.227/1.229, diz à Penteu:

'Considerar-me-ás o teu melhor amigo
quando notares, contra a tua expectativa
a castidade com que vivem as Bacantes.'

Dá-se aqui o fenômeno de quem julga preconceituosamente aquilo que não conhece ou que, conhecendo, o que é pior, julga também preconceituosamente numa atitude defensiva, por razões ideológicas, de classe social, politica ou culturalmente diferente.

Penteu assume então o papel de defensor do estabelecido; ele é, para Eurípedes, o representante das idéias reinantes no cenário intelectual de Atenas no século de Péricles, portanto, ele defenderá até a morte, e é o que ocorre, o reinado do logos, da moderação e do comedimento. Penteu é o defensor do 'medén ágan', nada em excesso. Ele simboliza as máximas: virtude é saber, só se peca por ignorância, o virtuoso é feliz. Ratificando o pensamento nietzscheano, o Penteu-otimista é a própria morte da tragédia e Eurípedes o utiliza para justamente combater o vírus socrático que contaminava, na época, os novos poetas.

Diametralmente opostos e poderosos são os personagens Dioniso e suas bacantes. Estas, integradas com o Deus através do êxtase e do entusiasmo, liberam-se de condicionamentos éticos, políticos e sociais.

'Dioniso, o deus-humano ou o homem-divino, representa na orgia o poder de deixar vir à tona o impulso animal, a força instintiva presente em cada indivíduo - devolvendo-o à pertença da Terra, diferenciando-se, assim, por estes dois elementos, de Cristo. Este Deus andrógino e erótico era ritualizado pelo vinho que, liberando a emoção, introduzia o iniciado nos mistérios órficos. Segundo os órficos, os homens nascem assinalados por uma tragédia : o crime cometido pelos Titãs contra o menino Dioniso. Para puni-los, Zeus enviou seu raio fulminante e das cinzas titânicas brotou a humanidade. Marcada por um embate entre luz e as trevas titânicas, a alma necessita de sua libertação' (Máscaras do Tempo, Beaini, Thais Curi - Vozes, p.385)

A ironia trágica permeia todo o texto de 'As Bacantes'. Imaginemos as dionisíacas de 405 a.C., ante vasto público, o poeta expõe ilustres damas tebanas (as filhas de Cadmo), vestidas de Bacantes, bêbadas e sensualmente liberadas, a desempenhar o papel de discípulas de um Deus bastardo.

Os rituais dionisíacos compreendiam, de uma maneira geral, a dança vertiginosa de seus discípulos, ébrios, em busca dos mistérios de Elêusis. Na realidade buscavam o êxtase, o sair de si, o superar a condição humana no mergulho cego em Baco. O culto báquico, portanto, implicava o afrouxamento da razão, a eliminação do logos, o libertar catártico do pathos, e nesse processo, o ser ultrapassaria a medida, a medida de cada um, tangenciaria assim a imortalidade, ao contrário de Penteu, tudo em excesso.

Em 'O nascimento da tragédia no Espírito da Música', Nietzsche nos fala:

'O embevecimento do estado dionisíaco, com seu aniquilamento das fronteiras e limites habituais da existência, contém com efeito, enquanto dura, um elemento letárgico, em que submerge tudo o que foi pessoalmente vivido no passado. Assim, por esse abismo de esquecimento, o mundo do cotidiano e a efetividade dionisíaca separam-se um do outro.'

O mundo apolíneo-ordenador de Penteu, a pólis e sua Razão, não coadunam com o séquito de Dioniso. O comedimento e a ponderação em Tebas estão ameaçados pelas Bacantes e agregados. A ameaça se configura na medida em que os discípulos de Zagreu/Baco/Dioniso tomando, através da inconsciência, consciência do terrível abismo da existência não se satisfazem mais com os valores cotidianos.

É ainda em Nietzsche que buscamos luz : 'Agora não prevalece nenhum consolo mais, a aspiração vai além de um mundo depois da morte, além dos próprios deuses; a existência, juntamente com seu reluzente espelhamento nos deuses ou em um Além imortal, é negada...'

