Eu morava num bairro periférico, cerceado por uns morros ou fazendas. Como se não bastasse, eu morava numa rua de encosta, uma rua sem saída e onde o asfalto terminava no chão e nos pés da porteira de uma fazenda morta. E apertado nos escanteios dessa existência, por fim, minha casa era a última das últimas daquela rua mofina. Sem mistérios, o muro da esquerda dividia aquilo que era propriedade de minha família, daquilo que era um curral de poucos bois magros.
Nessa época em que a chuva levantava o dor de couro molhado e de lama e estrume, a vida me alimentava com pouca diversão. Na escola, mal sabia eu ler, conquanto pudesse escrever uns sentimentos vilipendiados. Coisas que mais tarde aflorariam nesse corpo, antes, fraco e de anêmico olhar. Olhar este que se encantou numa tarde de inverno. Algumas crianças, bobas como eu, talvez espertas só no agir, cochichavam perto de uma barranco, não sei o quê.
Aproximei-me indistinto num cumprimento minúsculo de algumas cabeças conhecidas que faziam parte daquela roda. Era fato que eu não era íntimo de nenhum deles, e que o que me levava a uma aproximação tinha como causa comum o ajuntamento de todas aquelas infantilidades em desencanto. Todos estávamos de bobeira, impressionados com tanta beleza e tanta grandeza. Realmente admirável! encantatório e legítimo de uma cubada longa. Ninguém sabia entre tantas bocas, de onde viera aquilo que metia medo e encanto.
Era pois, acreditem vocês, um enorme e colossal ônibus. Crescido vocês entre viagens de fim de ano, no meio da cidade, por onde os carros estão em constante trânsito, podem até achar o fato de uma desimportância qualquer. Não é este o caso, visto que a realidade nossa era filtrada entre aquilo que a televisão nos mostrava e aquilo que chegava a pés e botinas na rua em que morávamos.
A máquina era realmente de uma beleza e robustez nunca assim presenciada por aquelas redondezas. Enormes pneus, janelas enormes, vidros pretos, limpos e brilhantes como tinta fresca sobre aço polido. E daquelas pingadas criancinhas não houvesse, ninguém mesmo, que testemunha fosse da chegada do tal ônibus.
Caso que mal nos conhecíamos, forma de quê depois de aqui e ali, perguntas, coincidências, descobrimos que nenhum de nossos pais era por assim dizer um motorista. Postos os relatos, acabamos nos deliciando em saber que mamãe de todos cuidava da casa e que papai, entre tantos pais, se cansavam e se sujavam no mesmo trabalho, a mesma indústria que vestia os homens e os céus de um cinza familiar. Razão de termos nascido sob este céu igual quase todos os dias e fechado como acostumados acabamos a ficar.
A tarde sumindo e o frio vindo foi nos despertar para aquilo que já era noite crescente. As pernas roçavam uma na outra pra espantar mosquitos, pernilongos aos monte, e ali, numa rua em que só se via nós, incucados queríamos revelar os mistério daquela adormecida máquina monstruosa. Ficamos na espreita cobertos de sua própria sombra que se fazia. E nessa penumbra feita, nossos olhinhos se pareciam tanto que os causos que quando apareciam, assustavam-nos igualmente.
Começamos a ter impressões diversas, e como fosse escuro os vidros, e como nossos olhos por eles nada via, caímos na invencionice de que lá, de dentro, algo estava a nos espiar. Ai meu Deus, ali no breu daquele beco, entre o ônibus e o barranco, foi que Lucinha segurou minha mão, meu ante-braço, uma parte de mim. E tonto, quase caí sobre sua beleza de menina amedrontada. E aos pulos meu coração foi se acalmando ... acalmando ... se amando de todo. E esse foi o primeiro dia mais feliz de minha vida.
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