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Ensaios-->Da tradução: da jukebox à vitrola de ficha -- 01/09/2000 - 21:00 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Enredo espetacular: na cabeça do tradutor, seqüências de filmes do cinema novo alemão, particularmente dos road-movies de Wim Wenders, confundem-se com a extensa cartografia do escritor austríaco Peter Handke, até desaguar, em plena Baixada Fluminense, na voz de Zeca Pagodinho

No pós-guerra, a Europa ocidental recebeu uma extensa lista de itens culturais de efeito avassalador: rock’n roll, bad boys, cowboys, blusões de couro, t-shirts, carrões, motocicletas e, principalmente, a televisão. O mundo dos objetos pipocava em cada esquina.

Quanto à jukebox, tendo-lhe adotado o uso incondicional e o kit(sch) correspondente em seu cotidiano e comportamento, os europeus não souberam como batizá-la em seus idiomas. Símbolo pop por excelência, nos filmes de Wenders e nas narrativas de Handke, a jukebox surge quase como um personagem.

Mediante a inserção de fichas, ela desfiava o repertório beat típico dos anos 60 e 70, que incluía 'Satisfaction' [Rolling Stones], 'Like a Rolling Stone' [Bob Dylan], 'Light my fire' [Doors], 'The house of the rising sun' [The Animals], Beatles, Mariane Faithfull, Credence Clearwater Revival e os Kinks, a dividir espaço com o mais desbragado kitsch alemão: o 'tiroleite' tirolês, bandinhas de Oktoberfest, baladas românticas, oldies & goldies, folias brejeiras folk & country, um mariacchi ruidoso aqui, um Ari Barroso acolá, una paloma blanca, uma mulé rendêra, uma Canzone per te na voz de um brasileiro tido como o Elvis latino-americano.

Nos anos 80, Handke escreveria uma narrativa chamada 'Ensaio sobre a jukebox'. De uma aldeia perdida ao norte da Espanha, atônito, o narrador assiste na TV à queda do Muro de Berlim. Pensava que fosse a realização do desejo utópico de um telespectador qualquer. Distante dos acontecimentos centrais, ele percorre aldeias perdidas, redutos caídos para fora da História, em busca da sua história pessoal, que se confunde com a de um dos objetos do seu mundo pop, a jukebox.

Desde que traduzi 'O medo do goleiro diante do pênalti', a primeira narrativa longa de Handke, passei a tropeçar na palavra inglesa que dá nome a esses aparelhos. Conhecia-os do meu flanar pela Alemanha e outros países da Europa central. Mas cá, entre nós, o que é mesmo uma jukebox?

Em Handke, vemos surgir, às vezes, uma variante: music box. Mas caixinha de música é o símbolo de uma outra cultura, de uma outra época.

Em Araraquara, onde há 17 anos cumpro uma existência de forasteiro, cheguei a conhecer uma. A única que havia? Ficava num dos botecos de um dos pedaços menos conceituados na cidade, num dos últimos redutos genuinamente boêmios que a cidade conheceu, entre os resquícios de uma vida que medrava ao longo das linhas e das estações ferroviárias.

Mas as vias férreas caíram em desuso. Por muito pouco, não desaparecem.


Ao passar defronte da estação, não tenho como não me lembrar de cidades européias por onde passei. Nice, no sul da França, é uma delas. Imagino que nela resista ainda o cenário que me ajuda a recompor uma Araraquara mítica, uma cidade que só me foi dado contemplar em ruínas.

[Para Peter Handke, o escritor conduz o seu barco sobre as águas de um lago e tenta adivinhar uma cidade submersa. O tradutor atravessa esse mesmo lago, mas já pode divisar as ruínas da cidade por sob a superfície da água.]

Uma fileira de casas antigas, descascadas, hotéis baratos, um que outro detalhe art nouveau fora de lugar, bares sebosos, rebordosas incríveis, compondo um como que bas fond araraquarense. Bem no centro da cidade.

Ali, com seu ruído característico e inesquecível no interior do aparelho, cada compacto simples era uma lágrima que rolava, um corpo que despencava, um boleraço daqueles tinindo no que restava daqueles tímpanos, trilha sonora de tragédia. Foi o final de uma época grandiosa. E que não terá tido o seu cronista?

Quantos souberam da resistência heróica daquela jukebox em meio a passageiros e funcionários da via férrea, entre bêbados, rufiões, prostitutas e um que outro forasteiro curioso, incapaz de medir os riscos a que expunha a própria pele?