Pinçamos a ratificação desse argumento no texto, em falas de Tirésias e do Coro, respectivamente:

'Além disso, Dioniso é um profeta
e assim os seus delírios são divinatórios;
por isso, quando ele penetra fortemente
em nosso corpo, embriagando-nos, revela
o que ainda está por vir.'
(versos 394/398)

'Seu encargo
é conduzir os coros sempre dóceis
ao som das flautas, para adormecer
nossos cuidados e acordar o riso
quando começa a cintilar o vinho
durante as comemorações sagradas
e enquanto nos cortejos adornamo-nos
com ramos de hera a taça serve o sono
aos convidados.'
(versos 514/522)


O embriagar-se, o adormecer e o acordar o riso têm significado de mudança de comportamento do ser. É o desvelar do que hoje chamamos subconsciente. É a quebra da consciência condicionada aos valores da razão e o aflorar do mais profundo do ser. Esse é o perigo que Dioniso representa para a pólis, para a Razão em voga.

Para enfatizar esse avançar o limite humano a partir dos rituais báquicos o poeta se utiliza da descrição de feitos assombrosos pelas Bacantes no Cíteron. Elas, iradas, são capazes de façanhas incríveis, dotadas de um vigor e força extremos devassam rebanhos e aldeias. A descrição é emocionante, realista e assustadora.

Eurípedes ratifica o seu pendor poético na composição de uma atmosfera de catástrofe (versos 969/1.020). Penteu reage assustado ante o relato desses fatos e, coerente com o seu papel de rei, traça planos para eliminar o perigo que ronda a cidade: 'Chegou a hora de lutar contra as Bacantes! / Seria realmente passar dos limites / da tolerância consentir que essas mulheres / nos envergonhem com o seu procedimento!' (versos 1.040/1.043).

O Dioniso de Eurípedes, um grande achado do poeta, utiliza os ardis sofísticos da palavra no embate com Penteu. Mais uma ironia do grande trágico, o deus da desmedida argumenta racionalmente sua defesa e é até acusado por Penteu de sofista (verso 640). A polêmica Penteu/Dioniso é exposta por minucioso lapidar literário. A esticomitia de Eurípedes em 'As Bacantes' repete a beleza da técnica antes utilizada magistralmente por Ésquilo em 'Antígona' e pelo próprio Eurípedes em 'Medéia'.

Penteu, o modelo literário da Razão, expõe em suas falas com Dioniso todos os motivos pelos quais a pólis e sua inteligência rejeitaram e rejeitavam o Deus estranho, usando para isso suas nobres prerrogativas e concluindo ditatorialmente : 'Tenho o direito de prender-te; sou o mais forte' (verso 661).

São notáveis os diálogos d 'As Bacantes', repletos de humor e ironia. Eurípedes, ouso crer, idoso, no crepúsculo de sua produtiva vida, consegue desfilar décadas de sua formação cultural e faz dessa tragédia sua profissão de fé. Ao contrário do que alguns críticos tentam afirmar, de que essa tragédia é uma palinódia do poeta do 'Hipólito', não vemos em um verso sequer a evidência de uma suposta retratação. Percebemos, isso sim, décadas de sabedoria refinada no balanço da existência de um ser maior, um ser-Eurípedes, um ser humano.

O velho poeta fala pela boca dos velhos Tirésias e Cadmo, revigorados pela conversão báquica. Eurípedes, renovado pelo ocaso de sua existência e pela antevisão do fim que é, na realidade, um novo começo, transmuta-se na figura do cego que tudo vê e do velho rei de Tebas. Conclamo Nietzsche em defesa de meu argumento:

'.., essa mesma lucidez que tem o poeta dramático quando se transforma em outros corpos, fala a partir deles e, contudo, sabe projetar essa transformação para o exterior, em versos escritos. O que o verso é aqui para o poeta é para o filósofo o pensar dialético: é deste que ele lança mão para fixar-se em seu enfeitiçamento, para petrificá-lo.' (A Filosofia na época trágica dos gregos - Nietzsche - Obras Incompletas, Os Pensadores, Nova Cultural, 1992.)

