Nossas queixas matinais diárias são sempre as mesmas, o caos no trânsito. Nem bem o dia acorda para que o asfalto da cidade sinta-se atormentado por carros apressados e estridentes buzinas como num recital desafinado e mal humorado praguejando a alvorada, o amanhecer. Uma cena nada cultural porém repleta de sutis aprendizados, quadros corriqueiros de pintura arredia, músicas e páginas descontroladas para os olhos e ouvidos. Trânsito engarrafado! ... o habitual bom dia.
Quem me dera se fossem apenas engarrafamentos de carros, caminhões, ônibus.
Ultimamente vejo até corações condenados pelo trânsito. Corações de todas as cores, formatos, anos, marcas, procedências e destinos diferentes sendo controlados por sinais vermelhos, verdes e amarelos, placas de siga ou pare, direita ou esquerda. Corações buzinando e pedindo passagem na árdua tentativa de prosseguir e sabe-se Deus para onde.
Se não fosse o bastante observo corações tontos e atormentados pelos cruzamentos das vias expressas. Uns querendo ir enquanto outros voltam, uns cansados e cabisbaixos sem a mínima idéia de direção ou de trajeto que possa ser menos complicado, sem ondulações na pista. Alguns em marcha lenta quase parando, sem falar dos mais agitados que chegam a causar calafrios e espanto. Estes então atropelam corações alheios sem pedir licença.
Existem ainda aqueles que ficam afunilados nas avenidas da vida temendo constantes arranhões e mágoas profundas em suas latarias. É preocupante sair de casa e ter que voltar sem alguns pedaços. Ontem mesmo eu vi um coração caído no encostamento de uma alto estrada aguardando socorro dos anjos e dos homens, enquanto curiosos passavam observando-o a distância. Estava ele lá, lamentando e sentindo suas dores na expectativa da perícia técnica. Para tudo isso exige muito tempo e paciência, quiçá rezas sucessivas. Disseram -me que ele havia sido atingido por um mais velho, do tipo esperto, boa pinta e sem qualquer compaixão. Depois do mal feito o coração infrator acabou fugindo apressado sem prestar auxílio à vítima, o que nos faz pensar em prováveis e novos acidentes pela frente.
Sem falar do combustível adulterado oferecido aos corações. Um só grão de impureza causa danosos ou mesmo irreversíveis entupimentos, estragos, hiperaquecimento e até pane geral no motor que os sustenta - o amor. Pobre coração, precisará de consertos que podem ser de custo elevado e exigir a descapitalização do seu proprietário
Mais adiante um outro coração trazia uma expressão de desânimo e desalento. Enguiçado na esquina de uma rua movimentada onde muitos outros circulavam e ele ali parado por falta de água e óleo como se não houvesse sido batizado. Será muito complicado cuidar de um coração?
Roubaram um coração bem na minha frente!... Que horror!! Meus Deus, haja tranca, alarme e cadeado. No auge do verão eles precisaram morrer sufocados pelos vidros fechados ou pagar mais caro por um aparelho de ar refrigerado. Os ladrões e seqüestradores andam cada vez mais violentos.
Solução?... Talvez não há. Acabo de blindar o meu. Adeus liberdade para amar.