Terminava um capítulo da história econômica do país. Nos últimos tempos, tão reiteradamente se aventa como se rejeita a idéia de desviar os trilhos que cruzam o centro da cidade, ou de criar um metrô de superfície. Alguns abnegados tentam arrancar a gloriosa equipe de futebol da Ferroviária da lenda em que se perdeu, num passado em que, rodeados por seus respectivos séquitos, Sartre e Simone de Beauvoir chegaram ou não chegaram a cruzar com Pelé na esplanada desaparecida.

Vigia ainda a história dos discos de vinil. Ah, saudosos LP’s, valorosos compactos duplos ou simples, quem haveria de dizer que tudo haveria de ser assim tão súbito?

Dia desses, num dos postos de abastecimento da cidade, com sua prestativa lojinha de conveniências, eis que me surge ante os olhos o que julgava impossível. Sim, ela mesma: a jukebox. Apenas, atualizada. Os compactos de vinil haviam cedido espaço ao charme brilhoso, à aura futurística dos CD’s.

Assim – um tradutor não descansa - tratei de dar continuidade a uma de minhas tantas pesquisas em andamento. Cada palavra desconhecida ou problemática acaba por ocupar-me os neurônios por tempo impossível de ser determinado. Antenas ligadísimas, alerta máximo, o tradutor é antes de tudo um obcecado. Quando a ocasião se lhe oferece, ei-la que ressurge incontinenti, a palavrilha aquela, a saltar para fora da caixa craniana, a impulsioná-lo em direção às migalhas de informação que ainda sobejem em mesa que já foi lauta.

Perguntei ao rapaz do balcão como aquilo se chamava. Não, ele não sabia. Mas era só meter ali uma ficha e escolher: sertanejo, pagode, axé. Tinha de um tudo. Que aproveitasse enquanto era tempo, pois o aparelho ali estava só de passagem. Era coisa da zona, sei lá. Iam levá-lo pra uma casa lá no Cristo.


O rapaz do balcão e o frentista me fizeram saber que a jukebox era 'coisa de zona', ultrapassada, talvez como o próprio meretrício e minhas jurássicas preocupações de tradutor e de cronista. Quem ainda hoje precisa de ir à zona? Só mesmo os exacerbadamente românticos, só mesmo os sentimentais incuráveis.

Em Salvador, conta-se, e haverá quem nos conteste, o meretrício fixara domicílio na Rua Padre Manuel da Nóbrega. Idos tempos. E, de tanto existir, a placa fora se apagando. Já não se liam mais que as duas últimas sílabas do venerando sobrenome. Cunhou-se uma expressão: 'eu vou no brega'.

Concluo: nada mais 'brega' do que uma jukebox. Mas se o aparelho teve o destino que teve, o nome estrangeiro teria sobrevivido naquele ambiente, por assim dizer, sócio-lingüístico? Não se lhe teria pespegado um apelido que fosse?

Em Portugal, tanto quanto sei, o vocábulo inglês até mui recentemente era de uso corrente. Desconheço se outras providências terão sido tomadas. Sabe-se lá se, por lá, a jukebox ainda hoje resiste. Na zona que seja.

Entre nós, eu não suspeitava de que ela tivesse chegado, e muito bem, ao falar da maladragem carioca. Para sabê-lo, foi preciso acatar sugestão de um amigo esteticamente refinado, que me fez abrir o espírito para as obras completas de Zeca Pagodinho.

Na cidade, o pagode é sabidamente detestado por quem não o pratica. Aqui, tanto pagode houve durante certo tempo, que acharam de inventar o epíteto controverso: 'Araraquara, a capital do pagode'. Muito antes de ter ocupado todos os desvãos do imaginário visual e auditivo verde-amarelo, o pagode por aqui tanto já vivera a sua glória, como amealhara rejeições.

A Funeral, uma banda de rock punk que cumpriu o feito de classificar-se entre as dez melhores do país numa das versões do festival Skol Rock, consagrou entre seus fãs locais e nas apresentações do festival, em 1996, um hit hilário e insuperável: 'Pau no cu do pagode'.

Henrique Punk, o vocalista, que me ajudou a criar Oxouzine em 97, não me perdoava, na época, pela insuportável conversão ao humor e ao balanço do grande Zeca Pagodinho. Não era apenas uma questão de gostar ou não gostar, eu explicava. Era, isto sim, uma questão de sobrevivência cultural. Impossível dar conta da vida e da língua brasileiras sem ouvir os nossos melhores artistas populares.