Vejamos no texto o que dizem Tirésias/ Cadmo/Eurípedes:

'Cadmo - pois quero de agora em diante, noite e dia
ferir o chão a todo instante com meu tirso.
Sinto-me tão feliz esquecendo a velhice!

Tirésias - Teu pensamento é igual ao meu, e como tu
volto a ser jovem e quero juntar-me aos coros.'
(versos 236/240)

O embate entre as potências das paixões humanas representadas por Penteu (equilíbrio, razão, comedimento, limites, ordem) e Dioniso (paixão, instinto, desregramento, excesso, caos) é resolvido de forma sanguinolenta e terrível. O desfecho da tragédia é pressentido a todo o momento, Tirésias não precisava ser um adivinho para captar sinais futuros da aniquilação de Penteu:

'Mas deves ter cuidado, Cadmo,
para que o rei Penteu não faça entrar o luto
em tua casa (não me inspira o dom profético;
os fatos falam e são bastante eloqüentes).
Estando louco, ele procede loucamente.'
(Versos 499/503)

Eurípedes lida com essa perspectiva unindo ironia e humor, antecedendo a brutalidade do final. Utiliza sua veia cômica para humilhar e ridicularizar o rei Penteu, arquétipo da medida como fundamento comportamental. Dioniso, valendo-se de seus poderes divinos, provoca demência, lapso racional ou, como queiram, cegueira momentânea da razão (Áte) no pobre filho de Agave e o faz vestir-se de mulher com o intuito de espionar as bacantes no alto monte.

Este trecho da tragédia destaca-se pelo que contém de burlesco e traz em si todo o veneno irônico de Eurípedes. O Deus, que já havia sido taxado por Penteu de 'efeminado' (verso 478), saboreia sua vingança primeira ao vesti-lo com o linho típico das mulheres e prepará-lo, como quem embebeda o peru para a ceia que se aproxima ,para o ritual sacrificial:

'Penteu - E eu, com quem pareço? Dou a impressão
de ser Inó ou a minha própria mãe, Agave ?

Dioniso- Vendo-te assim é como se eu tivesse ambas
diante de meus olhos. Mas houve descuido
em teu arranjo, pois está desfeito um cacho
de teus cabelos; deves pô-lo sob a mitra.

Penteu - Eu a tirei de seu lugar há pouco tempo
em meu delírio báquico lá no palácio.

Dioniso- Sendo eu o responsável por tua aparência,
devo repô-la em sua posição correta.
Vamos, Penteu! Apruma-te! Ergue a cabeça

Penteu - Agora erguê-la-ei como convém; penteia-me
mais a teu gosto, pois estou em tuas mãos.'
(versos 1.208/1.220)


2. O SACRIFÍCIO DE PENTEU

'Quando o poeta profere a palavra nomeadora, repete cerimonialmente o ato de trazer à luz uma essência, restaurando, no combate em que busca a palavra apropriada, o sacrifício primeiro do deus que, desmembrando seu corpo, ou contemplando, canta as essências.' (Máscaras do Tempo, p. 211)

A criação poética, fenômeno com o qual se deparavam cotidianamente os grandes trágicos, é um ritual onde a tensão entre os elementos racionais e passionais do indivíduo beiram o êxtase e a catarse.

Eurípedes, reconhecidamente um perfeccionista em seu ofício de poeta, se deparava, na busca pela melhor forma ou verso, com o velamento e o desvelamento das coisas que se dispunha a explorar e expor a seus contemporâneos. Em 'As Bacantes', como de resto em qualquer das grandes tragédias de Eurípedes, Sófocles e Ésquilo, nada é aleatório, nenhuma imagem é por acaso, nenhum verso é supérfluo. Daí por que nos questionarmos : Qual o sentido da morte grotesca de Penteu ? Seria apenas a vingança macabra e exemplar de um Deus mimado e sanguinário ? A resposta possível são respostas possíveis. Ater-me-ei na que interpretei como mais coerente com o mito báquico.

A morte do rei Penteu, perpetrada materialmente por sua mãe, Agave, tias e demais bacantes, inspirada e tramada minuciosamente por Dioniso, é na realidade um sacrifício ritual com toda a carga simbólica do mito dionisíaco; representa portanto um ato purificador, enquanto elimina o arquétipo da heresia (Penteu), e consagrador, pois sua finalidade específica é a reafirmação do sagrado (Dioniso/Baco).

O Coro, que é composto por discípulas fidelíssimas do deus Dioniso, nos versos 1.507/1.521, comemora e proclama a morte de Penteu:

'Dancemos todas em honra de Baco!
Celebremos aos gritos a derrota,
a desgraça do filho do dragão,
o rei Penteu, que usando ousadamente
os trajes femininos e empunhando
o santo tirso e até a varinha
- presságio de morte inevitável -
e precedido pelo touro sacro,
chegou aqui para ser imolado.
Ah! Numerosas Mênades cadméias !
Vosso exaltado canto triunfal
chega a seu termo com pranto e lamentos!
Nobre combate aquele em que no fim
se enlaça o corpo de um filho querido
com os braços megulhados em seu sangue!'

Destacamos os versos 'e precedido pelo touro sacro,/ chegou aqui para ser imolado.' Esses versos ratificam literalmente a proposição do sacrifício de Penteu quando tocam na imolação da vítima. O touro sacro é a representação zoomórfica de Dioniso cujo mito procede ser narrado sucintamente para compreensão do discurso argumentativo a ser empreendido a seguir.

De Zeus e da mortal Perséfone nasceu Zagreu, o primeiro Dioniso. Para protegê-lo de sua enciumada esposa Hera, Zeus confiou seu filho à guarda de Apolo e dos Curetes, que o criaram nas florestas do monte Parnaso. Hera, descobrindo o paradeiro do jovem, encarregou os Titãs de raptá-lo. Apesar das várias metamorfoses tentadas por Zagreu para escapar aos Titãs, estes o localizaram sob a forma de touro e o devoraram. Atena conseguiu salvar-lhe o coração que foi, numa das variantes do mito, engolido por Zeus antes de fecundar a mortal Sêmele, filha de Cadmo, que daria à luz Iaco, nome místico de Dioniso. Hera mais uma vez, tomada de ciúmes, provocou a morte de Sêmele fazendo com que esta pedisse a Zeus que se mostrasse em toda sua glória. Zeus, cumprindo o desejo da princesa, mostrou-se em luz e fogo, carbonizando-a. Recolheu então de seu ventre o fruto inacabado de seus amores e o implantou em sua própria coxa até que se completasse a gestação normal.

O que importa aqui destacar é a morte do primeiro Dioniso. Vê-se que o Deus é devorado pelos Titãs quando assumia a forma de um touro. Esse animal, já o dissemos, é a representação milenar do mito dionisíaco e as referências no texto são inúmeras.

Penteu, mentalmente confuso por influência de Dioniso, desvela a verdadeira natureza do Deus:

'Tenho a impressão de ver dois sóis e duas Tebas
com suas sete portas. Tu, que me conduzes,
agora te assemelhas a um touro bravo,
pois aos meus olhos aparecem grandes chifres
em tua fronte. Eras antes uma fera ?
Vejo-te como se fosses de fato um touro.'
(versos 1.199/1.204)


A visão turva do rei revela a existência de duas Tebas em uma só, aquela por ele representada em seu racionalismo apolíneo-ordenador, anti-Baco, e aquela onde o próprio Deus, irado e sedento de vingança, se deixa desvelar. Outra ocorrência da imagética taurina de Zagreu encontramos nos versos 789/799, neles Dioniso narra ao corifeu a tentativa vã de Penteu em acorrentá-lo:

'De fato, imaginando que me acorrentava,
ele não quis tocar em mim, sequer de leve,
tão grande era a certeza que em seu coração
lhe garantia que eu estava preso ali.
Ele encontrou um touro na cocheira escura
onde me aprisionara e fez um grande esforço
para imobilizar seus cascos e joelhos,
resfolegando sem parar, desatinado,
molhado de suor e mordendo seus lábios;
eu estava sentado, calmo, perto dele,
como se fosse apenas um espectador.'