Mas nem eu mesmo, essa é a verdade, conseguia me convencer por inteiro disso que era mais uma intuição do que uma certeza: a língua portuguesa tem um dos seus melhores pontos de chegada, em termos de Brasil, em artistas, como Zeca Pagodinho. E nem eu mesmo esperava pela súbita confirmação, na prática, da minha acanhada explicação teórica.

Mas eis que um belo dia, ao ouvir um de seus registros, eu me deparo com a tradução que tanto buscara, e que já nem sonhava encontrar para a palavra jukebox. Aconteceu. Estava ali, e vinha da boca do artista, e minhas orelhas registravam, para sempre: vitrola de ficha. Convenhamos, uma realização fantástica e invejável. Plasticamente irretocável, ela dá conta da função e do funcionamento do aparelho.

Não caberia, é claro, nas traduções das narrativas de Peter Handke. Mas essa já é uma outra história.


Da jukebox à vitrola de ficha, é todo um percurso a ser realizado pelo tradutor, e que nem sempre passa pelos dicionários.

A primeira obra que traduzi, o Ensaio sobre a Puberdade de Hubert Fichte, havia sido recusada por três outros tradutores, por conta dos jargões específicos ali contemplados: junkies, traficantes, michês, prostitutas, gueto homossexual, a cena do couro, gente de teatro, era um mundo inteiro só de minorias. Ali, todos eles sabiam, não se iam encontrar as palavras propriamente “em estado de dicionário”.

Eu estaria adentrando não apenas 'o reino das palavras', eu sabia. Teria de contar com a ajuda de muitas vozes, de percorrer os lugares, de falar com as pessoas, de observar cada conversa, cada detalhe, cada tom de voz. Iria precisar de alguns excelentes informantes.

Deixei passar, certa vez, a oportunidade de trabalhar com Laura Draghi, a tradutora italiana de Monteiro Lobato, instalando-me em Florença para cumprir a função de um dicionário vivo, como me disseram. 'Agachar', por exemplo, está nos dicionários, explicavam, mas vai ter de fazer para que ela entenda.

De pronto, passei a calcular todos os possíveis desdobramentos no cumprimento da tarefa. Certos verbetes podem exigir demais de um dicionário vivo. Mas, naquele momento, eu já estava a caminho de Paris. Hoje lamento e não lamento ter trocado a promissora profissão de dicionário vivo pelas aventuras nos palcos do Quartier Latin.

Muitas vezes, mais do que dicionários ou dicionários vivos, vale a intuição. No livro de Hubert Fichte, quando o narrador descreve o que vê no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em Salvador, vamos saber que ali 'os mortos são enterrados em caixões de maravalhas'. Foi assim que eu preferi, por ter achado a palavra 'maravalhas' mais interessante do que 'pó de serra' ou 'serragem', 'raspas' ou 'aparas de madeira', que eu já conhecia.

Algum tempo depois, o livro publicado, fui à Bahia e quis visitar aquele cenário brasileiro descrito por um alemão e por mim reinventado na medida do impossível. O Instituto, na ocasião, passava por reformas. Havia raspas de madeira por toda parte. A uma senhora, que varria um dos cômodos, eu perguntei como aquilo se chamava. Com sotaque inconfundível, ela não fez senão confirmar o acerto da minha escolha: 'Maravalhas'.

Traduzir é 'lutar com palavras', correria insana atrás do indizível. O tradutor é antes de tudo um esbaforido, um monomaníaco, a perguntar a tantas e quantas pessoas pelo sentido ou pelo nome das coisas, e mui raro em raro apenas, como no percurso que vai da jukebox à vitrola de ficha, por alguma das inesperadas mágicas do destino, foge de ser, como queria o poeta, apenas uma 'luta vã'.

Da jukebox à vitrola de ficha é um longo e duro percurso, e que nem sempre passa pelos dicionários. Antenas ligadas, o tradutor é um forasteiro assumido, a contemplar o mundo como se ele não fosse a sua casa; um ser à espreita do que ainda não é; alguém que consegue divisar, no fundo mais fundo das águas de um lago, as ruínas da cidade.

Da jukebox à vitrola de ficha, façanha entre façanhas, algum poeta anônimo, algum popular, algum bebum subitamente iluminado, um pagodeiro da Baixada Fluminense terá completado a travessia.
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