A morte do primeiro Dioniso, despedaçado pelos Titãs, transfere-se, como um rito, para o despedaçamento do Rei Penteu. Do verso 1.464 a 1.491, Eurípedes narra com minúcias que fariam juz a um roteiro do cinema 'B' americano, na linha de 'Sexta-feira 13' ou 'Pesadelo em Elm Street', todo o sacrifício macabro da infeliz e herética figura do neto do rei Cadmo. Destacamos os versos 1.483/1.486:

'restos do corpo de Penteu; pedaços dele
jaziam em vários lugares entre as rochas
e até nos galhos altos de árvores frondosas,
de onde seria dificílimo tirá-los.'

Ora, assim como Zagreu, Penteu é devorado pelas Bacantes, cúmulo da ironia trágica, lideradas por sua própria mãe. E não é a toa que Agave é a portadora da morte do filho, não é só por castigo que protagonizará a fatalidade, mas, acima de tudo, Agave representa a eliminação do mal pela raiz. A genitora do mal/Penteu será a responsável por sua remissão.

Penteu é, nesse momento fatal, o cordeiro a ser imolado em honra ao deus humilhado, para resgate do sagrado representado pelo culto báquico. Seu despedaçamento significa o esfacelamento da unidade representada pela sedimentação do racional em detrimento da multiplicidade inerente ao ser. É necessário então o resgate dessa multiplicidade que caracterizaria o caos para, a partir do nada, do não ser, atingir o novo ser, a reordenação do caos num cosmo, o novo UM como diria Heráclito.


Nietzsche, em 'O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música', referindo-se à sorte de Zagreu, diz:

'...o que sugere esse despedaçamento, em que consiste propriamente a paixão dionisíaca, equivale a uma transformação em ar, água, terra e fogo, e que portanto temos de considerar o estado de individuação como fonte e o primeiro fundamento de todo sofrimento, como algo repudiável em si mesmo.'

Essa linha de análise do filósofo é perfeitamente coerente com o sacrifício de Penteu. Todo o processo final de 'As Bacantes' ratifica o eterno vir a ser, a morte como princípio e fim. Penteu, ao ser escolhido por Dioniso como vítima - seja por vingança ou castigo divino - cumprirá o papel de oferenda sacrificial:

'A essência do sacrifício requer, com efeito, para surgir no âmbito reflexivo, o exame dos efeitos do sacrifício, tanto do lado do objeto sacrificado, quanto do lado do sujeito sacrificante' (Máscaras do Tempo, p. 207)

Penteu, o objeto sacrificado, representa o estabelecido, a rejeição à divindade; o efeito de seu sacrifício é justamente a sua eliminação gloriosa na metáfora de Zagreu/Penteu e Titãs/Bacantes.

Dioniso homem (versos 81/83 - 'Com essa intenção apareci aqui / como se fosse um dos mortais e transformei / em corpo humano minha condição divina.'), sujeito sacrificante, representa o desejo humano de ligar-se, ou re-ligar-se, ao divino, e dessa forma renovar-se, continuamente desvelando as coisas.

'...a oferenda - uma vez destruída, extingue, intencionalmente, em si mesma, o fenômeno ou um determinado conjunto, evocado a priori, a que representa. Corrige assim, os elementos que se decompõem, restaurando-os do perigo iminente a que estão expostos todos os entes em declínio, dentre eles as pessoas que compartilham o mesmo espaço geográfico-histórico.' (Máscaras do Tempo, p.207)

Penteu-oferenda está, em pedaços, espalhado por árvores, rochas, terra de sua terra. Seu sangue ofertado à Dioniso purga suas heresias e as dos seus em Tebas. Ele agora é a ponte entre o sagrado (ver versos 1.402/1.403 - ' Enquanto ele falava uma chama divina / brilhou a certa altura unindo a terra ao céu') e a natureza, a terra.

Ainda citando o livro 'Máscaras do Tempo', temos na página 207: 'O traço distintivo da consagração no sacrifício é que a coisa consagrada serve de intermediária entre o sacrificante e a divindade a quem é, geralmente, dirigido.' Na sua hora final, Penteu foi Zagreu, seu oposto.


4. CONCLUSÃO


Heráclito, o obscuro, desvelou e revelou aos homens do seu e do nosso tempo que a verdadeira natureza das coisas está na tensão de opostos e que o conflito é o pai de todas elas. O pensador grego nos diz: 'Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, superambundância-fome; mas ele assume formas variadas, do mesmo modo que o fogo, quando misturado a arômatas, é denominado segundo os perfumes de cada um deles'

Coube aos grandes trágicos interpretarem o pensamento de Heráclito e revelarem, por sua vez, aos seus contemporâneos e a nós, a maravilha do reconhecimento da vida, apesar do horror que ela encerra. As grandes tragédias são testemunhos do monumental pensamento daqueles semi-deuses.

Eurípedes e suas 'Bacantes' surpreendem pelo vigor da poesia, pelo refinamento da palavra, pela esperança de vida, pela crença no homem. Ele canta no canto do Coro 'Consideramos bem-aventuradas/ as criaturas que sabem gozar/ toda a satisfação de cada dia!' (versos 1.187/1.189). O grande poeta construiu seu texto baseado na harmonia heraclítica, ou seja, a verdadeira harmonia cristalizada na tensão de potências opostas.

Essas potências, em 'As Bacantes', são representadas pela Razão pura de Penteu, e tudo aquilo inerente ao socrático 'saber é não errar', e a Paixão de Dioniso, com toda a desmedida e arroubos inerentes ao irracional, ao incontrolável. Essa tensão, que permeia cada verso do texto, resolve-se no sacrifício ritual do rei tebano, inspirado pelo Deus ofendido.

Mas se Dioniso sacia suas 'cadelas céleres da raiva' (verso 1.273), resgatando seu orgulho ferido e conferindo aos homens as dádivas de seu culto, persiste em Agave a recusa ao Deus.

Não há que se falar em retratação do poeta de 'As Fenícias'; retratar-se implica a existência anterior de algo que se rejeita, não há esse algo anterior na obra de Eurípedes, um poeta que erigiu suas obras na exploração das paixões mais profundas do homem, o homem harmonioso que traz em si, opostas e em equilibrado conflito, a razão e a paixão, Penteu e Dioniso, treva e luz.



BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola - Dicionário de Filosofia - tradução e revisão de Alfredo Bosi, 2.ed. - São Paulo : Mestre Jou , 1982.
BEAINI, Thais Curi - Máscaras do Tempo - Petrópolis: Vozes, 1995.
BRANDÃO, Junito de Souza - Teatro Grego: Tragédia e Comédia - 4.ed. Petrópolis:Vozes, 1983.
EURÍPEDES - Ifigência em Áulis; As Fenícias; As Bacantes; tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
LESKY, Albin - A Tragédia Grega - tradução de J.Guinsburg e outros - 2.ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1990.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm - Obras Incompletas - 5.ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores)
SOUZA, Eudoro de - Dioniso em Creta e outros ensaios : estudos de mitologia e filosofia da Grécia Antiga. São Paulo, Duas Cidades, 1973.
OS PRÉ-SOCRÁTICOS: fragmentos, doxografia e comentários; seleção de textos, supervisão e tradução de José Cavalcante de Souza - 5.ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1991 (Os Pensadores).

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui