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Artigos-->rfubem alves -- 18/07/2011 - 11:39 (Marcelino Rodriguez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


 



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2


COLEÇÃO ARCO DO TEMPO Consultoria de Alzira


M. Cohen


MEDITAÇÃO - Pam e Gordon Smith


VOLTA AO LAR - John Bradshaw


A CRIAÇÃO DO AMOR - John Bradshaw


QUÍRON E A JORNADA EM BUSCA DA CURA - Melanie Reinhart


PAZ A CADA PASSO - Thich Nhat Hanh


VIVENDO BUDA, VIVENDO CRISTO - Thich Nhat Hanh


O NOVO DESPERTAR DA DEUSA - Org. Shirley Nicholson, vários


autores


AS PLANTAS E SUA MAGIA -Jacques Brosse &
39;


ANJOS E EXTRATERRESTRES - Keith Thompson


A MENTE HOLOTRÓPICA - Stanislav Grof


MULHERES QUE CORREM COM OS LOBOS - Clarissa Pinkola Estes


AS CARTAS DO CAMINHO SAGRADO - Jamie Sarns


PLANETAS DE SOMBRA E DE LUZ - Irene Andrieu


JOGOS EXTREMOS DO ESPÍRITO - Mimiz Sodré


MÍSTICA E ESPIRITUALIDADE - Leonardo Boffe Frei Betlo


CORPO SEM IDADE, MENTE SEM FRONTEIRAS - Deepak Chopra


O CAMINHO DO MAGO - Deepak Chopra


DIGESTÃO PERFEITA - Deepak Chopra


ENERGIA ILIMITADA - Deepak Chopra


DOMINANDO O VÍCIO - Deepak Chopra


SONO TRANQUILO - Deepak Chopra


PESO PERFEITO - Deepak Chopra


AS VIDAS DE CHICO XAVIER - Mareei Souto Maior


O LIVRO DO PERDÃO - Robin Casarjian


MENSAGEM DO OUTRO LADO DO MUNDO - Marlo Morgan


UM MUNDO ESPERANDO PARA NASCER - M. Scott Peck


O VALOR DA MULHER - Marianne Williamson


A CURA E A MENTE - BUI Moyers


RUMO AO PONTO ÔMEGA - Kenneth Ring


CURA ESPONTÂNEA -Andrew Weil


SAÚDE IDEAL EM 8 SEMANAS - Andrew Weil


DONS DA GRAÇA - Lone Jensen


SEDE DE PLENITUDE - Christina Grof


PORTAIS SECRETOS - Nilton Bonder


REIKJ - Brigitte Miiller & Horst H. Gimther


MILAGRES DO DIA A DIA - David Spangler


A SABEDORIA DO PAPA - Matthew E. Bunson (compilação)


CESTAS SAGRADAS - Phil Jackson & Hugh Delehanty


ESPERANÇA DIANTE DA MORTE - Christine Longaker


A SABEDORIA DO CORPO - Sherwin B. Nuland


3


O ESPÍRITO DE TONY DE MELLO - John Callanan. S.J.


SEU SEXTO SENTIDO - Bellerulh Naparstek


FENG SHUI - Maria Margarida Baldanzi


REFUGIO PARA O ESPÍRITO - / ictoria Moran


D E E P A K C H O P R A


0 CAMINHO


DO


MAGO


Vinte lições espirituais


para você criar a vida


que deseja


Tradução de CLÁUDIA GERPE DUARTE


Rocco


Rio de Janeiro- 1999


4


Titulo original


THE WAY OF THE WIZARD


Twenty spiritual lessons for


creating the life you want


Copyright © 1995 by Deepak Chopra, M.D.


Esta tradução foi publicada com a autorização da Harmony


Books, a division of Crown Publishers, Inc., New York


Direitos mundiais para a língua portuguesa


reservados com exclusividade à


EDITORA ROCCO LTDA. Rua Rodrigo Silva,


26 — 5- andar 20011-040 - Rio de Janeiro - RJ


Tel.: 507-2000 - Fax: 507-2244


Prínted in /íraz/7/Impresso no Brasil


preparação de originais ELISABETH


LISSOVSKY


CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional


dos Editores de Livros, RJ.


M47


6c


Chopra, Deepak


O caminho do mago : vinte


criar a vida que deseja / Deepak


Cláudia Gerpe Duarte. — Rio de


(Arco do Tempo)


Consultoria da coleção:


TraduAçlzãior ad eM: .T Choeh wenay of the


lewssioznarsd f o: rt wcreenattyin sgp itrhiteu laifl e you


wa1n. tV ida espiritual. 2.


TíEtuxleor. cícios espirituais. I.


CDD - 242


96-


0999


CDU - 242


5


AGRADECIMENTOS


Gostaria de expressar meu amor e minha gratidão às seguintes


pessoas:


Em primeiro lugar a meu velho amigo, guia e editor, Peter


Guzzardi. Peter, você é o máximo!


E a minha família na Harmony Books, Shaye Areheart, Patty


Eddy, Tina Constable, Leslie Meredith, Chip Gibson e Michelle


Sidrane.


Rita Chopra, Mallika Chopra e Gautama Chopra por serem a


expressão viva dos princípios deste livro.


A todos os meus amigos na Corte de Milagres (Infinite


Possibilities International), Ray Chambers, Gayle Rose, Adrianna


Nienow, David Simon, George Harrison, Olívia Harrison,Naomi Judd,


Demi Moore, Alice Walton, Donna Karan, Irmã Judian Breitenbach,


Lewis Katz, Olivia Newton-John e BilIElkus por sua coragem e


envolvimento com uma visão que está além de todas as limitações.


Roger Gabriel, Brent Becvar, Rose Bueno-Murphy e a toda minha


equipe no Sharp Center for Mind-Body Medicine por servirem de


inspiração a todos os nossos hóspedes e pacientes.


Deepak Singh, Geeta Singh e a toda minha equipe na Quantum


Publications por sua infatigável energia e dedicação.


Muriel Nellis por sua intenção inflexível de manter o mais


elevado nível de integridade em todos os nossos empreendimentos.


6


Richard Perl por ser um exemplo tão magnífico de recomendação


pessoal.


Arielle Ford por sua fé inabalável no autoconhecimento, seu


entusiasmo contagiante e seu compromisso de transformar a vida de


um número tão grande de pessoas.


E Janet Stein, Linda Grey, Lynda Guber, Suzanne Todd e Charles


Weingarten por sua calorosa amizade.


7


P R I M E I R A P A R T E


PENETRANDO O


MUNDO DO MAGO


8


As pessoas querem saber por que motivo eu, que nasci na índia,


tenho tanto interesse por magos. Eis a minha resposta: na índia


ainda acreditamos na existência de magos. O que é um mago? Não é


alguém que simplesmente pode fazer mágicas, mas alguém capaz de


causar transformações.


Um mago pode transformar o medo em alegria, a frustração


em realização.


Um mago pode transformar o temporal no intemporal.


O mago pode levá-lo além das limitações em direção ao


ilimitado.


Durante minha infância na índia, eu sabia que tudo isso era


verdade. Às vezes homens velhos vestindo trajes brancos e sandálias


vinham até nossa casa, e até mesmo para um menino de olhar


arregalado eles pareciam criaturas muito especiais. Sua paz era


completa; eles emanavam amor e alegria; os altos e baixos agitados


da vida cotidiana não pareciam afetá-los. Nós os chamávamos de


gurus ou conselheiros espirituais. Mas levei muito tempo para


perceber que os gurus e os magos são a mesma coisa. Toda


sociedade tem seus mestres, videntes e curadores; guru era apenas a


palavra que usávamos para designar aqueles que possuíam


sabedoria espiritual.


No ocidente, o mago é basicamente considerado um mágico que


pratica a alquimia, transformando metais não preciosos em ouro. A


alquimia também existe na índia (na verdade, ela foi


9


inventada lá), mas a palavra alquimia é na realidade um código. Ela


é um símbolo para a transformação dos seres humanos em ouro,


para a transformação das nossas qualidades inferiores de medo,


ignorância, ódio e vergonha naquilo que existe de mais precioso:


amor e realização. Portanto, um mestre que consiga ensinar-lhe


como se transformar numa pessoa livre e amorosa é, por definição,


um alquimista — e sempre o foi.


Ao ingressar na escola secundária em Nova Deli, eu já sabia


muitas coisas a respeito do mais famoso mago da tradição ocidental,


Merlim. Como todo mundo, eu me apaixonei imediatamente por ele.


Logo todo o mundo dele se abriu. Ainda sei de cor dezenas de


estrofes do poema épico de Tennyson, Idylls of the King, que nos


faziam decorar naquela época nos longos e quentes dias de aula.


Devorei todas as outras fontes de literatura arturiana a que consegui


ter acesso. Não me parecia estranho saber tudo a respeito do suave


e pálido Camelot embora eu vivesse debaixo de um ardente sol


tropical, que eu quisesse cavalgar como Lancelot, embora eu


certamente tivesse sufocado na armadura, ou que a gruta de cristal


de Merlim realmente existisse, embora todos os autores garantissem


que os magos eram figuras míticas.


Eu sabia que essa afirmação não era verdadeira, porque eu era


um menino indiano e havia estado com eles.


POR QUE PRECISAMOS DOS MAGOS


Venho pensando há trinta anos sobre o conhecimento do mago.


Viajei para Glastonbury e para o West Country, escalei o Tor e vi a


montanha onde Artur e seus cavaleiros estão supostamente


adormecidos. Mas algo mais místico, a necessidade de transformação,


continua a me puxar de volta para a magia. Em cada ano eu


sentia que nossa época precisa mais do que nunca desse


conhecimento. Agora que sou adulto, passo minhas horas de


trabalho falando e escrevendo a respeito de como podemos alcançar


uma completa liberdade e realização. Só percebi recentemente que


na verdade estou falando sobre alquimia.


10


Cheguei finalmente à conclusão de que uma maneira estimulante


de abordar esse tópico seria através de um dos relacionamentos mais


extraordinários já registrados, ou seja, aquele entre Merlim e o


menino Artur na gruta de cristal. Neste livro, a gruta de cristal é um


lugar privilegiado dentro do coração humano. É o refúgio de


segurança onde uma voz sábia não conhece o medo, onde o turbilhão


do mundo exterior não consegue penetrar. Sempre existiu e sempre


existirá um mago na gruta de cristal — tudo que você tem a fazer é


entrar e escutar.


As pessoas de hoje vivem no mundo do mago tanto quanto as


antigas gerações. Joseph Campbell, o grande mestre da mitologia,


afirmou que qualquer pessoa que esteja numa esquina esperando o


sinal abrir está esperando para ingressar no mundo de feitos


heróicos e ações míticas. Nós simplesmente não percebemos a


oportunidade que se nos apresenta. Atravessamos a rua sem


perceber a espada cravada na pedra sobre o meio-fio.


A jornada em direção ao milagroso principia aqui. O melhor


momento para começar é agora. O caminho do mago não existe no


tempo — ele está simultaneamente em todos os lugares e em lugar


nenhum. Ele pertence a todos e a ninguém. Portanto, este é um livro


que o ensina a recuperar o que já é seu. Como diz a primeira frase


da primeira lição:


Existe um mago dentro de cada um de nós. Esse mago


tudo vê e tudo sabe.


Esta é a única frase do livro que você terá que aceitar como um


axioma. Assim que você descobrir o mago interior, o ensinamento


prosseguirá por si mesmo. Durante muitos anos esse tipo de


aprendizado espontâneo tem sido o centro da minha vida cotidiana,


no qual eu observo e espero o que o guia interior tem a dizer.


Nenhum outro tipo de aprendizado é tão fascinante. Já ouvi Merlim


falar num riso que escutei por acaso no aeroporto, nas árvores


sussurrantes durante um passeio pela praia, até mesmo na minha


televisão. Uma estação rodoviária pode se transformar na gruta de


cristal se você estiver receptivo.


Por que precisamos do caminho do mago? Precisamos dele para


poder abandonar o trivial e o monótono e avançar em


11


direção ao tipo de significado que temos a tendência de relegar ao


mito mas que, na verdade, está bem ao nosso alcance, aqui e agora.


Estar vivo significa conquistar o direito de dizer tudo que quisermos,


ser quem quisermos e fazer o que quisermos. Camelot foi um


símbolo desse tipo de liberdade. É por isso que o contemplamos com


tanta avidez e admiração. A vida tem sido difícil a partir de então.


Um discípulo procurou certa vez um grande mestre e perguntou:


"Por que me sinto tão contido por dentro, como se eu quisesse


gritar?" O mestre olhou para ele e respondeu: "Porque todo mundo


se sente assim."


Todos queremos expandir nosso amor e nossa criatividade,


explorar nossa natureza espiritual, mas com frequência não


alcançamos nosso objetivo. Nós nos trancamos em nossas prisões


particulares. Algumas pessoas, contudo, conseguiram se libertar dos


confins que tornam a vida tão limitada. Ouçamos o poeta persa


Rumi, que diz: "Você é o espírito incondicionado preso nas


condições, como o sol num eclipse."


Essa é a voz de um mago, que não aceita que os seres humanos


estejam limitados no tempo e no espaço. Estamos apenas


temporariamente num eclipse. O objetivo de aprendermos com um


mago é encontrar o mago interior. Ao encontrar o guia interior, você


encontra a si mesmo. O eu é o sol que brilha eternamente, mas que


pode estar passando por um eclipse; tão logo desaparecem as


sombras, o sol simplesmente volta a resplandecer em toda a sua


glória.


COMO APRENDER COM O MAGO


Este livro contém vinte lições, cada uma narrada a partir do ponto


de vista do mago. No início de cada uma você vai encontrar alguns


aforismos, fragmentos penetrantes da sabedoria do mago que se


destinam a ajudá-lo a transcender a realidade ordinária. Leia cada


um deles e deixe que ele cale em seu espírito. Não fique esperando


um resultado, permita-se apenas passar pela experiência. Você não


precisa trabalhar nem se


12


esforçar. Esforçar-se é como debater-se para sair da areia movediça


— só faz com que você afunde mais ainda.


O mago interior deseja falar, e isso é verdade para todos nós. Mas


o mago precisa de uma chance, de uma abertura. A semelhança dos


koans Zen, os aforismos fornecem essa abertura por provocarem


uma mudança na percepção, capaz de produzir uma mudança na


realidade pessoal.


A voz do mago precisa ser trazida de volta para a vida cotidiana.


Já citei a primeira sentença da primeira lição: Existe um mago


dentro de cada um de nós. Esse mago tudo vê e tudo sabe. Eis o


restante da lição:


< O mago está além dos opostos da luz e das trevas, do bem e


do mal, do prazer e da dor.


Tudo que o mago vê tem suas raízes no mundo


invisível.


A natureza reflete o estado de alma do mago.


O corpo e a mente podem adormecer, mas o mago


está sempre desperto.


O mago possui o segredo da imortalidade


Se essas palavras o fazem vibrar levemente, lhe dão um arrepio


de reconhecimento, elas cumpriram seu propósito. É de fato


emocionante descobrir que não somos seres limitados e sim filhos do


milagroso. Essa é a verdade, o fato único e profundo a respeito de


cada um de nós que tem estado encoberto por um tempo


excessivamente longo.


Reuni cerca de cem desses provérbios, que são ilustrados por


histórias do mundo de Merlim e Artur. Não são fragmentos das


antigas lendas e sim parábolas que inseri naquela época. Às vezes a


história ilustrativa não parece se encaixar exatamente, ou com


perfeita lógica, nos aforismos. Isso fói feito deliberadamente, porque


a mente linear, que tem a necessidade de criar a ordem, não é a


única parte do seu ser que vai percorrer o caminho do mago. Você


vai percorrê-lo na imaginação, na esperança, na criatividade e no


amor.


13


Em resumo, o caminho do mago é o caminho do espírito. Mas ele


não é espiritualmente oposto à racionalidade; ele é a estrutura mais


ampla na qual a razão se encaixa, uma peça entre muitas. Para


dirigir-me à mente linear, incluí uma seção chamada


"Compreendendo a Lição", que serve de base aos aforismos e às


histórias. Cada lição se encerra com a seção "Vivendo com a Lição",


na qual eu o ajudo a deixar que a sabedoria do mago embrenhe-se na


sua experiência pessoal.


"Vivendo com a Lição" é a parte ativa do caminho do mago.


Minhas sugestões são simplesmente um início, uma maneira de


desencadear sua participação. Em última análise, o que vai modificar


sua realidade é o seu entendimento. "Vivendo com a Lição" contém


alguns exercícios que podem parecer passivos porque quase todos


são experiências de pensamento.


O que é uma experiência de pensamento? É uma forma de


conduzir sua mente a novos lugares, de fazer com que ela veja as


coisas de uma maneira diferente. Os magos tinham consciência de


algo profundo e importante — se você quiser mudar o mundo, mude


sua atitude diante dele. Einstein certa vez deitou-se num sofá, fechou


os olhos e viu um homem viajando à velocidade da luz. Aprofundando


essa imagem intrigante, ele começou a realizar várias experiências


de pensamento, aparentemente meras especulações sem sentido.


Após alguns anos, contudo, a atitude do mundo científico iria se


transformar quando a própria natureza confirmou as visões


transcendentes de Einstein.


Se uma fantasia no sofá é capaz de alterar o mundo, é porque as


experiências de pensamento devem encerrar dentro de si um


tremendo poder. Nada é verdadeiramente aprendido enquanto não é


vivido. A razão, a experiência, o espírito — quando estes se reúnem,


o caminho do mago está aberto, o terreno para a alquimia está


preparado. A sabedoria em seu interior é como uma centelha que,


uma vez acesa, nunca pode se extinguir.


Para consolidar tudo isso, sugiro a seguinte abordagem:


1. Sente-se tranquilamente por um momento antes de ler qualquer


lição.


2. Leia os aforismos e depois sente-se durante alguns minutos


para absorvê-los. Releia-os sempre que desejar. Dê a


14


si mesmo a oportunidade de sentir suas reações e insights


— estes são com frequência as coisas mais valiosas que


você pode receber.


3. Prossiga e leia o resto do conteúdo da lição: a história de


Merlim e Artur, a seção chamada "Compreendendo a Lição", e


a seção chamada "Vivendo com a Lição".


4. Se "Vivendo com a Lição" contiver um exercício prático


— a maioria contém — dê um tempo a si mesmo para fazer


o exercício. É proveitoso repeti-lo várias vezes durante o


dia se você quiser alcançar a experiência completa.


Releia cada lição quantas vezes quiser; viva com ela durante um


dia ou uma semana. Não existe um tempo programado para esse


processo. Quero apenas advertir que você deve viver com cada lição


pelo menos durante um dia, em vez de se apressar para absorver


coisas demais de uma só vez.


AS SETE ETAPAS DA ALQUIMIA


A Terceira Parte deste livro lida com os estágios de transformação


através dos quais o mago guia seu discípulo. Eu os chamo de as sete


etapas da alquimia, que têm início no nascimento e conduzem, no


final, à total transformação. O objetivo da alquimia é transformar as


coisas em ouro, a substância perfeita e incorruptível. Sob o aspecto


humano, o ouro é um símbolo do espírito puro. Se uma pessoa


transcende todas as limitações, abandona todos os receios, e traz à


tona o puro espírito interior, ela terá passado pelas sete etapas da


alquimia.


Não existe jornada mais extraordinária. Na época arturiana ela


teria sido chamada de aventura de busca, e o objeto supremo dessa


busca era sempre o Santo Graal, o mais poderoso símbolo que temos


para o espírito puro. Desse modo, para mim, a alquimia e o Graal são


a mesma coisa. Em ambos os casos ocorre uma profunda busca do


aspecto intemporal da vida que traz consigo o que todos sonham — o


puro amor, a pura alegria e a pura realização no espírito.


15


Não importa que você leia primeiro a Segunda ou a Terceira Parte.


Cada parte possui sua abordagem e estilo próprios, mas ambas provêm


do mundo do mago. Merlim vive em ambas, e seu propósito é sempre o


mesmo — ensinar a cada um de nós como alcançar a perfeição da qual


a carne deveria ser herdeira.


Finalmente, este livro descreve uma aventura de busca que o levará


de uma vida dominada pelo ego e suas lutas para uma nova vida


dominada por milagres. Não existem duas pessoas que aprendam no


mesmo ritmo, mas a sede de milagres é tão forte em todo mundo que eu


gostaria de poder estar com você no dia em que esse conhecimento do


mago realmente começar a despertar, e, com ele, sua nova vida. Nada


menos do que o pleno desabrochar do seu potencial espiritual o


aguarda.


Nota: Por ser um vidente, o mago não tem sexo, e é somente a inépcia


da língua inglesa que faz de Merlim um "ele" (como acontece em


outros idiomas com as palavras Deus, profeta, vidente e muitas outras


palavras que estão bem além do masculino e do feminino). Maga é uma


palavra deselegante, de modo que peço que você compreenda que


mago diz respeito tanto às mulheres quanto aos homens. Aliás, o


retorno do aspecto mágico tem sido acolhido mais rapidamente na


nossa sociedade pelas mulheres do que pelos homens.


16


S E G U N D A P A R T E


O CAMINHO DO MAGO


17


— Existe um ensinamento — disse Merlim — chamado o caminho do


mago. Você já ouviu falar nele?


O menino Artur parou de acender o fogo, o que ele não estava


conseguindo fazer muito bem, e ergueu os olhos. Raramente era fácil


acender o fogo nas manhãs úmidas do West Country.


— Não, nunca ouvi falar nisso — respondeu Artur após pensar por


um momento. — Magos? Você quer dizer que eles fazem as coisas de


uma maneira diferente?


— Não, exatamente da mesma maneira que nós — retrucou


Merlim. Com um estalar de dedos ele acendeu a pilha de gravetos


encharcados que Artur havia juntado, tendo ficado impaciente com


as tentativas desajeitadas do menino de fazê-lo. Uma chama surgiu


imediatamente. Merlim abriu então as mãos e produziu do nada


alguns alimentos — duas batatas e um punhado de cogumelos


silvestres.


— Ponha estas batatas e cogumelos nos espetos e asse-os, por


favor — disse ele.


Artur fez que sim, naturalmente, com a cabeça. Ele tinha cerca de


dez anos. Merlim era a única pessoa que conhecia. Até onde


conseguia se lembrar, eles tinham estado juntos. Ele certamente


havia tido uma mãe, mas o rosto dela não havia se fixado nem


mesmo vagamente na sua memória.


O velho com a barba leve e delicada havia reclamado seu direito


ao rebento real poucas horas depois de seu nascimento.


— Sou o último guardião do caminho do mago — disse


Merlim. — E talvez você vá ser o último a aprendê-lo.


18


Ao colocar os espetos no fogo, Artur olhou por cima do ombro.


Agora ele estava intrigado. Merlim era um mago? Isso nunca lhe


ocorrera. Os dois moravam sozinhos na floresta e na gruta de cristal.


O brilho da gruta lhes fornecia luz. Artur aprendera a nadar


transformando-se num peixe. Quando queria comida, esta aparecia,


ou Merlim lhe dava alguma. As coisas não eram assim com todo


mundo?


— Você estará indo embora em breve — prosseguiu Merlim.


— Tome cuidado para não deixar cair aquela batata sobre as


cinzas.


E claro que isso já tinha acontecido. Como Merlim vivia às


avessas no tempo, seus avisos inevitavelmente chegavam tarde


demais, depois que algum pequeno desastre já tinha acontecido.


Artur tirou a fuligem da batata e a recolocou no espeto, feito de tília


ainda verde.


—Não tem importância — disse Merlim. — Essa pode ficar para


você.


—O que você quer dizer com ir embora? — perguntou Artur. Ele


só fora ao vilarejo mais próximo em raras ocasiões, quando Merlim


queria ir ao mercado, e o mago tomara o cuidado de disfarçar a


ambos com pesados mantos e capuzes. Entretanto, o menino


observara atentamente as coisas, e o que ele vira nas outras pessoas


o perturbara.


Merlim olhou de soslaio para o discípulo, de um jeito peculiar.


— Vou enviá-lo para o pântano, ou para o mundo, como


dizem os mortais. Eu o mantive fora do pântano todos esses anos,


ensinando-lhe algo que você não deve esquecer.


Merlim fez uma pausa para causar impressão, e disse:


— O caminho do mago.


Depois que ele pronunciou essas palavras, nenhum dos dois disse


mais nada, como costumam fazer os velhos companheiros. Eles


quase respiravam o mesmo alento, o velho e o menino, de modo que


Merlim deve ter sentido a agitação que percorria a mente de Artur,


como uma pantera enjaulada.


Eles comeram a refeição, e o menino foi se lavar na pequena


lagoa azul que ficava um pouco abaixo da gruta, descendo a encosta.


Quando voltou, Merlim estava tomando banho de sol


19


recostado em sua pedra favorita (tomando banho de sol, neste caso,


é uma expressão relativa — as nuvens haviam se afastado um pouco


para permitir que um único raio de sol atravessasse as árvores e


pousasse sobre o cabelo branco do mago). As primeiras palavras que


saíram da boca do menino foram:


—O que vai acontecer com você?


—Comigo? Não seja tão vaidoso. Passarei muito bem sem sua


ajuda, obrigado.


No instante em que Merlim deu essa resposta breve e seca, ele


percebeu que magoara o menino. Mas os magos são pouco


inclinados a se desculpar. Um longo e belo arco feito de freixo


branco apareceu no chão ao lado de Artur, que o apanhou


avidamente e começou a retesá-lo. No código particular deles, o


menino sabia que essa era a maneira do velho se desculpar.


—Não estou preocupado comigo — prosseguiu Merlim — e sim


com a perda do conhecimento. Como eu disse, você talvez seja o


último a aprender o caminho do mago.


—Então vou fazer todo o possível para que ele não se perca —


prometeu Artur.


Merlim aprovou inclinando a cabeça. Durante muitos dias, ele não


mencionou mais o caminho do mago. Certa manhã de junho,


contudo, Artur acordou e encontrou sua cama de ramos de pinheiro


coberta de neve. Ele tremia de frio e se sentou, espalhando no ar


uma nuvem de flocos brancos enquanto sacudia seu cobertor de pele


de veado.


—Eu pensava que você só fazia isso em dezembro — disse ele,


mas Merlim não respondeu. Ele estava de pé, absolutamente imóvel,


no meio do círculo de neve que cobria o campo. Diante dele erguiase


uma estranha aparição, uma grande rocha com uma espada


projetando-se para fora dela. Apesar do ar gelado, a neve branca não


se agarrava à pedra, e a lâmina erguia-se limpa no ar, um metro e


meio de reluzente aço damasceno forjado.


—O que é isso? — perguntou Artur. A visão da pedra, o afetava


profundamente, embora ele não soubesse por quê.


—Nada — retrucou Merlim. — Apenas se lembre.


Após um momento, a espada na pedra começou a desaparecer, e


quando Artur voltou, após sua higiene matutina, a lâmina de Merlim


estava novamente cálida, os flocos de neve haviam se


20


derretido ao sol do verão, e a pedra desaparecera como um sonho. O


menino sentiu vontade de chorar, porque sabia que a aparição era o


gesto de adeus de Merlim, de despedida e recordação.


O que aconteceu a Artur depois de partir para o mundo faz hoje


parte da lenda. Ele acabou chegando em Londres numa manhã de


Natal em que a neve caía sobre a cidade, do lado de fora da catedral


onde a espada enterrada na pedra misteriosamente reaparecera.


Para assombro da multidão que saía da igreja, ele arrancou a espada


e reclamou seu direito ao trono. Ele travou longas e amargas


batalhas para vencer um grande número de rivais que também


queriam ascender ao trono, estabelecendo depois a sede da corte em


Camelot. Ele vivia a cada dia os segredos do caminho do mago. Um


dia ele morreu e passou à história. Coube às gerações seguintes


imaginar o que teria Merlim ensinado a seu discípulo todos aqueles


anos na floresta, antes de o menino Artur avançar em direção à


pedra e apossar-se do destino, agarrando seu punho adornado com


pedras preciosas.


Pouco depois da derrocada de Camelot, o mundo de Artur


desapareceu. A terra voltou a ser dominada pela discórdia e pela


ignorância, e Merlim demonstrou ter sido o último da sua espécie,


exatamente como predissera. Depois dele, não houve mais magos na


história do ocidente.


Mas Merlim nunca achou que o caminho do mago dependesse do


rumo da história.


— O que eu sei está no ar — ele gostava de dizer. — Respire e o


conhecimento estará presente.


Os magos sabiam de coisas intemporais, e, por conseguinte, o


depósito do conhecimento deles precisa estar fora do tempo. O


caminho está aberto. Ele começa em todos os lugares e não conduz a


nenhum lugar; no entanto, ele desemboca num lugar real. Tudo isso


desabrocha quando ouvimos Merlim falar.


21


1- Lição


Existe um mago dentro de todos nós. Esse mago tudo vê e tudo


sabe.


O mago está além dos opostos da luz e das trevas, do bem e do mal,


do prazer e da dor.


Tudo que o mago vê tem suas raízes no mundo


invisível.


A natureza reflete o estado de alma do mago.


O corpo e a mente podem adormecer, mas o mago


está sempre desperto.


O mago possui o segredo da imortalidade.


— Prove isto — disse Merlim certo dia, empurrando uma tigela de sopa


na direção do menino Artur.


Artur provou, hesitante. Era uma sopa deliciosa e consistente, de


carne de veado e raízes silvestres, temperada misteriosamente por


Merlim enquanto Artur estava de costas. A sopa era irresistivelmente


saborosa, e Artur mergulhou avidamente de novo a colher na tigela,


tendo o desprazer de tê-la arrebatada das mãos.


— Espere, quero mais — resmungou Artur, ainda de boca cheia.


Merlim balançou negativamente a cabeça.


— O banquete completo está na primeira colherada — advertiu o


mago.


No início, Artur sentiu-se invadido pela frustração e pelo


desapontamento, mas depois percebeu que estava se sentindo


satisfeito como se tivesse tomado o prato inteiro. Mais tarde,


22


quando Artur estava cochilando debaixo de uma árvore, Merlim se


aproximou em silêncio e deixou uma grande tigela de sopa ao lado


do menino. Enquanto se afastava, o mago murmurou:


— Pense bem. De que serviriam todos esses anos de escola de


magia se eu não pudesse mostrar tudo para você na primeira lição?


COMPREENDENDO A LIÇÃO


E preciso uma vida inteira para aprender o que o mago tem a


ensinar, mas tudo que irá se desenvolver no decorrer dos anos e das


décadas está disponível na primeira lição de Merlim. E nela que o


mago se apresenta. Ele descreve sua abordagem diante da vida, que


é resolver os enigmas mais profundos da mortalidade e da


imortalidade. E tudo isso acontece de uma maneira mágica. Em


primeiro lugar, Merlim não aparece realmente numa forma física. As


formas são irrelevantes para Merlim. Ele já viu mundos surgirem e


desaparecerem, ele sobreviveu ao tumulto dos tempos, e sua reação


a tudo é a mesma: ele vê.


Os magos são videntes. O que eles vêem? A realidade como um


todo, e não suas múltiplas partes.


—Você sempre foi um mago? — perguntou o menino Artur.


—Como eu poderia ter sido? — retrucou Merlim. — Eu já vivi


como você, e quando eu olhava para uma pessoa, tudo que via era


uma forma de carne e osso. Mas depois de algum tempo, reparei que


as pessoas vivem em casas que prolongam seu corpo: pessoas


infelizes com emoções desordenadas vivem em casas desordenadas;


pessoas felizes e satisfeitas vivem em casas arrumadas. Era uma


simples observação, mas depois de algum tempo cheguei à seguinte


conclusão: Quando vejo uma casa, estou na verdade enxergando


mais daquela pessoa.


"Minha visão então se expandiu. Quando eu via uma pessoa, eu


também não podia deixar de ver sua família e seus amigos. Essas


também eram extensões da pessoa e me diziam muitas coisas sobre


ela. Mas minha visão se expandiu mais ainda. Comecei a enxergar


debaixo da máscara de aparência física. Vi


23


emoções, desejos, temores, anseios e sonhos. Sem dúvida todos esses


são parte de uma pessoa, se tivermos olhos para enxergá-los. "Comecei a


observar a energia que cada pessoa emana. Nessa ocasião, a


disposição física de carne e osso da pessoa se tornara praticamente


insignificante, e logo avistei mundos dentro de mundos em todas as


pessoas que encontrava. Depois compreendi que cada coisa viva é


todo o universo, apenas vestida num disfarce diferente."


—Isso é realmente possível? — perguntou Artur.


—Um dia você perceberá que todo o universo pode ser encontrado


dentro de você, e nesse dia você será um mago. O mago não vive no


mundo; o mundo vive nele.


"Século após século o mago tem sido procurado em todos os lugares,


nas florestas ou cavernas profundas, nas torres ou nos templos. O


mago também viajou usando nomes diferentes: filósofo, mágico,


vidente, xamã, guru. &
39;Diga-nos por que sofremos. Diga-nos por que


ficamos velhos e morremos. Diga-nos por que somos fracos demais


para gerar uma vida satisfatória para nós mesmos.&
39; Somente diante


de um mago poderiam os mortais desabafar perguntas tão difíceis.


"Depois de escutar com muito cuidado, os magos, mestres e gurus


disseram a mesma coisa. &
39;Posso solucionar essa massa de ignorância e


dor se vocês compreenderem uma única coisa. Estou dentro de vocês.


Essa pessoa separada que parece estar falando com vocês na verdade


não é separada. Somos um só, e no nível em que somos um só, nenhum


dos nossos problemas existe."&
39;


Quando Artur queixou-se certa vez de que Merlim o mantinha na


floresta, permitindo apenas que ele tivesse breves vislumbres do


mundo, Merlim ficou furioso:


— O mundo? Como você imagina que as pessoas vivem,


aquelas que você viu no vilarejo? Elas se preocupam com o


prazer e a dor, buscando o primeiro e desesperadamente evitan


do a segunda. Estando vivas, elas desperdiçam a vida preocupando-


se com a morte. A riqueza e a pobreza as obcecam e


alimentam seus mais profundos receios.


Felizmente, o mago interior não vivência nada disso. Como ele


enxerga a verdade, ele não vê a inverdade, porque o jogo de


24


opostos — prazer e dor, riqueza e pobreza, bem e mal — só parece real


enquanto não aprendemos a enxergar dentro da estrutura mais ampla


do mago. No entanto, não há como negar que esse drama da vida


cotidiana é extremamente real para as pessoas comuns. O espetáculo


externo da vida é a vida se você só acredita em seus sentidos, naquilo


que você vê e sente.


Os mortais procuravam os magos para resolver essa obsessão com


as aparências e esse anseio de significado. E preciso que haja algo além


do que o que estamos vivendo, pensavam os mortais, sem saber


exatamente o que poderia ser esse algo mais.


— Não passe o tempo refletindo sobre o que você vê — aconselhou


Merlim a Artur — e sim sobre por que você o vê.


A primeira lição, portanto, se resume no seguinte: olhe além do seu


eu limitado para ver seu eu ilimitado. Penetre a máscara da


mortalidade e encontre o mago. Ele está dentro de você, e somente


ali. Tão logo você o encontre, você também será um vidente. Mas o


que você pode ver desponta no tempo propício, paulatinamente. Antes


de você enxergar, surge o sentimento de que a vida encerra mais


coisas do que as que você está vivendo. E como uma voz indistinta


que sussurra: "Ençontre-me." Essa voz é neutra, tranquila, satisfeita


em si mesma — e impalpável. E a voz do mago, mas também é a sua.


VIVENDO COM A LIÇÃO


Os ditados de Merlim atuam sutilmente, como a água que penetra


profundamente na terra. A água que jorra hoje do chão caiu como


chuva há milhares, até milhões de anos. Ninguém sabe muito sobre a


vida dessa água misteriosa, aonde ela vai, o que acontece a ela entre as


pedras profundamente ocultas. Mas um dia, libertada pela gravidade,


ela ascende das trevas, e, surpreendentemente, jorra completamente


pura e cristalina.


O mesmo acontece com Merlim. Se você se sentar em silêncio e


escutar por alguns minutos, as palavras começarão a se entranhar.


Deixe que isso aconteça, e depois permita que a sabedoria faça seu


trabalho. Não espere nem anteveja nenhum


25


resultado, mas fique alerta ao que possa ocorrer. Qualquer coisa que


acontecer é boa.


O tema da primeira lição é encontrar o mago e apreciar seu ponto de


vista, que é muito diferente daquele adotado pela mente ou pelas


emoções. Estas últimas sentem e reagem. Elas são imediatas, como os


tentáculos de uma anêmona-do-mar que se contorcem, reagindo


imediatamente a uma sensação. A dor causa a contração emocional; o


prazer faz com que você se expanda e se sinta livre.


A mente, por outro lado, trabalha com muito menos


instantaneidade. Ela mantém um vasto arquivo de memórias e


constantemente o consulta. Ela compara o novo com o velho e toma


uma decisão: isso é bom, isso é mau, isso vale a pena repetir, isso não.


Assim, as emoções oferecem uma resposta imediata e impensada a


qualquer situação, como o bebé que sorri ou chora espontaneamente. A


mente consulta seu banco de memória e fornece uma reação


retardada.


O mago não tem nenhuma dessas duas reações, instantânea ou


retardada — Merlim simplesmente é. Ele vê o mundo e deixa que ele


seja o que é. Não se trata, contudo, de um ato passivo. Tudo no mundo


do mago se baseia no insight "Tudo isso sou eu". Por conseguinte, ao


aceitar o mundo como ele é, o mago encara tudo à luz da autoaceitação,


que é a luz do amor.


Parece estranho que a definição do amor do mago esteja envolvida


em silêncio. Para as emoções, o amor é um surto de sentimento, uma


atração muito ativa diante de um estímulo poderoso. A mente tem seus


próprios métodos, mas eles não são tão diferentes: a mente gosta de


qualquer coisa que repita uma experiência agradável do passado. "Eu


gosto disso" significa basicamente "Eu gosto de repetir o que me fez


sentir tão bem antes". Portanto, tanto a mente quanto as emoções são


seletivas. Selecionar e escolher não é errado, mas exige esforço.


Embora todos tenhamos aprendido que o esforço é positivo, que nada é


alcançado sem trabalho, isso não é verdade. O ser não pode ser


alcançado através do esforço; o amor não pode ser alcançado através


do esforço.


Num nível mais sutil, selecionar e escolher também envolve a


rejeição. A mente se concentra numa coisa de cada vez. Antes


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de você poder dizer: "Eu gosto disso", você precisa rejeitar todas as


outras escolhas. As coisas que rejeitamos tendem a ser tingidas pelo


medo. A mente e as emoções não encaram a dor e o sofrimento de


uma maneira neutra; elas os temem e rejeitam. Esse hábito de


seíecionar e escolher acaba fazendo com que você despenda muita


energia, porque sua mente está constantemente vigilante,


permanentemente em alerta para garantir que a mágoa, o


desapontamento, a solidão e uma série de outras experiências


dolorosas não voltem a acontecer. Que espaço é reservado ao


silêncio?


Sem silêncio, não existe espaço para o mago. Sem silêncio, não


pode haver uma verdadeira apreciação da vida, cuja estrutura


interior é tão delicada quanto um botão de rosa. Os mortais


procuravam os magos para pedir conselhos porque percebiam que


eles não viviam com medo. Qualquer coisa que aconteça aos magos é


aceita, até mesmo abraçada. "Como você alcança essa paz de


espírito?" perguntavam os mortais. E a resposta dos magos era "Olhe


para dentro de si, onde só existe paz".


Portanto, o primeiro passo no mundo de Merlim é reconhecer que


ele existe - isso basta. Quando você se entregar ao estudo desta


lição, sua mente poderá se rebelar, dizendo: "Não!" à noção de que


existe outro ponto de vista válido, um jeito diferente do dela. Suas


emoções podem participar dessa onda de desconfiança, ansiedade,


tédio, ceticismo, desprezo, seja lá o que possa surgir. Não resista a


esses sentimentos. Eles são meramente maneiras antigas e habituais


de seíecionar e escolher. Sua mente se torna importante ao rejeitar.


Durante anos ela o serviu fielmente, mantendo à distância as coisas


desagradáveis. A questão é: a tática da mente funcionou? A mente


pode conseguir torná-lo inteligente, mas está muito mal equipada


para torná-lo feliz, realizado, em paz consigo mesmo.


Merlim não discute com a mente. Todos os debates são gerados


pelo pensamento, e o mago não pensa. Ele vê. E essa é a chave para


o milagroso, pois tudo que você puder ver em seu mundo interior você


produzirá no mundo exterior. Viva com essa lição inicial, deixe que a


água da sabedoria comece a penetrar nas passagens secretas


existentes dentro do seu ser, e observe. O mago está dentro de você,


e ele só deseja uma coisa: nascer.


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2- Lição


A volta da magia só pode acontecer com o retorno da


inocência.


A essência do mago é a transformação.


Todas as manhãs o jovem Artur descia até uma lagoa na floresta


para se lavar. Sendo um menino típico, ele não ficava propriamente


ansioso para executar essa tarefa. Frequentemente ele se distraía


com o burburinho dos esquilos vermelhos, das pegas ou com


qualquer outra coisa que pudesse ser mais interessante do que água


e sabão.


Merlim não se preocupava muito com a sujeira que visivelmente


se acumulava no rosto de seu pupilo, ao redor do pescoço e em todos


os outros lugares. Mas finalmente chegou o dia em que o mago


explodiu:


— Eu poderia plantar feijões atrás das suas orelhas! Não


importa que você fique apenas um instante no lago, mas faça


alguma coisa enquanto estiver lá.


Artur baixou a cabeça:


— Tenho tido receio de confessar, Merlim, mas quando me


curvo em direção à água, não consigo enxergar meu reflexo. Não


consigo ver onde devo lavar, ou mesmo qual a minha aparência.


Para espanto do menino, quando ele levantou a vista, Merlim


estava ao lado dele, encantado.


—Tome — disse ele, introduzindo uma grande esmeralda na mão


do garoto como recompensa (Artur a usou mais tarde para saltar


através da água).


—Eu achei que sua desobediência significava a perda da


inocência, mas percebo que estava errado. Por não ter um


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reflexo, você não tem uma auto-imagem. Se você não está sendo


distraído pela auto-imagem, você só pode estar no estado de


inocência.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


Antes de ser encoberta, a inocência é nosso estado natural. É a autoimagem


que a encobre. Quando olhamos para nós mesmos, mesmo


quando tentamos ser completamente sinceros, vemos uma imagem


construída no decorrer de muitos anos, em camadas totalmente


entrelaçadas. As linhas e as rugas que se formam no rosto de uma


pessoa contam a história de antigas alegrias e tristezas, triunfos e


derrotas, ideais e experiências. É praticamente impossível enxergar


qualquer outra coisa.


O mago vê a si mesmo onde quer que olhe, porque sua visão é


inocente. Ela não é empanada por julgamentos, rótulos e definições. O


mago sabe que possui um ego e uma auto-imagem, mas ele não é


distraído por essas coisas. Elas sobressaem sobre a tela de fundo da


totalidade, de todo o contexto da vida.


O ego é "Eu": ele é seu ponto de vista singular. Na inocência esse


ponto de vista é puro, como uma lente cristalina. Mas sem inocência, o


foco do ego é extremamente deformado. Se você acha que conhece


alguma coisa — inclusive a si mesmo — você está na verdade vendo


seus próprios julgamentos e rótulos. As mais simples palavras que


usamos para descrever uns aos outros — amigo, família, estranho —


estão carregadas de julgamentos. O enorme abismo de significado


entre amigo e estranho, por exemplo, está repleto de interpretações.


O amigo é tratado de uma determinada maneira, o inimigo de outra.


Mesmo que esses julgamentos não ascendam à superfície, eles


obscurecem nossa visão como o pó encobre uma lente.


Por não ter rótulos para as coisas, o mago as enxerga sempre como


novas. Para ele não existe poeira nas lentes, de modo que o mundo


reluz repleto de novidades. A mesma canção indistinta é ouvida em


todas as coisas: "Olhe para si mesmo". Deus poderia ser definido como


alguém que olha em volta e vê apenas a Si


29


mesmo em todas as direções; na medida em que somos criados à


imagem Dele, nosso mundo também é um espelho.


Os mortais achavam esse ponto de vista mágico muito estranho,


pois o interesse deles estava voltado para uma direção totalmente


diferente. Eles olhavam para fora e ficavam fascinados com as


coisas, e ansiavam por nomear e usar tudo que viam. Todos os


pássaros e mamíferos tinham que receber um nome. As plantas


tinham que ser cultivadas para fornecer alimento e prazer. As terras


existiam para ser exploradas e conquistadas.


Merlim não demonstrava praticamente nenhum interesse por


nada disso. Com frequência os magos não sabem o nome das coisas


mais comuns, como o carvalho, o gamo ou as constelações. No


entanto, o mago poderia contemplar um carvalho retorcido, uma


corça no período de aleitamento ou o céu noturno durante horas, e


em cada momento sua contemplação seria totalmente assimilada.


Os mortais desejavam compartilhar esse tipo de atenção


extasiada. Quando lhe perguntaram qual o segredo de se olhar para


o mundo sempre como sendo novo, com deleite, Merlim respondeu:


— Vocês não possuem inocência. Depois de rotularem uma coisa,


vocês deixam de enxergá-la e passam a ver apenas o rótulo.


Foi fácil dar um exemplo disso. Se dois cavaleiros que não se


conheciam se encontrassem na floresta, imediatamente procuravam


o emblema ou bandeirola que identificava se o outro era amigo ou


inimigo. No instante em que esse símbolo era identificado, os


cavaleiros podiam entrar em ação, mas não antes. O amigo podia ser


abraçado, convidado para o banquete ou para contar histórias. Ao


inimigo só era possível dar combate.


Essa obsessão de rotular as coisas, declarou Merlim, é pura e


simplesmente a atividade da mente. A mente não pode reagir sem


um rótulo. Carregamos milhões de rótulos na nossa cabeça, e nossa


mente é capaz de consultar esses rótulos com a rapidez do


relâmpago. A velocidade da mente é prodigiosa, mas a velocidade


não nos protege contra o desgaste. Qualquer coisa em que você


consiga pensar, você já experimentou, e você acaba se cansando de


tudo que já experimentou.


30


—Vocês se admiram de não conseguir olhar para um carvalho,


um veado ou uma estrela por mais do que um minuto? — indagou


ele. — Quase consigo ouvir a mente de vocês gemendo: "Aquela coisa


velha!" e lá se vão vocês em sua insensata corrida em busca de algo


novo.


—Não vejo por que isso seja um problema tão grande —


comentou um aldeão idoso. — O mundo é vasto, e a natureza está


repleta de aspectos e transformações interessantes.


—Isso é verdade — admitiu Merlim —; no entanto, de acordo com


seu argumento, nada deveria então se desgastar e ficar monótono.


Não se pode negar a quantidade infinita de coisas lá fora. Mas o


tédio é uma queixa comum entre os mortais, não é verdade? — O


ancião fez que sim com a cabeça.


—No entanto, você pronunciou a palavra certa — continuou


Merlim. — Transformação. Mas é o seu eu que precisa constantemente


estar em transformação. Você não pode levar ao mundo o


mesmo eu desgastado e esperar que o mundo seja novo para você.


O mago nunca vê a mesma coisa duas vezes da mesma maneira.


Assim, ao contemplar a floresta, ele não se deixa absorver tanto pela


visão de um veado quanto por uma nova faceta do seu ser: a doçura,


a virtude, o recato ou a delicadeza. Quando o olhar é puro, qualquer


pessoa é capaz de enxergar essas qualidades. Elas desabrocham


como as pétalas de uma rosa. Você precisa ter paciência, mas vale a


pena esperar por elas. Sua inocência é a única flor que existe. Ela


nunca esmaece, e por causa disso, o mundo tampouco se desvanece.


VIVENDO COM A LIÇÃO


Depois de ler esta lição, conceda a si mesmo um momento para


tentar recuperar um toque de inocência. Isso é mais fácil do que as


pessoas imaginam. A primeira coisa que você deve saber é o que não


fazer. Não julgue seu estado de espírito atual. Você pode estar


cansado ou deprimido. Você pode ter muita raiva, medo ou culpa a


considerar. Esqueça tudo isso por um momento, porque a inocência,


como ensina Merlim, está além da mente.


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Olhe simplesmente para esta lista de palavras:


PESADO


LEVE


PRETO


BRANCO


SOL


LUA


Permita-se vivenciar essas qualidades, uma de cada vez. Não


importa se você é o tipo de pessoa que elabora imagens em vez de


sentimentos, ou conceitos em vez de objetos concretos. Qualquer


abordagem irá funcionar. Você percebeu que é impossível para sua


mente evitar alguma sensação de pesado, leve, preto, branco, e


assim por diante? De fato, você não conseguiria nem mesmo ler as


palavras sem concretizar pelo menos uma leve sensação de cada


qualidade.


Sua participação é necessária para que essas qualidades existam.


Se sua participação for inocente, elas existirão de uma maneira nova


e diferente. Essa é a visão do pintor. Ele contempla uma cesta de


frutas, um barco ou uma nuvem, mas em vez de ser o recebedor


passivo dessas coisas, ele as cria através da visão. Ele as impregna


do seu próprio espírito.


E todos fazemos o mesmo, até no mais simples ato de observar


uma coisa banal. Essa experiência demonstra que a inocência não


pode ser perdida, ela só pode ser encoberta. O segredo de ver com


inocência é ver a partir de um novo ponto de vista, que não seja


condicionado por aquilo que você espera ver.


—Se você pudesse realmente ver aquela árvore ali — disse


Merlim —, você ficaria tão assombrado que perderia o equilíbrio.


—Mesmo? Mas por quê? — perguntou Artur. — É apenas uma


árvore.


—Não — respondeu Merlim. — É apenas uma árvore na sua


opinião. Para outra pessoa, ela é uma expressão de espírito e beleza


infinitos. Para Deus, ela é um filho querido, mais doce do que


qualquer coisa que você possa imaginar.


Enquanto a mente pode registrar a cor, a luz, a densidade e o


sentimento do mundo, ela está percebendo a si mesma. A


32


palavra pesado ou branco lhe confere uma sensação interior que


pertence exclusivamente a você. Não existe nenhum peso ou


brancura "lá fora" sem que você esteja presente para percebê-lo; a


visão, o toque, o sabor ou o aroma só existem como um leve oscilar


da sua consciência. Você pode enviar uma câmera para a luz,


fotografar todas as crateras e vales lá existentes e trazer o filme de


volta para a terra. Se não houver aqui um ser humano para ver essas


fotos, elas não conterão imagens, apenas substâncias químicas que


reagiram a uma combinação momentânea de fótons. O filme está tão


morto quanto a lua. Merlim diria que se ninguém olhar para a


imagem da lua, tampouco existe uma lua.


Por conseguinte, é tremendamente importante olhar de maneira


inocente para o mundo, porque é só assim que o mundo contém vida.


É seu olho que confere vida a tudo que vê. Por trás de cada molécula


de existência precisa haver consciência e inteligência; caso


contrário, o universo seria um turbilhão aleatório de gases inertes e


estrelas sem vida, um vazio que anseia por receber a semente da


existência. Sem inteligência, não há vida, apenas atividade. Cada


olhar que você dá pela janela coloca a semente da vida no estado de


criação. É por isso que Merlim levava muito a sério sua função de


observar os carvalhos, os veados e as estrelas. Ele não queria que


eles morressem; ele era um amante da vida.


Esta lição se resume ao seguinte comentário: "Olhe com


inocência e você produzirá vida." Este é o princípio mágico pelo qual


Merlim vivia. Os mortais tinham dificuldade em entender uma ideia


tão simples porque ela contrariava o mais profundo preconceito


deles, que preceituava: "O mundo vem em primeiro lugar e eu em


segundo." Mas nós não estaríamos vivos se um Ser inocente não


tivesse nos visto primeiro. Esse foi o atqjjue plantou a semente de


todo o universo, e foi um ato de amor. Você conhecerá novamente


sua inocência quando conseguir ver o amor que palpita em cada


partícula da criação.


33


3- Lição


O mago observa o mundo ir e vir, mas sua alma


habita as esferas de luz.


O cenário muda, o observador permanece o mesmo.


Seu corpo é apenas o lugar que suas memórias chamam de


lar.


Merlim preferia evitar ser visto pelos mortais, mas às vezes, no final do


verão, era possível avistá-lo no campo de pé numa perna só. Fazendeiros


curiosos se aproximavam, mas Merlim permanecia como uma estátua,


sem fazer ruído e sem demonstrar ter percebido a presença deles.


Nessas ocasiões, Artur achava que seu mestre parecia um grou em


posição de arpoar um peixe no pântano. Certo dia, quando Merlim já


estava contemplando uma lagoa horas a fio, o menino não se conteve e


perguntou para onde ele estava olhando.


— Não sei dizer exatamente — respondeu Merlim. — Vi uma


libélula e quis examiná-la com mais atenção. Ela atravessou


meu caminho como um sonho, mas depois de alguns momentos


esqueci se eu estava sonhando com essa libélula ou se ela estava


sonhando comigo.


— A resposta não é óbvia? — perguntou Artur.


Merlim deu uma pancada forte na cabeça do menino.


— Você acha que seus sonhos acontecem aí dentro. Mas eu


me vejo em todos os lugares, portanto quem sabe que parte de


mim está sonhando com outra parte?


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COMPREENDENDO A LIÇÃO


O mago que existe dentro de todos nós também poderia se chamar a


testemunha. O papel da testemunha não é interferir no mundo em


transformação, mas sim ver e compreender. A testemunha não


descansa — ela permanece desperta mesmo quando você está


sonhando ou tendo um sono sem sonhos. Portanto, ela não precisa


enxergar através dos seus olhos, o que parece algo mágico. Não é o


olho o órgão essencial da visão?


A energia e a informação são fundamentais para tudo que


podemos ver, ouvir ou tocar no mundo relativo — todo átomo pode


ser desmembrado nesses dois componentes. No entanto, em seu


estado primordial, esses constituintes são informes. Um feixe de


energia pode se afastar num turbilhão caótico como um jato de


fumaça; as informações podem se desmembrar em pontos aleatórios


de dados. É necessária outra força para organizar a ordem


maravilhosa da vida: a inteligência. A inteligência é o elemento


aglutinador do universo.


Para o mago, esta não é apenas uma noção teórica, porque ele é


capaz de ver com sua visão interior que ele é essa inteligência. Esse


entendimento é um desafio para os mortais, uma vez que ele não


provém da mente. Eles estão acostumados a saber as coisas, mas


não estão habituados ao conhecimento propriamente dito.


— O mortal mais brilhante — declarou Merlim — não é melhor do


que o mais absoluto idiota assim que ambos vão para a cama. Eles


têm os mesmos pesadelos apavorantes e o mesmo medo de morrer.


O medo nasce com eles, e eles não conseguem desfrutar o mais


insignificante prazer sem ter a certeza de que ele irá desaparecer.


O conhecimento do mago continua presente até mesmo no sono.


A consciência universal desperta, sempre consciente e onisciente,


não é para o mago uma distante força criativa. Ela vive em cada


átomo. Ela é o olho por trás do olho, o ouvido por trás do ouvido, a


mente por trás da mente.


Logo, o mago não precisa estar desperto e de olhos abertos para


ver. A visão em seu sentido mais profundo pode ter lugar enquanto


sonhamos ou dormimos, porque ver significa estar


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desperto na inteligência do universo. Quando a testemunha está


plenamente presente, tudo é compreendido.


O conhecimento do mago é o saber que não se apoia em fatos


externos. E a água da vida extraída diretamente da fonte. Não importa


o tipo de mudanças que possam varrer o universo, o conhecimento do


mago não pode mudar — o cenário vem e vai, o observador permanece


o mesmo. Enquanto não encontramos o mago interior, dependemos


dos nossos sentidos e da nossa mente para saber quem somos. Nosso


conhecimento é adquirido. Ele está armazenado na memória e


catalogado de acordo com nossos interesses; ele é, portanto, seletivo. O


conhecimento do mago é inato.


Certa vez Artur ficou simplesmente apavorado quando Merlim


correu de um lado para o outro brandindo, como um louco, uma


enorme faca de açougueiro.


—O que você está fazendo? — perguntou o menino, aterrorizado.


—Estou pensando — respondeu Merlim. — Você não pensa desta


maneira?


— Não — disse Artur.


Merlim parou de repente.


— Ah, então eu devo estar enganado. Minha impressão era


que todos os mortais usavam a mente como facas, cortando e


dissecando. Eu queria ver como é isso. Devo dizer que existe


uma grande dose de violência oculta naquilo que vocês mortais


chamam de racionalidade.


A mente do mago é como uma lente que reúne o que vê, e deixa


passar tudo sem distorção. A vantagem desse tipo de percepção é que


ela une, enquanto a mente racional separa. Esta última olha "lá fora"


para uma enorme quantidade de objetos no tempo e no espaço,


enquanto o mago vê tudo como parte de si mesmo. Em lugar de "lá


fora" e "aqui dentro", existe apenas um fluxo inconsútil.


Por isso Merlim afirmou que mal conseguia definir se era ele que


estava sonhando com uma libélula, ou a libélula que estava sonhando


com ele. Apenas na separação, percebida pela mente, havia uma


diferença. Na visão do mago, ambos eram um só.


36


VIVENDO COM A LIÇÃO


Não é fácil explicar o que é testemunhar. No estado ordinário


desperto, todos vemos objetos, mas a testemunha vê a luz. Ela vê a si


mesma como um foco de luz, o objeto como outro foco, todos num


contexto de uma vasta esfera apenas de luz, em transformação.


A luz é uma metáfora para os estados superiores da existência.


Quando alguém tem uma experiência de quase-morte e diz: "Entrei


na luz", ele quer dizer que experimentou um grau mais sutil de si


mesmo. A luz poderá assumir a imagem do céu ou de outro mundo,


mas para o mago, nosso mundo habitual também é apenas uma


imagem. Ele também é projetado a partir da percepção.


— Toda percepção é luz — declarou Merlim —, toda luz é


percepção.


Os limites que construímos para separar o céu da terra, a mente


da matéria, o real do irreal são meras conveniências. Por termos sido


nós a criar os limites, podemos desfazê-los com a mesma facilidade.


Examine cuidadosamente esta página. Você a enxerga como um


objeto. Ela é sólida na medida em que é feita de fibras de madeira


transformadas em papel, mas é abstrata por ser feita de ideias. Uma


página é uma coisa de papel, uma coisa de ideias, ou ambas? Repare


como é fácil você percebê-la como sendo ambas, mas observe


também que você não consegue vê-las ao mesmo tempo. Em outras


palavras, diferentes realidades podem coexistir, mas cada uma


respeita seu próprio nível de existência. Num determinado nível,


uma palavra nada mais é do que pontos de tinta, mas em outro, ela é


a chave de uma ideia.


Cada estado de existência, do mais sutil e imaterial ao mais denso


e sólido, depende do observador. Se quiséssemos, poderíamos


dissolver a página sólida, transformando-a em nada, da seguinte


maneira: a página é feita de papel, o papel é feito de moléculas, as


moléculas são feitas de átomos, os átomos são feixes de energia no


nível quântico, e os feixes de energia se


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compõem de 99,99999 por cento de espaço vazio. Como a distância


entre um átomo e o átomo seguinte é muito grande —


proporcionalmente maior do que a distância entre a Terra e o Sol — você


só pode dizer que esta página é sólida se também estiver disposto a


declarar que o espaço entre nós e o Sol é sólido.


A experiência de transformar coisas aparentemente sólidas em nada


também pode ser revertida. Começando com o espaço "vazio", você


pode criar feixes de energia, átomos, moléculas e assim por diante,


ascendendo na cadeia da criação até chegar a qualquer objeto que você


queira, inclusive seu próprio corpo. A mão que vira esta página é uma


nuvem de energia, e a única maneira pela qual você é capaz de sentir


sua mão ou pela qual ela pode sentir a página é através de um ato de


consciência. Outros feixes de energia, como a luz ultravioleta que o


circunda, são completamente imperceptíveis para você. Desse modo,


as idas e vindas do mundo dependem totalmente do poder da percepção.


Você foi criado como um ser que enxerga para que o mundo exista


como uma coisa a ser vista. Sem os olhos, o mundo seria invisível.


Podemos pegar agora esse entendimento e dar mais um passo à


frente. Tudo na terra é nutrido pelo sol, que é apenas uma estrela. O


alimento que você come foi transformado a partir da luz desse astro, e


quando você o ingere, você cria um corpo que tem a mesma origem.


Em outras palavras, o ato de você fazer uma refeição é simplesmente o


ato de a luz do sol assimilar a luz do sol. Essa luz, apesar de assumir


muitas formas, desde a de gases rodopiantes e quasars à de um


coelho mordiscando um trevo, é uma luz única. Ela não tem uma


localização específica, estando em todos os lugares ao mesmo tempo.


Você parece ter uma localização, mas isso só é verdade porque você


está neste exato momento executando o ato supremamente criativo de


transformar o universo de luz num foco único que se chama seu corpo e


sua mente.


—Eu gostaria de fazer milagres — implorou Artur certo dia.


—Este mundo existe por sua causa — retrucou Merlim. — Este


milagre não basta?


O mago leva esse raciocínio mágico às últimas consequências. Se a


visão tornou o mundo visível, pergunta ele, quem ou


38


o que é o criador da visão? Quem viu o olho antes de o olho ver


alguma coisa? A resposta é a consciência. O observador por trás do


olho é apenas a consciência propriamente dita, dando à luz nossos


sentidos para que eles possam dar à luz tudo que nos rodeia.


Este não é um mistério metafísico. O embrião nasce dentro do


útero da mãe como uma única célula, desprovido de sentidos; depois


ele se desenvolve transformando-se em múltiplas células que se


agrupam em regiões específicas concentrando-se em várias funções;


e, por fim, essas funções emergem como olho, ouvido, língua, nariz,


e assim por diante. O olho não se parece em nada com o ouvido, mas


suas formas diferentes são ilusórias. Todos os seus sentidos estavam


contidos naquela primeira célula fertilizada sob a forma de


informações codificadas.


A informação é apenas a consciência manifestada de uma forma


armazenável, como este livro. Se você não soubesse o que é um livro,


você diria que ele é simplesmente uma coleção de marcas num


código estranho, quando na verdade ele é um canal para que uma


consciência se comunique com outra.


Na visão de Merlim, o mundo era uma maneira para que ele


falasse consigo mesmo.


—Se você algum dia esquecer alguma coisa — recomendou ele a


Artur —, a floresta o fará lembrar-se.


—Já me esqueci de muitas coisas que a floresta não me fez


lembrar — protestou o menino.


—Isso não é verdade — replicou Merlim. — A única coisa que


você pode esquecer é de você mesmo, e isso pode ser encontrado


debaixo de cada árvore.


Por que o mundo existe? Porque uma vasta consciência desejava


escrever o código da vida e estender seus filamentos pela página do


tempo. Não é de causar surpresa que um mago não seja capaz de


dizer onde termina seu corpo e começa o mundo. Você está


sonhando este livro, ou este livro está sonhando você?


39


4- Lição


Quem sou eu? É a única pergunta que vale a pena ser feita e a


única que jamais é respondida.


É seu destino desempenhar uma infinidade de papéis, mas esses


papéis não são você.


O espírito não é localizado, mas deixa atrás de si uma impressão


digital que chamamos de corpo.


Um mago não acredita ser um evento localizado


que sonha com um mundo maior.


Um mago é um mundo que sonha com eventos localizados.


Merlim desapareceu durante muitos anos da vida de Artur; de


repente, um belo dia, ele reapareceu, saindo da floresta e


irrompendo em Camelot. Cheio de alegria ao ver seu mestre, o rei


Artur ordenou que fosse oferecido um banquete em sua homenagem.


Mas Merlim mostrou-se aturdido, olhando para o antigo discípulo


como se nunca o tivesse visto antes.


— Talvez eu possa comparecer, se você for quem eu supo


nho que seja — declarou Merlim. — Mas diga-me sinceramente,


quem é você?


Artur ficou abismado, mas antes que ele pudesse protestar,


Merlim dirigiu-se em voz alta à corte:


— Darei este saco de ouro em pó a quem puder me dizer


quem é esta pessoa. — E imediatamente uma bolsa com puro


ouro em pó surgiu em suas mãos.


Desconcertados e mortificados, nenhum dos cavaleiros da Távola


Redonda veio à frente. Um jovem pajem então se aventurou:


— Todos sabemos tratar-se do rei.


40


Merlim sacudiu negativamente a cabeça e dispensou sumariamente


o pajem do vestíbulo.


—Nenhum de vocês sabe quem ele é? — perguntou ele de novo.


—É Artur — bradou outra voz. — Até mesmo um tolo sabe disso.


Merlim identificou de onde vinha a voz, de uma velha copeira que


estava no canto, e também ordenou-lhe que saísse. A corte murmurava


confusa, mas logo o desafio do mago transformou-se num jogo.


As respostas começaram a pipocar: o filho de Uther Pendragon,


governante de Camelot, soberano da Inglaterra. Merlim não aceitou


nenhuma delas, nem mesmo as mais inteligentes, como filho de Adão,


flor de Albion, um homem entre os homens, e assim por diante.


Finalmente, Guinevere em pessoa entrou na brincadeira.


—Ele é meu amado marido — murmurou ela. Merlim só fez sacudir a


cabeça. Um por um, todos foram dispensados, até que apenas o mago e


o rei permaneceram no grande vestíbulo.


—Merlim, você nos derrotou a todos — admitiu Artur. — Mas tenho


certeza de que sei quem eu sou. Portanto, minha resposta é a


seguinte: sou seu antigo amigo e discípulo.


Após hesitar imperceptivelmente, Merlim rejeitou essa resposta


como rejeitara todas as outras, e o rei não teve outra alternativa a


não ser retirar-se do recinto. Entretanto, a curiosidade conduziu-o a


uma porta aberta de onde ele ainda conseguia ver o grande vestíbulo.


Para sua surpresa, ele viu Merlim caminhar em direção a uma janela,


abrir a bolsa, e sacudir para fora o ouro em pó.


— Por que você jogou fora o precioso ouro? — gritou Artur,


incapaz de se conter.


Merlim ergueu a vista.


—Tive que fazê-lo — retrucou ele. — O vento me disse quem você era.


—O vento? Mas ele não disse nada.


—Exatamente.


41


COMPREENDENDO A LIÇÃO


Os magos, de um modo geral, preferem não ter nem nome nem


endereço certo. Eles não gostam de permanecer num lugar onde os


mortais possam penetrar demais na sua intimidade.


— Quem quer que chame meu nome é um estranho — disse Merlim.


— O fato de você reconhecer meu rosto não significa que você me


conheça.


Os magos vêem a si mesmos como cidadãos do universo. Por


conseguinte, o lugar específico onde eles possam ser encontrados é


irrelevante.


O que nos limita em primeiro e último lugar na vida mortal são os


nomes, os rótulos e as definições. Ter um nome é útil — ele permite que


você saiba que certidão de nascimento é a sua — mas ele rapidamente se


transforma numa limitação. Seu nome é um rótulo. Ele o define como


tendo nascido num determinado lugar e hora, filho de pais específicos.


Passados alguns anos, seu nome o define como alguém que frequenta


tal escola, e depois que tem tal profissão. Aos trinta anos, sua


identidade está enclausurada numa caixa de palavras. As paredes da


caixa podem consistir no seguinte: "Católico, advogado fiscal, formado


por Cornell, casado, três filhos e uma hipoteca." Esses fatos podem não


estar errados, mas são enganadores. Eles encerram em condições um


espírito incondicionado.


Muitas dessas limitações parecem pertencer a você quando na


verdade pertencem ao seu corpo, e você é bem mais do que seu corpo.


O mago tem um relacionamento peculiar com seu corpo. Ele o vê como


um fragmento de consciência que toma forma no mundo, mais ou


menos como as pedras, as árvores, as montanhas, as palavras, os


desejos e os sonhos fluem e tomam forma. O fato de o desejo ou o sonho


ser insubstancial, enquanto nosso corpo é sólido, não perturba o mago.


Os magos são desprovidos do nosso preconceito comum que iguala o


"sólido" ao "real".


O mago não julga ser um evento local sonhando com um mundo


mais amplo. O mago é um mundo sonhando com eventos locais. Ele não


é restringido por limites. Os mortais não pode42


riam existir sem limites. O corpo deles define quem eles são, sem o


corpo, a pessoa nem mesmo poderia saber onde é seu lar, visto que o


lar é onde o corpo encontra abrigo e repouso.


No entanto, Merlim não se considerava um sem-lar. Ele disse:


— Este corpo é como uma pousada que serve de lar aos meus


pensamentos, mas eles entram e saem tão rápido que podería


mos dizer que eles vivem no ar.


Mais uma vez, supomos que os pensamentos entram e saem da


nossa cabeça, mas não podemos prová-lo. Quem já viu um


pensamento antes de ele surgir? Quem segue o pensamento aonde


ele vai depois?


Merlim não conseguia entender por que os mortais queriam se


agarrar ao corpo.


— Aceito dizer que este pacote de carne e osso seja "eu" —


disse ele —, mas somente se aquela montanha, aquele pasto e


aquele castelo também forem "eu".


Um corpo mortal não era melhor, aos olhos de Merlim, do que um


cabide no qual crenças, receios, preconceitos e sonhos foram


deixados pendurados. Se você pendurar casacos demais num cabide,


você não mais poderá vê-lo. Foi isso que os mortais fizeram com o


corpo, disse Merlim. E impossível enxergar a verdade do corpo


humano — que ele é um rio de consciência que circula através do


tempo — porque muito peso do passado acumulou-se nele.


VIVENDO COM A LIÇÃO


Para vivenciar esta lição, você precisa esquecer seu nome durante


algum tempo. Digamos que Quem sou eu? é uma pergunta real


agora. Livrar-se do nome e da forma significa descobrir quem você


realmente é. Na maior parte do tempo nós nos vivenciamos através


da limitação. Desempenhar um papel é uma limitação, e, no entanto,


todo mundo entra e sai de diferentes papéis o tempo todo. Lembre-se


de quando você era criança, e sua mãe, todo-poderosa. Não lhe


ocorria que ela tivesse outra vida além de ser Mamãe; a identidade


dela estava


43


fixada na sua mente. Somente depois de crescer é que você


percebeu que ela desempenhava outros papéis, como esposa, irmã,


filha, profissional liberal, e assim por diante. É difícil para a maioria


das crianças aceitar o fato de que as mães vivem vidas que não estão


inteiramente centralizadas na maternidade, tal o egocentrismo


natural de todas as crianças pequenas. Mas com o tempo


aprendemos a nos inserir em nossos papéis seguindo o exemplo dos


nossos pais.


Assumir mais papéis parece uma maneira de expandir nossa


experiência. Uma mulher que fosse apenas mãe acharia a vida


sufocante. Ser "completo" na nossa sociedade significa usar o maior


número possível de chapéus. Mas o mago encara a situação de uma


maneira completamente diferente. Para ele, ser completo significa


estar livre de todos os papéis.


— Sou um espírito livre, reduzido à aparência deste pequeno


corpo — diria Merlim. — Você pode envolver o sol com o polegar e o


indicador, mas mesmo assim a luz dele não cobre o céu?


Deixar de desempenhar papéis é um processo complicado, mas


você não pode ingressar no mundo do mago se você se definir


através dos papéis que desempenha. Qual é então a experiência de


se libertar totalmente dos papéis? Ela é na verdade bem simples.


Quando você acorda pela manhã, antes de começar a pensar no seu


dia, existe um momento em que você apenas se sente desperto, sem


que nenhum pensamento particular passe pela sua cabeça. Você é


apenas você, num simples estado de percepção consciente. Essa


experiência de simplicidade se repete de quando em quando durante


o dia, mas poucas pessoas notam esse fato, porque estamos


habituados a nos identificar com o processo de pensamento. Este


também prossegue através do dia. Na realidade, porém, você não é o


que você está pensando.


Você pode achar isso difícil de acreditar, mas os pensamentos na


sua cabeça não pertencem a você — eles pertencem ao seu nome,


aos papéis nos quais você se inseriu. Se você for uma mulher


pensando em seu filho, em como ele estará no colégio, no que


preparar para o jantar dele, e assim por diante, você não está tendo


esses pensamentos. É a Mãe que está. Se nas horas em que estou


envolvido com minha atividade de médico eu fico


44


pensando em diagnósticos, receitas, e assim por diante, é o Médico


que está tendo esses pensamentos. Mãe e médico são papéis úteis, é


claro, mas eles chegam ao fim, e, um dia, cada um de nós depara


com o enigma Quem sou eu? que nunca foi respondido, por melhor


que tenhamos desempenhado nossos papéis.


Não obstante, você pode escapulir dos papéis por um breve


espaço de tempo. Enquanto você lê esta página, dirija a atenção para


aquele que está lendo. Ou, enquanto estiver ouvindo música, volte a


atenção para aquele que está ouvindo. Ou, se você vir um arco-íris,


aviste aquele que está vendo. Em todos esses casos, você sentirá


imediatamente uma consciência que está alerta, desperta, isenta,


silenciosa, e contudo intensamente viva. O que você fez na verdade?


Você interrompeu o ato da observação para olhar de relance para o


observador. Este truque fornece um insight da absoluta certeza da


sua existência, porque além de toda a observação jaz o observador


imutável. Esse observador é o fator intemporal de cada experiência


temporal, e esse observador é você.


Ser intemporal pode ser uma perspectiva assustadora se você


estiver fortemente identificado com os papéis que desempenha.


Inúmeras pessoas ficam arrasadas quando perdem o emprego,


quando os filhos crescem e saem de casa, quando o cônjuge muito


amado morre. O^enso do^&
39;Eu" dessas pessoas está de tal modo


ligado aos seus nomes, rótulos e papéis, que elas não tiveram tempo


de descobrir quem realmente são.


Ser totalmente humanos nos torna reais. A realidade não pode ser


definida, só pode ser experimentada. Fique atento a esses breves


momentos do dia em que você vivência seu eu fundamental por trás


de um alento, um sentimento, uma sensação. Antes de pular da cama


amanhã, veja se consegue captar a fugidia sugestão de ser, pura e


simplesmente, antes que a mente comece a tagarelar. Esse estado


sereno, silencioso e inominável é extremamente satisfatório. Ele não


pode ser tocado pelo pensamento, pela fala ou pela ação. Ele é o


castelo cujos muros nenhum exército jamais conseguirá escalar, e


que abriga o tesouro onde estão guardadas as verdadeiras riquezas


da vida.


45


5~ Lição


Os magos não acreditam na morte. A luz da


consciência, tudo está vivo.


Não existem inícios ou fins. Para o mago, eles não


passam de elaborações mentais.


Para viver mais plenamente, é preciso morrer para o


passado.


As moléculas se dissolvem e se extinguem, mas a consciência


sobrevive à morte da matéria na qual ela viaja.


Todas as histórias a respeito de Merlim, mesmo as mais confusas,


tinham como certo que ele vivia às avessas no tempo. Na sua época,


isso causava uma grande consternação entre os mortais. O velho


mago gritava "Cuidado!" um segundo depois de Artur ter derramado


água quente em si mesmo. Ele aparecia inesperadamente nos


enterros e dava pancadinhas debaixo do queixo do cadáver como se


este fosse um bebé recém-nascido. Se isso já não fosse estranho o


bastante, os aldeões sussurravam que Merlim fora visto nos


cemitérios oferecendo presentes de bati-zado às lousas das


sepulturas.


—Você pode me explicar por que você vive às avessas no tempo?


— perguntou certa vez o menino Artur.


—Porque todos os magos vivem assim —respondeu Merlim.


—E por quê?


—Porque essa é a nossa escolha. Ela tem muitas vantagens.


—Não consigo ver nenhuma — insistiu Artur, pensando nos


estranhos hábitos de Merlim, como o de tomar o café da manhã


antes de ir para a cama.


46


—Venha, vou lhe mostrar — disse Merlim, saindo com Artur da


gruta de cristal. Era um dia quente de verão, o sol estava a pino e as


rosas silvestres curvavam-se, quase tocando o chão.


—Agora — disse Merlim, entregando uma pá ao menino. —


Comece a cavar uma vala daqui até ali, e não pare enquanto eu não


mandar.


Artur pôs mãos à obra, cavando com toda a força. Uma hora


depois, estava exausto, mas Merlim ainda não havia dito para ele


parar.


—Já é suficiente? — perguntou o menino. Merlim olhou para a


vala, que devia ter mais ou menos dois metros de extensão por


sessenta centímetros de profundidade.


—Sim, já está bom — respondeu Merlim. — Agora encha o buraco


de novo.


Apesar de acostumado a obedecer, Artur não gostou muito dessa


ordem. Suando e de cara amarrada, ele labutou debaixo do sol


causticante até encher inteiramente a vala.


—Sente-se agora do meu lado — disse Merlim. — O que você


achou desse trabalho?


—Completamente despropositado — deixou escapar Artur.


—Exatamente, e o mesmo acontece com quase todo esforço


humano. Mas a falta de propósito só é descoberta tarde demais,


depois que o trabalho já foi feito. Se você vivesse às avessas no


tempo, você teria percebido que cavar aquela vala era despropositado


e não teria nem começado o trabalho.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


As lendas da época arturiana que afirmavam que Merlim vivia às


avessas no tempo eram uma simplificação. Os narradores de mitos


de antigamente adoravam surpreender, e qualquer leitor que


tentasse decifrar o significado de viver às avessas no tempo se


maravilhava com a estranha criatura que Merlim realmente era. Em


decorrência disso, alguns o tomavam por um profeta ou adivinho.


Poder-se-ia dizer que qualquer profeta vivia às aves47


sas no tempo, visto que os profetas parecem vivenciar o que ainda


vai acontecer.


Mas num nível mais profundo, a mente medieval considerava que


viver às avessas no tempo representava um desafio ao ciclo natural


de nascimento e morte. Alguém que fica mais jovem a cada dia,


livrou-se das leis imutáveis que fazem com que todos os seres vivos


degenerem e morram. Ao que tudo indica, o dia do nascimento do


mago é aquele em que ele desaparece da face da terra, supondo-se


que ele venha a morrer um dia.


Para esclarecer esse paradoxo, precisamos compreender o tempo


como o mago o vivência.


—Vocês, mortais, extraíram seu nome da morte — declarou


Merlim na gruta de cristal. — Vocês seriam chamados imortais se


acreditassem ser criaturas da vida.


—Isso não é justo — protestou Artur. — Não escolhemos a morte.


Ela nos foi imposta.


—Não, vocês estão apenas acostumados com ela. Todos vocês


ficam velhos e morrem porque vêem os outros envelhecerem e


morrerem. Livrem-se desse hábito desgastado, e vocês deixarão de


ficar presos à rede do tempo.


—Nos livrarmos da morte? Como podemos fazer isso? —


perguntou Artur, curioso.


—Para começar, recue à origem do seu hábito. Lá você


encontrará o raciocínio falso que o convenceu inicialmente a ser


mortal. O raciocínio falso jaz na raiz de qualquer crença falsa.


Descubra então o defeito da sua lógica e destrua-o. Tudo é muito


simples.


Artur passou à lenda como o "antigo e futuro rei", uma indicação


de que ele também escapara ao feitiço da morte. O que ele


encontrou? Qual a falsa lógica que os magos enxergam atrás da


mortalidade? Basicamente, é nossa identificação com p corpo. O


corpo humano nasce, envelhece e morre. A identificação com esse


processo é uma lógica falsa, mas, uma vez abraçado, ele nos condena


a morrer também. Sucumbimos ao encantamento da mortalidade e


nossa única escolha é nos submetermos à morte.


Para quebrar o feitiço, precisamos deixar de nos identificar com o


temporal e passar a nos identificar com o intemporal. Por


48


conseguinte, o mago empreende uma jornada para descobrir a


verdade sobre o tempo — este é o verdadeiro significado da lenda


que diz que Merlim vivia às avessas no tempo. Ele queria recuar à


origem do tempo.


VIVENDO COM A LIÇÃO


Na experiência do mago, o tempo é apenas a eternidade


quantificada.


— Todos estamos rodeados pelo intemporal — afirmou Merlim. —


A questão é: O que fazer com isso?


Fragmentar o intemporal em pequenas partes cria o tempo, e


essa é a nossa tendência. O tempo, para nós, corre de uma maneira


linear. Os relógios marcam segundos, minutos e horas, registrando a


longa marcha do passado através do presente e em direçãoao futuro.


Essa concepção linear do tempo foi desbancada por Einstein, quando


ele provou que o tempo é relativo, que tem a capacidade de acelerar


ou desacelerar.


Além de se parecer um pouco com Merlim, Einstein deve ter de


fato penetrado no mundo do mago para propor essa noção


espantosa. Ele podia sentir a teoria da relatividade, confessou


Einstein, muito antes de poder demonstrá-la matematicamente.


Todos sentimos o tempo como algo fluido e relativo — ipakjuer


experiência feliz faz com que ele ande mais rápido, qualquer


experiência dolorosa faz com que ele ande mais devagar. Um dia


com o ser amado parece um segundo, uma manhã na cadeira do


dentista, uma eternidade.


Mas essa nova maneira de perceber o tempo pode realmente nos


fazer transcender a morte? Para o mago, a morte é meramente uma


crença. A relatividade nos permite modificar nossa crença no tempo


linear. Não é difícil imaginar outros exemplos que nos permitiriam


acreditar na imortalidade. Se você encarar o universo, por exemplo,


como um grande depósito de energia, então, do ponto de vista da


energia, nada perece, porque a energia não pode ser destruída. Você


sempre estará presente como energia.


49


—Mas eu não quero ser energia — protestou Artur quando


defrontado com essa lógica.


—Esse é seu erro fatal — salientou Merlim. — Como você se


identifica com o corpo, você acha que precisa de uma forma. A


energia é informe, de modo que você acha que ela não pode ser


você. Mas eu só estava mostrando que a energia não pode nascer;


ela não tem início nem fim. Enquanto você achar que você teve um


início, você não encontrará sua parte imortal, que precisa nunca ter


nascido para que possa não morrer nunca.


Contemplando a expressão abatida do menino, Merlim declarou


mais moderadamente:


— Não estou roubando seu corpo para instituir que você é


informe. Você só precisa enxergar o informe dentro da forma, e


depois você pode ter a imortalidade em meio à mortalidade.


As moléculas se formam e se dissolvem, retornando ao caldo


primordial de átomos. Mas a consciência sobrevive à morte das


moléculas nas quais ela viaja. O que antes era um feixe de energia


num raio de sol transforma-se numa folha, vindo depois a cair e


transformar-se novamente em solo. Essa mudança de estado


atravessa muitas fronteiras. O raio de sol é invisível, ao passo que as


folhas e o solo são visíveis. A folha está viva e se desenvolve,


enquanto os raios de sol não. As cores da luz, da folha e do sol são


diferentes, e assim por diante.


Mas todas essas transformações existem como elaborações da


mente. A verdadeira energia presente no raio de sol não vivência


nenhuma transformação — ela é simplesmente parte da constante


interação de fótons e elétrons que tudo sustenta, quer a percebamos


como morta ou viva. A ciência moderna já conduziu nossa mente à


nova perspectiva adequada; agora temos que aprender a vivê-la. Os


pensadores de visão ampla como Einstein só podem nos ajudar a


superar as barreiras mentais; somos nós que temos que sobrepujar


as barreiras emocionais e instintivas.


O medo emocional da morte é uma dessas barreiras. Na


concepção dos magos, todo o fenómeno da morte está ligado ao


medo, embora esse medo esteja tão profundamente enraizado que


seus efeitos não são imediatamente óbvios. Um simples exercício,


porém, pode revelar esse fato para você. Sente-se com


50


uma pilha de várias folhas de papel num local tranquilo em que você


não vá ser distraído. Coloque a ponta de uma caneta sobre a


primeira folha de papel e prometa a si mesmo não erguer a caneta


durante cinco minutos. Comece a escrever as palavras "Tenho medo


de" e termine a frase como quiser.


Sem erguer a caneta, escreva novamente as mesmas palavras,


"Tenho medo de" e novamente termine com qualquer coisa que lhe


venha à mente. Enquanto fizer isso, respire lenta e ritmicamente sem


fazer pausas intermediárias. Essa respiração na qual a inalação e a


exalação estão ligadas é às vezes chamada de circular. Desde a


antiguidade, esse tipo de respiração refletida é considerada uma


forma de evadir as inibições da mente consciente. Sem essa técnica,


seria muito mais difícil alcançar o nível inconsciente do medo.


Enquanto você executa a respiração circular, inalando e exalando


sem fazer pausas, continue a completar o início das frases, "Tenho


medo de" sem parar e sem levantar a caneta do papel. Depois que


você se soltar e começar a escrever seus medos ocultos, talvez você


ache difícil parar.


Se você estiver fazendo livremente o exercício, deixando que seus


pensamentos simplesmente se expandam sem tentar controlá-los,


você descobrirá muitas associações estranhas e imprevistas com o


medo. E esses receios inesperados trarão consigo outras emoções,


não apenas o medo mas também a raiva, o sofrimento e um grande


alívio. Temores enclausurados podem começar a fluir.


Deixe que tudo emerja, mas volte sempre à respiração e não


levante a caneta do papel enquanto não tiver terminado. Uma


advertência: se você começar a sentir um mal-estar, pare. No final


do exercício, também é uma boa ideia deitar-se e descansar para


recuperar o equilíbrio habitual. Considero este exercício


extremamente eficaz na primeira vez que é executado, mas ele


poderá ser repetido sempre que você quiser.


Qual a relação disso tudo com a perspectiva de imortalidade do


mago? Poderíamos dizer que dedicar ao medo uma sessão de cinco


minutos é como descascar uma camada de um sistema de crenças. A


imortalidade está no âmago da vida humana, mas está envolvida em


inúmeras camadas de convicções contrárias. Es51


sas convicções tornam-se concretas na vida cotidiana — vivemos


nossos medos, desejos, sonhos, associações inconscientes e, em última


análise, nossa crença mais profunda de que devemos morrer. A mente


racional provavelmente defenderia essa posição alegando que a morte


está presente em toda parte na natureza.


Mas Merlim diria:


— Examine mais de perto suas dúvidas racionais. Atrás das dúvidas


situa-se o que duvida, atrás daquele que duvida o pensador, atrás do


pensador uma partícula de consciência pura que precisa estar


consciente antes que qualquer pensamento possa surgir. Eu sou essa


partícula de consciência. Sou imortal e imune ao tempo. Não especule


apenas sobre mim, julgando se deve me aceitar ou rejeitar. Mergulhe


interiormente, descasque suas camadas de dúvida. Quando finalmente


nos encontrarmos, você saberá quem eu sou. E então a imortalidade


não será simplesmente uma noção e sim uma realidade viva.


52


6a Lição


A consciência do mago é um campo que existe em


toda parte.


As correntes de conhecimento contidas no campo são


eternas e circulam eternamente.


Séculos de conhecimento estão comprimidos em


momentos reveladores.


Vivemos como ondulações de energia no vasto oceano de


energia.


Quando o ego é posto de lado, temos acesso à totalidade


da memória.


Certa manhã, Artur acordou muito cedo, tremendo em sua cama de


palha, e deu com Merlim olhando para ele do outro lado da gruta.


—Eu estava tendo um sonho mau — resmungou Artur. — Eu era a


última pessoa na face da terra e vagava por florestas e ruas vazias.


—Sonho? — disse Merlim. — Não foi um sonho. Você é, de fato, a


última pessoa sobre a terra.


—Como assim? — perguntou Artur.


—Você não concordaria que a única pessoa na terra também teria


que ser a última pessoa?


-Sim.


— Bem, do ponto de vista da sua auto-imagem, que as


pessoas no futuro chamaram de ego, você é o único.


53


— Como você pode dizer isso? Você e eu estamos juntos


aqui, não estamos? E visitamos vilarejos e cidades que abrigam


milhares de pessoas.


Merlim sacudiu a cabeça.


— Se você olhar verdadeiramente para si mesmo, o que você


é? Uma criatura de experiências que estão constantemente se


transformando em memórias. Quando você diz &
39;Eu&
39;, você está


indicando esse feixe único de experiências com sua história


particular que mais ninguém pode compartilhar.


"Nada parece mais pessoal do que a memória. Você e eu


percorremos caminhos separados, embora caminhemos juntos. Não


posso contemplar uma flor sem ter uma experiência da qual você não


participa. Não existe uma única lágrima ou sorriso que possa


verdadeiramente ser dado a outra pessoa."


Quando Merlim terminou seu discurso, Artur parecia angustiado.


—Você faz com que todo mundo pareça totalmente sozinho —


comentou o menino.


—Eu não — replicou Merlim. — É o trabalho do ego que o torna


solitário, encerrando-o num mundo no qual ninguém mais pode


entrar. Reparando na angústia do discípulo, Merlim amaciou a voz.


— No entanto, o ego pode ser posto de lado. Venha comigo.


Não amanhecera, e ele se levantou e saiu com Artur da gruta,


mostrando ao menino o céu ainda todo estrelado.


—A que distância você supõe que esteja aquela estrela? —


perguntou o mago, apontando para a estrela Sírio. Eram meados do


verão, e Sírio estava brilhante e baixa em relação ao horizonte.


—Não sei. Suponho que ela esteja mais distante do que eu possa


medir, ou possivelmente imaginar — respondeu Artur.


Merlim sacudiu a cabeça.


— Não existe nenhuma distância. Considere o seguinte: para


que você veja aquela estrela, a luz precisa entrar em seu olho,


certo? Feixes luminosos fluem continuamente de lá para cá,


como uma ponte invisível. O que é uma estrela a não ser luz? Por


conseguinte, se ela é luz tanto aqui quanto lá, e também na ponte


de ligação, não existe separação entre você e aquela estrela.


Ambos são parte do mesmo campo de luz inconsútil.


54


— Mas ela parece estar muito longe. Afinal de contas, não


posso arrancá-la do céu — objetou Artur.


Merlim deu de ombros.


— A_sep_aração é apenas umajhisão. Você parece estar


separado de mim e das outras pessoas porque seu ego adouFã


perspectiva de que estamos todos isolados e sozinhos. Mas~eú


lhe garanto que se você pusesse seu ego de lado, você nos veria


circundados por um campo infinito de luz, que é a consciência.


Cada pensamento seu nasce num vasto oceano de luz e a ele


retorna, junto com cada célula do seu corpo. Esse campqjie


consciência está em toda parte, uma ponte invisível para tudo o


mais que existe.


"Portanto, não existe nada em você que não seja parte_de todas


as outras pessoas — exceto na visão do ego. Seu trabalho é


transcender o ego e mergulhar no oceano universal de consciência."


Artur ficou pensativo.


— Terei que pensar no que você disse.


— Faça isso. — Merlim bocejou. — Ainda estou com sono.


O mago voltou-se para entrar na gruta aquecida e aconche


gante.


—Oh, já ia me esquecendo, antes de voltar para a cama, será que


você pode pendurar de novo aquela coisa?


—Coisa? — Artur olhou para baixo, surpreso, e percebeu que a


estrela Sírio havia sido arrancada do céu e deixada a seus pés.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


Como já vimos, o ego assumiu a função de selecionar e rejeitar


experiências. Em decorrência disso, o ego cria o isolamento, uma vez


que qualquer coisa que seleciona e escolhe cria uma lacuna. Entre


você e algo que você rejeitou, existe uma lacuna. Entre você e mim


também existe uma lacuna, porque escolhemos não ter a mesma


experiência — nossos egos são separados. Todos temos como certo


que não poderíamos possivelmente compartilhar experiências, pelo


menos não totalmente. Não


55


posso entrar em todas as suas emoções, medos, desejos e sonhos,


nem você nos meus. O melhor que geralmente fazemos é tentar


construir pontes de comunicação, que amiúde demonstram ser


fracas demais para se susterem. As coisas mais pessoais a seu


respeito desde que você nasceu, suas lembranças e experiências,


conduzem à solidão e ao isolamento.


Entretanto, o mago nunca está isolado, porque o ego não penetra


na maneira como ele vê as coisas. Ego aqui significa a sensação de


um "Eu" pessoal, incompartilhável. Merlim disse certa vez ao menino


Artur:


—Tente se esquecer de mim se você puder.


—O quê? — indagou Artur, surpreso. — Eu nunca poderia


esquecê-lo, e não quero fazê-lo.


Ele ficou ansioso, imaginando que Merlim estivesse de alguma


maneira rejeitando-o.


—Você quer me esquecer? — perguntou ele.


—Oh, absolutamente — retrucou calmamente Merlim. — Veja,


quero que sejamos amigos, e se eu me lembrar de você, o que terei?


Não o verdadeiro você, mas sim uma imagem morta. Mas enquanto


eu puder me esquecer de você diariamente, acordarei e verei você


mais uma vez no dia seguinte. Verei o verdadeiro você, despido de


imagens desgastadas.


Pôr o ego de lado significa pôr a memória de lado. Quando isso é


feito, as pessoas deixam de ficar isoladas. A mente individual limita


nossa percepção, fazendo com que olhemos o mundo como se


através de um olho mágico. No mundo do mago, todos compartilham


a mesma consciência universal. Ela flui eternamente e abarca todos


os pensamentos, emoções e experiências.


—Na medida em que você é uma pessoa — ensinou Merlim —,


você é como uma gota no oceano. Na medida em que você é parte da


consciência universal, você é todo o oceano.


—A gota individual simplesmente não se dissipa e se perde no


oceano? — perguntou Artur.


—Não, o indivíduo nunca pode ser obliterado, nem mesmo


através da experiência do oceano da consciência — Merlim lhe


assegurou. — Você pode ser você mesmo e ser ao mesmo tempo o


Todo. Isso pode parecer um mistério, mas é assim que é.


56


VIVENDO COM A LIÇÃO


Todos nos agarramos à memória porque elanos define. Mas para


eliminar a separação e o isolamento, você precisa estar disposto a ver a


irrealidade da memória. Pense em alguém que você conhece bem —


seu marido ou esposa, um irmão ou um amigo. Pense detalhadamente


nessa pessoa e pergunte a si mesmo o que você realmente sabe a


respeito dela. Vá além de meros fatos, como a cor dos olhos, o peso, o


trabalho ou o endereço dessa pessoa. Em vez disso, pense a respeito


de características mais pessoais, do que ela gosta e não gosta, de


lembranças e interações vívidas.


Quando você terminar este exercício, você poderá supor que formou


um retrato acurado dessa pessoa. Entretanto, tudo que você recordou


veio da sua memória, e, por conseguinte, o que você descreveu é seu


ponto de vista individual. Essa mesma pessoa poderia ser descrita de


uma maneira completamente diferente a partir de outra perspectiva.


O que parece provável para você é improvável para outras pessoas,


aquilo de que você se lembra pode ser completamente olvidável aos


olhos de um outro indivíduo.


Você não precisa ir muito longe para compreender que tudo que


você descreveu é totalmente relativo. A ideia que você faz de alto


equivale à noção de baixo ou normal de outra pessoa, o pesado pode


ser encarado como leve, o claro como escuro, o amigável como hostil,


e assim por diante. Você está na verdade descrevendo sua perspectiva,


não a pessoa. Além disso, suas experiências com aquela pessoa são


exclusivamente suas, o que torna sua descrição ainda mais


idiossincrásica. Se tudo que você julgava saber a respeito de outra


pessoa acabou estando indire-tamente relacionado com você, é óbvio


que a memória serve para isolar. Nós fragmentamos o mundo através


da maneira pessoal como o encaramos, criando conchas de isolamento


nas quais ninguém consegue penetrar totalmente.


57


Por ser completamente relativo, seu ponto de vista não pode ser


considerado real. A realidade não depende de um ponto de vista — ela


simplesmente é. E quase todos nós que vivemos dentro do nosso


mundo particular, não entramos em contato com muita frequência com o


real. O irreal é o habitat dos sentidos; o real é o habitat do mago. Você


precisa olhar atrás da cortina da memória para começar a descobrir a


verdadeira trama da realidade.


58


7- Lição


Quando as portas da percepção forem purificadas, você começará


a enxergar o mundo invisível — o mundo do mago.


Existe dentro de você um manancial de vida onde você pode


purificar-se e transformar-se.


Purificar-se consiste em livrar-se das toxinas da sua


vida: emoções tóxicas, pensamentos tóxicos


e relacionamentos tóxicos.


Todos os corpos vivos, físicos e sutis, são feixes de energia que


podem ser diretamente percebidos.


Certo dia de verão, quando Merlim e Artur descansavam sonolentos


à beira de um riacho, o mago disse:


— Li um poema quando era menino, há muito tempo no


futuro. Será que você gostaria de ouvi-lo?


Artur fingiu estar dormindo, cobrindo o rosto com a mão para


proteger-se do sol de julho. Sempre que Merlim falava sobre o futuro


como seu passado, o menino necessitava de uma boa dose de


concentração para acompanhá-lo.


— Você não precisa fingir que não está ouvindo — prosse


guiu Merlim —, pois este poema é belo demais para ser despre


zado:


E se você dormisse, E se,


em seu sono, você sonhasse? E se,


59


em seu sonho,


você fosse até o céu


e lá colhesse


uma bela e estranha flor?


E se,


quando você acordasse,


você tivesse a flor


na mão?


E então?


COMPREENDENDO A LIÇÃO


Quando acordamos, fixamos a atenção nas visões e nos sons do mundo


material, de modo que é fácil supor que o corpo físico é o único corpo


que temos. O que é um corpo? A definição mais ampla seria uma


coleção de células trabalhando em conjunto para formar uma unidade


mais vasta. Por ser muito maior do que a soma de suas partes, o corpo


pode agir, pensar e sentir de maneiras absolutamente impossíveis


para uma única célula.


Apliquemos esta definição a algo inesperado — os sentimentos.


Diariamente você tem sentimentos isolados que são como células


individuais; reúna-os, e você terá seu corpo emocional. Ele é, em


primeiro lugar, uma história viva de todas as coisas que você gosta e


não gosta, bem como dos seus temores, esperanças, desejos e assim


por diante. Se seu corpo emocional pudesse andar pela sala, seus


amigos o reconheceriam imediatamente, visto que o corpo emocional


nos confere uma enorme parte da nossa identidade.


Outros corpos, também invisíveis, ampliam nossa singularidade. Há


o corpo de conhecimento, que vem crescendo com você desde que você


nasceu. Você pode chamá-lo de corpo mental. O conhecimento é mais


sutil do que as emoções, uma vez que é formado de conceitos


abstratos. Porém ainda mais sutis são todas as razões que você tem


para viver, suas convicções mais profundas a respeito da existência e


da natureza da


60


vida, que estão armazenadas em seu corpo causal, a parte de você


que lhe permite compreender a existência. Nele residem as sementes


mais profundas da memória e do desejo.


Todos esses corpos são exclusivamente seus. Se seu corpo mental e


causal pudessem entrar numa sala, você também seria imediatamente


identificável. Portanto, a identidade — seu sentimento de ser "Eu" —


emana da sua percepção desses corpos. O mago sabe que esse brilho se


desloca do corpo mais sutil para o mais denso. 0^&
39;Eu" com o quaWocê


sejdentifica é criado inicialmente por suas crenças e razões para viver


(corpo causal), que dão origem às ideias (corpo mental) e sentimentos


(corpo emocional). Somente no final da sequência o corpo físico recebe


o impulso da vida. Como disse Merlim:


— Os mortais acreditam ser máquinas físicas que aprenderam a


pensar. Na verdade, eles são pensamentos que aprenderam a criar uma


máquina física.


VIVENDO COM A LIÇÃO


Sob o aspecto prático, esse conhecimento encerra enormes


implicações. Se você supuser que é acima de tudo um ser físico, você


viverá a vida de uma maneira completamente diferente de alguém que


se considere fundamentalmente um ser sutil.


Artur e Merlim voltavam para casa após uma viagem a Questing


Wode, a densa floresta que era o domínio do mago. Como de costume,


Artur estava muito mais cansado do que Merlim depois do esforço; ele


se deitou debaixo de uma árvore para tirar um cochilo. No entanto,


tão logo havia fechado os olhos, sentiu que alguém estava lhe


cutucando as costelas.


— Que é? — resmungou ele, sonolento. — Deixe-me dormir.


Cutucando-o de novo com um bastão de aveleira, Merlim


sacudiu a cabeça do menino.


—Você precisa estar forte para a última etapa do percurso. Se você


tirar um cochilo, ficará exausto.


—Exausto? É exatamente por estar exausto que estou tentando


cochilar — replicou Artur.


61


—Ah, mas você trabalha muito mais dormindo do que acordado —


disse Merlim. Ele sabia que esse comentário despertaria a


curiosidade de Artur, e depois de se virar de um lado para o outro


algumas vezes na grama macia, o garoto se sentou.


—Que tipo de trabalho eu faço durante o sono? Por que não tenho


consciência disso? — perguntou ele.


—Oh, todos os tipos de trabalho — retrucou Merlim de um modo


casual. — Quando você dorme, seu corpo físico descansa e se renova.


Nos sonhos, o corpo emocional concretiza seus desejos, temores,


esperanças e fantasias. O corpo causal retorna ao mundo de luz, que


algumas pessoas percebem como o céu. Outras, contudo, o


percebem como a solução repentina de um problema ou um insight


inesperado que elas têm ao acordar. De todas essas maneiras, você


está reajustando a intricada coordenação existente entre seus


corpos.


"O ato mais criativo que você pode executar é o ato de criar a si


mesmo. Ele tem lugar em incontáveis níveis, visíveis e invisíveis. Ele


dirige toda a inteligência do universo, comprimindo bilhões de anos


de conhecimento em cada segundo da vida.


"Você não compreende", disse Merlim a seu discípulo, "que a


história do universo o trouxe aqui neste segundo? Somos os filhos


privilegiados da criação, para quem tudo isso foi feito."


Se sua verdadeira origem situa-se no mundo sutil e invisível em


vez de no mundo físico, então seu corpo não é na verdade formado


por células. Elas não são as partes componentes da vida, e o mesmo


podemos dizer com relação aos átomos e moléculas nos quais as


células podem se desmembrar. O corpo é construído sobre


abstrações invisíveis chamadas informação e energia — ambas


contidas em seu ADN.


Mas o mago esmiuça ainda mais profundamente o mundo


invisível, sabendo que as crenças mais profundas são as forças


criativas mais poderosas. Seu corpo físico surgiu do impulso


impetuoso da vida contido no ADN. Sem esse impulso, as


informações e a energia são inertes. Analogamente, seus pensamentos


e emoções penetram no mundo oriundos dos impulsos


invisíveis de inteligência que formam seu corpo mais sutil, o corpo


causal.


62


De acordo com os magos, o motivo de dormirmos à noite é


organizarmos esses corpos depois do esforço exercido quando


estamos despertos e ativos.


Mas o trabalho mais sutil de todos é executado no puro silêncio.


Na próxima vez em que você notar um momento passageiro de


tranquilidade no qual você não tenha pensamentos, desejos ou


sentimentos, não o considere um momento de distração. Sua


consciência deslizou entre as fissuras dos corpos físico, emocional,


mental e causal. No silêncio profundo, retornamos à causa última, ao


Ser puro. Ali você se vê frente a frente com o útero da criação, a fonte


de tudo que existiu, existe ou existirá, que é simplesmente você.


63


8- Lição


O poder é uma faca de dois gumes.


O poder do ego busca controlar e dominar.


O poder do mago é o poder do amor.


A sede do poder é o eu interior.


O ego nos segue como uma sombra escura. Seu poder é


inebriante e sedutor, porém essencialmente destrutivo.


O eterno conflito de poder termina na unidade.


Pouco antes de deixar a proteção de Merlim, Artur ficou muito


melancólico. Eleja estava com quase quinze anos, e raramente vira


outras pessoas.


— Você está triste por que vai ficar com eles? — perguntou


Merlim. — Afinal de contas, você pertence à espécie deles.


Artur afastou o olhar.


—Estou triste, mas não é por esse motivo.


—Por que então?


—Quero lhe fazer uma pergunta, mas não sei como fazê-la, ou se


devo fazê-la.


— Faça a pergunta.


Artur mostrou-se hesitante.


— Não é sobre nenhuma lição que você me ensinou. Mas é


uma coisa que desejo saber acima de tudo, quer dizer, se você


quiser me contar... — Ele fez uma pausa, meio sem jeito.


— Talvez você queira saber como é estar apaixonado?


Artur fez que sim com a cabeça, feliz por ter sido salvo pela


intuição de Merlim. O velho mago pensou por um momento e disse:


64


— Em primeiro lugar, não se envergonhe, porque você fez


uma pergunta realmente importante. Quando se está apaixona


do, existe algo que não pode ser captado através de palavras, mas


venha comigo.


Merlim conduziu Artur a uma clareira onde brilhava o sol do


meio-dia. Uma vela acesa surgiu na mão do mago, e ele a ergueu


contra o sol.


—Você consegue ver se ela está acesa ou apagada? — perguntou


Merlim.


—Não — respondeu Artur. O sol estava tão brilhante que a chama


da vela se tornara invisível.


—Mas veja — disse Merlim. Ele colocou uma bola de algodão


perto da vela, e ela se inflamou imediatamente.


—O que tem isso a ver com o amor? — perguntou o rapaz. Mas


Merlim não respondeu. Ele apenas pegou uma flor de genciana


silvestre e espremeu duas gotas de seu sumo sobre os dedos de


Artur.


— Prove — ordenou ele. Artur fez uma


careta.


— É muito amargo.


Merlim levou o rapaz até um lago e lhe disse que lavasse as


mãos.


—Agora prove a água — ordenou ele. — Você sente algum


amargor?


—Não — admitiu Artur. — Mas o que tem isso a ver com o amor?


Novamente Merlim não respondeu, embrenhando-se ainda mais com


o rapaz na floresta.


—Sente-se e fique imóvel — disse ele suavemente. Artur fez como


lhe fora ordenado. Depois de alguns momentos, um camundongo


surgiu furtivamente alguns metros à frente. Uma sombra passou pelo


alto, e antes que pudesse se mover, o camundongo foi arrebatado


por uma águia, que partiu voando com sua presa em direção a um


ninho num penhasco escarpado.


Desconcertado, Artur disse:


— Mas você disse que ia me ensinar o que é o amor. Por


acaso alguma dessas coisas que você me mostrou tem relação


com a minha pergunta?


65


— Ouça — disse o mestre. — À semelhança da vela que se torna


invisível diante do sol, seu ego se dissolverá na força arrebatadora


do amor. Como o sabor amargo que não pode ser detectado quando


é diluído pelo lago, o amargor da sua vida será mais doce do que a


mais doce das águas quando combinado ao amor. E como a presa


devorada pela águia, seu orgulho se tornará um lampejo aos olhos do


amor que o consome.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


O poder do amor é o poder da pureza. A palavra amor é empregada


de muitas maneiras, mas é uma palavra sagrada para o mago,


porque para ele, o amor é "aquilo que dissolve todas as impurezas,


deixando apenas o verdadeiro e o real".


—Enquanto você sentir medo, você não poderá amar de verdade


— advertiu Merlim. — Enquanto você sentir raiva, você não poderá


amar de verdade. Enquanto você tiver um ego egoísta, você não


poderá amar de verdade.


—Como então eu poderei amar? — indagou Artur, por saber que


o medo, a raiva e o egoísmo eram coisas que ele sentia com bastante


frequência.


—Ah, eis o mistério — replicou Merlim. — Por mais impuro que


você seja, o amor irá à sua procura e trabalhará em você até que


você seja capaz de amar.


O amor procura a impureza para poder consumi-la. Não existe


algo como uma pessoa sem amor, existem apenas pessoas que não


conseguem sentir a força do amor. Por ser invisível e continuamente


presente, o amor é mais do que uma emoção ou um sentimento; ele é


mais do que o prazer ou até que o êxtase. O amor é encarado pelos


magos como o ar que respiramos, a circulação em cada célula. O


amor tudo permeia a partir da sua fonte universal.


Eieij)j^exsurjrejTiivpíiDiu_e sejTj^mrjregar_a_ força, o amor tudo


atrai para si. Até no sofrimento, o poder do amor continua seu


trabalho, bem longe da vista do ego e da mente. Comparadas com o


amor, todas as outras formas de poder são medíocres.


66


—Você é tão poderoso quanto um rei? — perguntou Artur a


Merlim.


—O que o faz pensar que um rei possui algum poder? — indagou


Merlim como resposta. — O poder do rei lhe é conferido por seus


súditos, que podem se revoltar a qualquer momento e retomá-lo. É


por isso que todos os reis vivem com medo, eles sabem que tudo


que possuem é na verdade emprestado. O súdito mais pobre do


reino é mais rico do que o rei, ou seja, até que ele se desfaça do seu


poder e se curve diante dele.


O verdadeiro poder na vida é o poder interior. Ser capaz de ver o


mundo à luz do amor, que só pode vir do interior, é viver sem medo,


numa paz inabalável.


O amor encerra muitos segredos que escapam à atenção das


pessoas. Para__receber amor. primeiro_yocê precisa dá-lo JPara_


çertifícar-se de que outra pessoa o ama incondicionalmente, você


não pode impor condições a ela-Para aprender a amar outra pessoa,


você precisa primeiro amar a si mesmo. Grande parte dessas


afirmações parecem óbvias. Por que, então, não agimos de acordo


com esses preceitos?


A resposta do mago é que o amor precisa ser descoberto,


despido das camadas de raiva, medo e egoísmo que o encobrem


como um verniz velho. Para alcançar uma vida de amor total,


purifique a vida que você tem. Não existe uma maneira certa ou


errada de abordar o amor.


— Uma pessoa que procura desesperadamente pelo amor —


disse Merlim — me faz lembrar um peixe que busca desespera


damente a água.


O amor pode estar extremamente ausente da vida, mas é na


verdade o olho do observador, e não o mundo "lá fora", que priva


alguém do amor.


O primeiro passo para alcançar o amor como um aspecto


completo, inabalável da sua vida é redefinir o que você chama de


amor neste momento. Quase todos nós pensamos no amor como


uma atração que sentimos por outra pessoa, como uma força


carinhosa que nos faz sentir queridos, como prazer e alegria, ou


como uma emoção ou sentimento poderoso. Embora o amor seja um


aspecto de todas essas definições, o mago diria que, na melhor das


hipóteses, elas são parciais.


67


— O amor que vocês, mortais, definem precisa esmaecer e


morrer — declarou Merlim. — O suposto amor de vocês vem e


vai embora. Ele se desloca de um objeto de desejo para outro. Ele


rapidamente se transforma em ódio se seus desejos são contra


riados. O verdadeiro amor não pode mudar, ele não está relaci


onado com nenhum objeto, e não pode se transformar em outra


emoção porque, em primeiro lugar, ele não é uma emoção.


Se descartarmos todos os tipos falsos ou superficiais de amor, o


que resta? A resposta começa a emergir com a auto-aceitação. Por


ser uma força interior, o amor é visto inicialmente dentro de você e


dirigido para você.


—Os mortais ficam febris, inquietos e ansiosos com o amor —


disse Merlim. — Se eles não conseguem ter a pessoa amada, eles


acham que vão morrer. Mas o amor não pode torná-lo inquieto, não o


verdadeiro amor, porque ele nunca procura ir para o exterior. O ente


querido mais desejado é apenas uma extensão de você mesmo. O


amor que você acha que vai receber de outra pessoa revela uma


limitação da sua consciência. Para o mago, todas as formas de amor


vêm do eu.


—Isso soa terrivelmente egoísta — objetou Artur.


— Você está confundindo o eu com o ego, quando na realidade o


eu é o espírito — retrucou Merlim. — O egoísmo vem do ego, que


sempre quer possuir, controlar e dominar. Quando o ego diz: "Eu o


amo porque você é meu", ele está fazendo uma declaração sobre a


dominação e a posse, não sobre o amor. Aqueles que aprenderam


verdadeiramente a amar se despiram primeiro do egoísmo. Depois


disso, tem início uma experiência completamente diferente.


— E como ela é? — indagou Artur. — Algum dia irei conhecê-la?


— Um dia, depois que você conseguir superar essa febre agitada,


você verá uma pequena luz em seu coração. No início, ela será


apenas uma centelha, depois a chama de uma vela, finalmente uma


ardente fogueira. Você então despertará, e a chama devorará o sol, a


lua e as estrelas. Nesse momento, não haverá nada além de amor no


universo, mas todo ele estará dentro do seu coração.


68


VIVENDO COM A LIÇÃO


O aprendizado do afastamento do ego envolve três estágios — existem


muitas camadas de isolamento, medo, hábito, egoísmo e raiva que nos


impedem de experimentar o amor como o mago o conhece. O papel


principal no aprendizado do contato com a força universal do amor


pode inicialmente ser assumido por sua mente. Ela pode adotar uma


nova perspectiva, o que pode ser depois seguido pela reeducação das


emoções e das crenças.


Qual a base do novo ponto de vista da mente? Simplesmente que


existe uma força de amor presente em todos os lugares e que você pode


acreditar que ela vai trazer ordem e paz à sua vida. Experimente o


seguinte exercício: saia e contemple o céu cheio de estrelas. Durante


séculos a humanidade tem olhado para esse cenário, considerando sua


incrível estrutura e beleza. Este mapa é um perfeito exemplo da


sistematização da natureza: contemplando o céu noturno, podemos


apreciar o fluxo do tempo que através de bilhões de anos alimentou


cada pequeno passo da vida do universo, desde a organização do


primeiro átomo de hidrogénio, passando pela formação das estrelas, ao


advento do ADN. Nenhum fio foi esquecido nessa enorme extensão de


tempo; cada informação e energia evoluiu de maneira a permitir que


você, o observador, contemplasse um universo que é a imagem viva de


todo o seu passado.


As forças no universo são imensas, estão além do alcance da mente,


e contudo o processo que deu origem aos átomos de hidrogénio, às


estrelas e ao ADN foi extremamente delicado. As coisas poderiam ter


tomado direções muito diferentes; com efeito, poderiam ter avançado


numa infinidade de direções, que não teriam resultado naquilo que


você reconhece como sendo você. O que permite a ocorrência desse


ato estabilizador é a organização e a inteligência. Na visão do mago, a


ordem não pode simplesmente emanar da casualidade; ela é inata na


criação. Assim, as forças titânicas que rodopiam pelo cosmo não


guerreiam entre si; é-lhes permitido existir e evoluir como parte da


tendência da natureza em direção ao crescimento.


Tome agora em conjunto todas essas qualidades:^_ordem^


p^ejjmjjjbrjj^aj2y0.luca.0je a inte]igência-Você está diante de uma


69


descrição do amor. Não é o ideal pojuiax^é_o^amor do mago — a


força que sustenta e alimenta a vida. É aí que a mente~cõ?ne"ça a


compreender que a força do amor é de fato real. Na vida moderna,


nós nos acostumamos à aleatoriedade, à ideia de que a vida é


precária e está ameaçada a todo momento. Mas a história da vida


demonstra que ela sobreviveu por milhões de anos; de fato, ela


parece criar condições para sua sobrevivência através de uma


inteligência profunda que jamais é ameaçada. Por mais hostis que


sejam as condições, a vida é inextinguível.


Você pode aplicar esse insight à sua vida. Imagine seu início,


quando, contra bilhões de probabilidades, um único espermatozóide


conseguiu fertilizar um óvulo no útero da sua mãe. Sua identidade


atual depende inteiramente desse ato. As chances contra essa


ocorrência única a teriam feito parecer impossível, mas aconteceu


sem esforço. Analogamente, você tem sido agredido milhões de


vezes pelo ambiente, pela poluição, radiação, e até por mutações


aleatórias dentro das suas células; qualquer uma dessas agressões


poderia ter encerrado suas chances de sobrevivência em qualquer


momento desde a concepção até o dia de hoje. Entretanto, a


inteligência e o poder organizador existentes dentro de você


superaram com um desembaraço natural esses obstáculos, apesar de


todo o esforço que sua mente consciente possa considerar


necessário para que a vida continue. Na verdade, sua mente


consciente não poderia antever ou planejar como conceber a vida,


mantê-la em andamento ou defendê-la desses terríveis perigos.


Ora, se esse desembaraço natural pode operar no nível


inconsciente e celular, por que não no nível consciente? Você


consegue ver a si mesmo cavalgando a crista da onda da vida? Na


verdade, é isso que você está fazendo neste exato momento. Seus


impulsos pessoais de pensar, sentir e agir são como a crista de uma


onda, que avança constantemente em direção ao futuro, e, contudo,


constantemente se renova a partir das profundezas — o impulso do


amor que continuamente sustenta a vida é como o ímpeto do oceano


que renova cada onda.


Perceber isso é o início da confiança. Se forças titânicas como a


gravidade e as imensas energias que alimentam as estrelas


conseguem coexistir sem se destruir mutuamente, então


70


sua vida será sustentada. O medo e a dúvida dizem que isso não pode


ser verdade; nossa profunda crença no esforço se baseia na noção de


que se não lutássemos para sobreviver, seríamos esmagados pela


indiferença aleatória da natureza. O mago descerra um caminho


diferente, convidando-nos a ingressar num mundo no qual o medo, a


violência e a destruição são reflexos das nossas crenças erróneas. A luz


da confiança, à medida que ela aos poucos vai se desenvolvendo ao


longo do tempo, você descobrirá que é um filho privilegiado do


universo, totalmente seguro, completamente apoiado, inteiramente


amado.


71


9- Lição


O mago vive num estado de conhecimento. Esse


conhecimento dirige sua própria realização.


O campo da consciência se organiza ao redor das nossas


intenções.


O conhecimento e a intenção são forças. O que você pretende


muda o campo ã seu favor.


As intenções comprimidas em palavras envolvem o poder


mágico.


O mago não tenta solucionar o mistério da vida. Ele está


aqui para vivê-lo.


O menino Artur levou um longo tempo para reconhecer completamente


que fora treinado por um mago. Merlim o levara para a


floresta poucas horas depois de ele nascer, e foi somente ao retornar


ao mundo, anos mais tarde, que Artur compreendeu a curiosidade


despertada pela sua associação com um mago.


—Se você realmente conheceu Merlim — diziam as pessoas


(aquelas que se davam ao trabalho de achar que o rapaz não era


simplesmente louco) —, que encantamentos ele lhe ensinou?


—Encantamentos? — perguntava Artur.


—Feitiços, sortilégios, palavras especiais que conferem a Merlim


seus poderes — diziam eles, imaginando que Artur devia estar ou


muito confuso ou muito iludido.


—Merlim ensinou-me algumas coisas a respeito das palavras —


declarou Artur lentamente, ponderando a pergunta. — Ele disse que


as palavras contêm poder, que elas encobrem segredos como


alçapões que encobrem passagens subterrâneas.


72


Essa explicação encerrava uma qualidade sutil, mas as pessoas


ainda não estavam satisfeitas. Elas queriam saber de que modo os


encantamentos de Merlim efetivamente funcionavam.


— Bem — retrucava Artur —, quando eu era um bebé, lembro-me


de Merlim dizendo: "Coma". Quando cresci um pouco, ele disse:


"Ande", e se eu ficava acordado até tarde, ele dizia: "Durma". Até onde


consigo me lembrar, tenho comido, andado e dormido desde então, de


modo que esses devem ter sido encantamentos poderosos, vocês não


concordam?


Ninguém concordava. As pessoas iam embora perguntando a si


mesmas se essas bobagens que o jovem Sir Ector havia assimilado


algum dia serviriam para alguma coisa.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


O poder das palavras não repousa no seu significado superficial e sim


em suas qualidades ocultas. Toda palavra, por exemplo, encerra o


conhecimento e a intenção. Ambos são qualidades mágicas. A magia


do conhecimento é que muitas camadas de experiência, na verdade,


toda uma história, podem ser acondicionadas em poucas sílabas.


—Chame seu reino de Camelot — aconselhou Merlim antes de o


rapaz partir para o mundo.


—Por quê? — perguntou Artur.


—E uma palavra nova que não precisa suportar o peso da história


da maneira como a Inglaterra precisa — respondeu Merlim. — As


pessoas a identificarão com você e com todos os que você reunir à sua


volta. Ela servirá de pedra de toque. No momento em que as pessoas a


pronunciarem, todo o seu reino e todas as suas façanhas se abrirão


para eles, como se ao toque de uma alavanca se abrisse a porta de um


armário cheio de riquezas. — O que veio a ser verdade.


As palavras mais ricas na linguagem abrem passagens ocultas de


significado e conhecimento. Mas a segunda qualidade das palavras, a


intenção, é ainda mais poderosa. Uma intenção estava sendo expressa


quando Merlim, como qualquer pai ou


73


mãe, disse a seu protegido que comesse, andasse e dormisse. Foi através


dessas palavras que todos aprendemos importantes funções, mas agora


que as conhecemos, as palavras deixam de ser necessárias. Você não


diz mais para si mesmo que deve comer, andar ou dormir. A intenção


da palavra foi absorvida por você, e tudo que você necessita agora é de


um lembrete ("Acho que vou dormir agora"), e o resultado desejado


acontece. É realmente correio chamar isso de encantamento, como fez


Artur? Sim, porque quando a intenção de uma palavra é absorvida, um


feitiço é lançado sob a forma de uma impressão mental. Diga a palavra


escola para qualquer pessoa, e imediatamente a experiência de ir à


escola será despertada. O bom aluno fará associações de sucesso e


elogios, e o mau aluno de fracasso e críticas. Toda a nossa vida está


acondicionada dentro de nós como impressões desencadeadas por


palavras.


— Os mortais estão envolvidos pelas palavras da maneira


como a aranha envolve moscas em sua teia — declarou Merlim.


— A diferença é que neste caso vocês são ao mesmo tempo a


aranha e a mosca, porque vocês se aprisionam em sua própria


teia.


Sem dúvida, é verdade que usamos nossas palavras para imprimir


os hábitos que fazem com que a vida prossiga inconscientemente. A


questão de nos identificarmos com nomes e rótulos já foi mencionada;


estes, é claro, são palavras. Mas que palavras nos permitirão


abandonar velhos hábitos e a identificação limitada? Se toda palavra


forma uma impressão na mente, todas as palavras estão fadadas a


serem limitantes?


— O paradoxo das palavras — disse Merlim — é que você


precisa usá-las para disciplinar-se e exercitar-se. Os bebés são


desprovidos das funções de andar, falar e ler. Cabe à mãe e ao pai


educar a criança e prepará-la para o mundo, e isso é feito através


de palavras.


"O problema é que as palavras também trazem consigo um


significado psicológico. É por meio das palavras que os pais fazem as


crianças se sentirem bem ou mal, acharem que estão certas ou


erradas. As mais poderosas expressões que qualquer pessoa pode usar


são sim e não. O efeito dessas duas sílabas é criar limites ou eliminálos.


Todas as coisas que você acha que


74


pode fazer têm um sim embutido dentro delas, geralmente emitido


pelos pais ou um professor num passado distante. Tudo que você


acha que não pode fazer tem um não embutido, originário das


mesmas fontes."


—Por que isso é um paradoxo? — perguntou Artur.


—Porque embora as palavras nos digam quem somos, somos mais


do que elas podem expressar. Por mais poderoso o feitiço lançado


pelas palavras, as pessoas podem mudar. O poder das palavras pode


criar alguma coisa nova, não apenas um limite.


O mago usa palavras para dizer sim a coisas às quais nos


ensinaram a dizer não. Num certo nível, é isso que este livro está


fazendo — tecendo um novo mundo de significados para substituir


antigos significados que nos acompanham desde crianças. Mas


existe aqui um mistério mais profundo. As palavras abrangem tanto


o conhecimento quanto a intenção; por conseguinte, expressar uma


intenção através de palavras é o primeiro passo para transformá-la


em realidade. Dois bons exemplos são a prece e a afirmação. Afirmar


coisas como "Eu sou bom" ou rezar a Deus com palavras como "Faça


com que eu fique curado" é mais do que apenas expressar


verbalmente os pensamentos.


Sempre que uma palavra é respaldada pela intenção, ela penetra


o campo da consciência como uma mensagem ou um pedido. O


universo está sendo avisado de que você tem um certo desejo. Nada


mais é exigido para que os desejos se tornem realidade, porque a


habilidade de computação da consciência universal é infinita. Todas


as mensagens são ouvidas e processadas.


— Os mortais e os magos não são tão diferentes quanto você


possa imaginar — disse Merlim. — Ambos enviam seus desejos


ao campo esperando uma resposta, mas no caso dos mortais, as


mensagens são deturpadas e confusas; no caso dos magos, elas


são claras e transparentes. Nenhuma intenção jamais é des


considerada, mas pode haver obstáculos à sua realização porque


existem muitos conflitos ocultos nelas, todos os conflitos do


coração humano.


75


VIVENDO COM A LIÇÃO


Viver com esta lição significa reconhecer que sua intenção conduz a


um resultado. O mago é alguém que sabe precisamente como


introduzir suas intenções no campo e esperar que elas se tornem


realidade. O restante de nós não é tão consciente. Também estamos


constantemente enviando intenções para o campo, mas o fazemos


inconscientemente. Nossos desejos são aleatórios, repetitivos ou


obsessivos, e tudo isso é um desperdício de energia.


— Vocês, mortais, supõem que precisam se esforçar para tornar


seus sonhos realidade — disse Merlim —, quando, na verdade, a


maior parte do trabalho que vocês fazem impede que seus sonhos se


transformem em realidade.


Do ponto de vista do mago, quanto menos esforço for despendido,


melhor. Em seus ensinamentos, os magos mostram a seus discípulos


como pensar de uma maneira mais organizada, consciente e eficaz.


Para fazer isso, primeiro você precisa eliminar os hábitos de


pensamento que obstruem a capacidade do universo de realizar seus


desejos.


Imagine que sua mente é um radiotransmissor que bombardeia o


campo com mensagens. Se você se sentar em silêncio e observar sua


mente, verá que ela está repleta de sinais embaralhados. Também


temos dúvidas a respeito das coisas que queremos realizar; a pessoa


a quem queremos recorrer também é alguém com relação à qual não


nos sentimos seguros.


Da mesma forma, a mente está repleta de repetições inúteis. Foi


estimado que 90 por cento dos pensamentos que uma pessoa tem


num dia qualquer são os mesmos que os do dia anterior. Isso


acontece porque somos criaturas de hábito, preocupação e obsessão.


Finalmente, a mente está cheia de estática inconsciente, que recua


às profundezas da memória da infância. Você pode estar prestando


atenção apenas aos seus pensamentos conscientes e voluntários,


mas em segundo plano sua mente inconsciente se agita com


esperanças não realizadas e antigos temores e desejos — em


resumo, todas as coisas que não pareceram se tornar realidade no


passado.


76


As intenções são simplesmente desejos, e os desejos estão ligados


àquilo que você precisa. Por conseguinte, toda essa atividade da


mente que não está sendo consumada é formada por antigas


necessidades que não foram satisfeitas. Milhares de vezes no


passado você pensou "eu desejo" ou "eu espero", mas nada parecia


acontecer, ou então aconteciam coisas diferentes, menos desejáveis.


—Gostaria de poder fazer uma faxina no seu cérebro —


resmungou Merlim certa vez quando Artur estava agindo de uma


maneira particularmente confusa. — Seu pensamento deveria fluir


livremente; em vez disso, ele é uma guerra.


—Por que você não pode limpar meu cérebro? — indagou


inocentemente Artur.


—Porque tudo que está dentro dele é você. — Merlim suspirou. —


Você se transformou nesses conflitos velhos e repetitivos, e eles não


desaparecerão enquanto você não mudar.


O primeiro passo em direção à mudança é o reconhecimento.


Reconheça que pelo menos algumas esperanças e desejos seus se


tornaram realidade. Inesperadamente, sem que você tivesse que


fazer nada, pessoas telefonaram exatamente quando você precisava


falar com elas, você recebeu ajuda de onde menos esperava, preces


foram atendidas. Tudo isso está acontecendo no campo. Quando você


tem uma intenção e a envia para a consciência universal, você está


na verdade falando consigo mesmo de outra maneira. Na qualidade


daquele que envia a mensagem, você é um indivíduo que vive aqui no


tempo e no espaço. Mas você também é aquele que recebe a


mensagem, no seu aspecto de eu superior que preside sua identidade


espaço-tempo. E ainda mais do que isso, você é o veículo transmissor


da mensagem, a consciência propriamente dita.


Para você poder ver realmente a si mesmo, você precisa se ver


como possuindo esses três aspectos: o de quem envia, o de quem


recebe e o de veículo transmissor. O tema encerra muitas variações:


você é o desejo, aquele que deseja, e aquele que concede os desejos.


Este estado tríplice é conhecido como unidade. Por conseguinte,


enviar uma intenção ao campo e receber uma resposta não é algo


que você precise se esforçar para alcançar. Em sua natureza


unificada, tudo que você faz é


77


satisfazer as intenções; essa é sua ocupação de tempo integral. Você


não pode ter um único pensamento que deixe de produzir algum


resultado.


O problema é que não conseguimos perceber os resultados que


são excessivamente sutis, que não se encaixam imediatamente nas


nossas metas, que não coincidem com a opinião do nosso ego a


respeito de o que deveria acontecer.


— Vocês, mortais, vivem num mundo de deveria e e se — disse


Merlim. — Eu vivo num mundo de o que é.


Quando você aprende a acalmar a mente e purificá-la de todos os


seus antigos conflitos, a realidade simples de como o universo


funciona — o o que é — se revelará. Vamos falar mais a respeito


deste assunto na Terceira Parte deste livro. Por enquanto, dedique


um pouco de tempo todos os dias a observar o conteúdo da sua


mente. Este ato de observar, embora extremamente simples, é uma


das medidas mais poderosas que você pode tomar para efetuar


mudanças. Você não pode mudar o que você não vê.


Seu ego poderá não gostar de admitir que você está cheio de


negações, conflitos, intenções desordenadas, vergonha, culpa e


todas as outras confusões que obscurecem a mente e a impedem de


enxergar a realidade de o que é. Com efeito, o ego se orgulha da sua


habilidade de esconder essas coisas de você, sob o pretexto de que


você poderá sofrer se contemplar seus erros, falhas e pecados.


O segundo passo é aprender como realizar suas intenções. Os


passos são completamente naturais, mas precisam ser aprendidos.


Faça com que o ego, com todas as suas expectativas e previsões,


recue para segundo plano. Em vez de sentir que você precisa


controlar o resultado da sua intenção, esteja convencido de que o


campo fará o trabalho para você. Liberte sua intenção no campo do


intemporal; quanto mais expandida estiver sua consciência, mais


claro será o sinal que você irá enviar.


Finalmente,//*/^ tranquilo e natural com relação a todo o


processo. Quando todos esses passos se reunirem, sua intenção


penetrará o campo da consciência, que atua como uma matriz que


liga seu pensamento individual a tudo que é. O fluxo desem78


baraçado em direção a um resultado não será ameaçado nem


obstruído pelas ansiedades e apegos do ego temeroso.


Na verdade, nenhum dos aspectos ditos negativos da mente é


pecado.


— Lembre-se sempre — recomendou Merlim ao menino Artur — de


que Deus não julga, é só a mente que o faz.


Ter nossos mais sinceros desejos realizados é o que Deus quer


para cada um de nós; esse é nosso estado natural como criadores da


nossa realidade.


79


10a Lição


Todos possuímos um eu-sombra que é parte da nossa


realidade total.


A sombra não está presente para magoá-lo e sim para mostrar-lhe


onde você está incompleto.


Quando a sombra é abraçada, ela pode ser curada. Quando ela é


curada, ela se transforma em amor.


Quando você puder viver com todas as suas qualidades opostas,


você estará vivendo seu eu total como o mago.


— Você jamais parece se sentir solitário — comentou Artur. Havia


uma ponta de inveja na voz do menino. O mago perscru-tou-o


atentamente.


—É verdade, é impossível ficar sozinho.


—Talvez para você, mas... — O menino se conteve, mordendo os


lábios. Mas seus sentimentos levaram a melhor, e ele desembuchou:


— É bem possível sentir-se sozinho. Não há ninguém na floresta a


não ser você e eu, e apesar de eu amá-lo como se você fosse meu pai,


existem momentos... — Sem saber mais o que dizer, Artur parou de


falar.


—É impossível alguém ficar sozinho — repetiu Merlim com mais


firmeza.


A curiosidade levou vantagem sobre os sentimentos de Artur.


—Não vejo por quê — disse ele.


—Bem, existem apenas duas classes de seres com os quais


precisamos nos preocupar nesta questão — começou Merlim. — Os


magos e os mortais. E impossível para os mortais ficarem sozinhos


porque vocês têm muitas personalidades lutando den80


tro de vocês. É impossível para os magos ficarem sozinhos porque


eles não têm nenhuma personalidade dentro de si.


—Não compreendo. Quem está dentro de mim além de mim


mesmo?


—Em primeiro lugar, você precisa perguntar quem é essa coisa


que você chama de mim mesmo. Apesar da sensação de que você é


uma única pessoa, você é na verdade um composto de muitas


pessoas, e suas múltiplas personalidades nem sempre se dão bem


umas com as outras; aliás isso está longe de acontecer. Você está


dividido em dezenas de facções, cada uma lutando para ocupar seu


corpo.


—Isso acontece com todo mundo? — indagou o menino.


—Oh, sim. Enquanto você não encontrar seu caminho para a


liberdade, você será mantido como refém pelo conflito existente


entre suas personalidades internas. Segundo minha experiência, os


mortais estão sempre deflagrando guerras interiores que envolvem


todas as facções possíveis.


—Ainda assim, sinto que sou uma só pessoa — protestou Artur.


—Não posso fazer nada a respeito disso — replicou Merlim. — A


sensação que você tem de ser uma única pessoa nasceu do hábito.


Você poderia, com a mesma facilidade, ver a si mesmo da maneira


como descrevi. Minha maneira é mais verdadeira, porque explica por


que os mortais parecem tão fragmentados e conflituosos para o


mago. De um modo geral, é tão desconcertante encontrar um mortal,


que frequentemente acredito que estou falando com toda uma aldeia


em vez de com um único pacote de carne e osso.


O menino mostrou-se pensativo.


— Por que então eu me sinto tão solitário? Porque, Mestre,


para dizer a verdade, é assim que me sinto.


Merlim olhou para seu discípulo com um olhar penetrante.


— É de causar espanto que com todas essas pessoas lutando


para ocupar seu corpo você possa em algum momento se sentir


sozinho. Mas cheguei à conclusão que a solidão existe porque as


outras pessoas existem. Enquanto existir "eu" e "você", haverá


um sentimento de separação, e onde existe a separação existe


81


necessariamente o isolamento. O que é a solidão senão outro nome


para o isolamento?


—Mas sempre haverá outras pessoas no mundo — protestou Artur.


—Você está tão certo disso? — replicou Merlim. — Sempre haverá


pessoas, isso é inegável, mas serão elas sempre outras pessoas? Espere


até chegar ao fim do caminho do mago, e conte-me então como você se


sente.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


Se você olhar atentamente para dentro de si, encontrará muitas


personalidades competindo para usar seu corpo. Por exemplo, o conflito


entre o bem e o mal dá origem a duas personalidades chamadas santo


e pecador. Elas nunca param de discutir; um dos lados espera


eternamente ser suficientemente bom para satisfazer a Deus, e o outro


sente eternamente impulsos "maus" que nem sempre podem ser


reprimidos.


A seguir estão os papéis com os quais você se identifica — filho, pai,


irmão, irmã, homem, mulher, sem falar na sua profissão: médico,


advogado, padre, assistente social infantil, e assim por diante. Cada um


desses fez uma reivindicação dentro de você, elevando a voz acima da


dos outros a fim de apresentar um limitado ponto de vista. Repare que


nem mesmo tocamos no seu senso de nacionalidade e identidade


religiosa — esses sozinhos podem causar infinitos problemas.


Essas personalidades estão geralmente em conflito. O que


chamamos de felicidade é um estado no qual grande parte desse conflito


desaparece. Quando você nasceu não havia uma guerra dentro de você,


porque os bebés não estão em conflito por causa de seus desejos. As


vozes do bem e do mal, por exemplo, são inexistentes até o bebé ter


idade suficiente para assimilar esses conceitos dos seus pais.


—Você não pode se tornar um mago enquanto não pensar


novamente como um bebé — declarou Merlim.


—Como é que o bebé pensa? — perguntou Artur.


82


— Basicamente sentindo. O bebé sente quando está com


fome ou com sono. Quando as sensações são apresentadas a ele,


o bebé é capaz de sentir se elas lhe trazem prazer ou dor, e ele


reage em conformidade com o que sente. O bebé não se sente


inibido por desejar o prazer e querer evitar a dor.


—Não vejo nada de especial nisso — disse Artur. — Os bebés


apenas choram, riem, comem e dormem.


—Muitos mortais teriam sorte se fizessem isso depois de adultos


— murmurou Merlim. — Estar aqui neste mundo num estado de


contentamento é uma verdadeira realização.


O instinto inocente do bebé recém-nascido a respeito do que


parece bom ou mau rapidamente se perde. Começam a surgir vozes


dentro dele; no início, a voz da mãe dizendo "sim" e "não", "bebé


bom" e "bebé mau". Quando sim, não, bom e mau estão em


concordância com o que o bebé quer, não existe dano. Mas


inevitavelmente acaba surgindo um conflito entre as necessidades do


bebé e o que seus pais esperam. O mundo interior e o exterior


começam a colidir. Em breve são semeadas as sementes da culpa e


da vergonha; o temperamento destemido do recém-nascido é


manchado pelo medo. O bebé aprende a duvidar de seus instintos. O


impulso interior de "É isso que eu quero" se transforma na


pergunta:"É aceitável que eu queira isso?"


Passamos a vida nos esforçando para voltar ao estado de autoaceitação


no qual naturalmente nascemos. Durante anos as


perguntas se multiplicam, e empurramos nas cavernas secretas e


nos porões escuros da psique a maior quantidade possível de


dúvidas, vergonha, culpa e medo. Esses sentimentos permanecem


vivos, por mais profundamente que os enterremos. Todos os conflitos


internos que temos tanta dificuldade em conciliar reconduzem a um


eu-sombra.


—Sua corte é muito interessante — comentou certa vez Merlim


com Artur, depois de este se tornar rei. — Eu não percebera que


vocês, mortais, têm todos o mesmo emprego.


—E mesmo? — perguntou Artur. — E qual é ele?


—Carcereiro — replicou Merlim, recusando-se a falar mais sobre


o assunto.


Aos olhos do mago, somos todos carcereiros do nosso eu-sombra.


A mente inconsciente é a prisão onde energias indese83


jáveis estão encarceradas, não por imposição, mas por terem sido


marcadas por anos de sim e não, bom e mau. Depois de ponderar as


palavras de Merlim a respeito de ele ser um carcereiro, Artur foi até


o Mestre e disse:


—Não quero ser assim. Como posso mudar?


—Nada mais fácil — retrucou Merlim. — Certifique-se de estar


desempenhando ambos os papéis, o de carcereiro e o de prisioneiro.


Se você for os dois lados da moeda, nenhum dos dois poderá ser


você, pois eles se neutralizam. Reconheça este fato e fique livre.


—Não sei como — protestou Artur. — De que maneira posso


encontrar esse eu-sombra de que você fala?


—Apenas escute. Como todos os prisioneiros, ele tamborila


mensagens na parede da sua cela.


O eu-sombra é apenas outro papel ou identidade que trazemos


conosco, mas nós não o apresentamos em público. Na maior parte do


tempo, o eu-sombra está excessivamente confuso e amedrontado


para ser mostrado à luz do dia. Mas não existe nenhuma dúvida de


que ele existe, pois cada um de nós inventou a própria sombra, uma


persona cuja tarefa é conduzir todas as energias das quais não


conseguimos nos descartar. Para o recém-nascido, o problema de se


agarrar a sentimentos "maus" ou pouco saudáveis não existe. No


instante em que você lança algo negativo no ambiente do bebé, ele


chora ou se afasta.


Essa é uma reação extremamente saudável, porque ao se


expressar tão livremente, o bebé é capaz de livrar-se de energias que


de outra maneira se agarrariam a ele. Quando crescemos, contudo,


aprendemos que nem sempre é apropriado nos entregarmos a esse


tipo de manifestação espontânea. Em nome da polidez e do tato, de


conhecermos nosso lugar, ou ainda de fazer o que nossos pais


mandaram, cada um de nós aprendeu a se agarrar a energias


negativas. Nós nos tornamos baterias com uma vida útil cada vez


maior, até que agora, como adultos, nos agarramos a uma raiva,


ressentimento, frustração e medo com anos de existência. O pior de


tudo é que nos esquecemos do instinto de descarregar nossas


baterias.


— Um dia você ficará muito interessado em ver o quanto vo


cê se parece com uma bomba — disse Merlim para o menino Artur.


84


—O que é uma bomba?


—Se você vivesse às avessas no tempo, que aliás é a única


maneira sensata de viver, você saberia. — Merlim pensou durante


um segundo. — Imagine que você sopre uma bexiga de porco até ela


estourar. Uma bomba trabalha de acordo com o mesmo princípio,


exceto que ela explode com tanta força que mata as pessoas.


—Meu Deus, isso não poderia ser evitado no futuro? — perguntou


Artur alarmado.


—Não, você não compreendeu. As bombas explodem porque


matam pessoas. Esse é o ponto. Só mencionei isso porque as bombas


são extremamente parecidas com os mortais, pois estes estão o


tempo todo prestes a explodir. A explosão de granadas — é assim


que eles vão chamar as coisas que vão explodir — nada mais é do


que a explosão da raiva manifestada. Com efeito, se os seres


humanos pudessem explodir e matar as pessoas sem temer uma


represália, a maioria deles o faria.


VIVENDO COM A LIÇÃO


Acabar com a guerra interior significa fazer chegar ao fim o conflito


entre todas as suas personalidades. Você pode aliviar o eu-sombra


da carga de energias do passado, criando assim uma condição para a


paz interior, visto que é o medo de ser ferido que faz com que suas


vozes interiores não tenham confiança umas nas outras. Mas você


não pode começar a resolver essas tensões interiores enquanto não


conhecer os componentes das suas personalidades interiores.


As personalidades são sempre formadas pela mesma coisa — uma


energia antiga apegada a uma memória. Digamos, por exemplo, que


você se lembra de ter sido punido quando criança por algo que você


não fez. A energia do ressentimento ou da injustiça se apegará a


essa lembrança, e você começará a criar um fragmento de


personalidade — uma criança ressentida — que viverá de acordo


com sua visão estreita das coisas até que essa energia seja liberada.


A criança interior ressentida é apenas uma


85


memória que quer descarregar sua energia retida, e enquanto essa


descarga não acontecer, essa energia ficará retida.


Como você tem recordações que encerram tanto associações


felizes quanto associações dolorosas, as personalidades interiores se


manifestam de maneiras agradáveis e desagradáveis. E agradável


recordar ter sido elogiado por um bom trabalho; é desagradável


lembrar ter sido criticado. Mas essas memórias opostas não se


neutralizam; elas retêm sua integridade e conflito com seus opostos.


Faz parte da natureza dos julgamentos dizer "Estou certo", mesmo


que a experiência seguinte seja totalmente contraditória. A crítica ou


a punição injusta seguirá com você, repetindo várias vezes as antigas


cenas, enquanto no compartimento seguinte outra energia, a de ser


tratado com justiça e bem recompensado estará expressando seu


ponto de vista.


~f Você pode facilmente entrar em contato com essas energias


retidas. Sente-se sozinho por um momento num aposento tranquilo.


Inspire e expire relaxadamente. Agora, observe apenas o fluxo e o


ritmo suave da respiração, sem alterar seu ritmo. Não vá adiante


enquanto sua respiração não estiver agradável e estável. Quando


isso ocorrer, tente lembrar-se de um incidente extremamente


desagradável do seu passado, que envolva fortes emoções negativas,


como a vergonha, a humilhação ou a culpa. Digamos que o tenham


surpreendido colando numa prova ou até roubando. O fato de o


incidente ter sido banal ou grave não é importante — você está em


busca de uma emoção remanescente.


Traga à lembrança uma imagem vívida desse incidente e permitase


experimentar os sentimentos que o acompanharam. Observe


agora sua respiração — ela não mais estará relaxada. Dependendo


do tipo de emoção que você estiver recordando, sua respiração terá


se tornado irregular ou superficial. Você poderá até mesmo ficar


ofegante ou prender a respiração. Essas modificações refletem o fato


de que a respiração é um espelho fiel do processo do pensamento, e


particularmente de qualquer emoção que possa ser recordada. Você


está na verdade vivenciando os três componentes sobre os quais


falamos: a memória, a energia e o apego. Quando os três se reúnem,


você obtém os primórdios de uma subpersonalidade.


86


Todas as subpersonalidades desejam a mesma coisa: ex-pressarse


através de você. O bebé que chora, a criança solitária,


0 adolescente frustrado, o amante esperançoso, o funcionário


ambicioso, todos querem ter uma vida através de você. E eles o


conseguem, até certo ponto. Nenhuma personalidade individual


jamais se realiza completamente; por conseguinte todas pre


cisam gritar para obter seu momento ao sol — ou à sombra.


E o conflito resultante que torna a vida humana tão ambígua, tão


cheia de luz e sombra ao mesmo tempo. O mago, porém, vive


somente na luz. A semelhança de um bebé, o mago não se agarra à


energia. Tendo abandonado todos os apegos da memória que


alimentam nossa guerra interior, o mago transcendeu a persona-


1 idade e vive na consciência pura. A maneira de nos


deslocarmos


do estado mortal para o estado do mago pode parecer misteriosa,


mas é, na verdade, totalmente natural. Tudo que é necessário é


o equilíbrio, o qual o fluxo da vida é perfeitamente capaz de


preservar.


Existem muitas maneiras de liberar antigas energias. Uma das


mais poderosas é simplesmente reconhecer que elas estão presentes.


Em vez de negar que você sente vergonha ou culpa, por exemplo,


olhe para si mesmo e diga simplesmente: "É assim que eu me sinto".


Com frequência esse momento de autoconsciência é suficiente,


porque, em última análise, todas as energias retidas são capturadas


e mantidas presas do lado de dentro através da negação. Supere a


negação, e metade da batalha estará vencida. O reconhecimento é


uma forma de auto-aceitação. Você não precisa dizer: "É aceitável


sentir vergonha e culpa", porque na verdade essas são energias das


quais você quer se descartar, e não perpetuar. Mas certamente é


aceitável dizer: "Tenho esses sentimentos. Eles são reais."


Uma das técnicas mais eficazes para superarmos a negação


emprega, mais uma vez, a respiração. Deite-se num aposento


tranquilo e relaxe. Inspire da maneira que quiser, profunda ou


superficialmente, rápida ou lentamente, e depois solte naturalmente


o ar. Não adote nenhum ritmo nem faça esforço, apenas deixe o ar


sair. Talvez você suspire ou fique um pouco ofegante; não há


problema.


87


Inspire mais uma vez e, novamente, simplesmente solte o ar, sem


forçar nem prender a respiração. Enquanto você continua a respirar


dessa maneira, deixe que quaisquer emoções ou imagens venham à


tona para serem liberadas. Esse processo pode ser favorecido se


você focalizar a atenção no coração ou em qualquer parte do corpo


onde você sinta sensações — certos pontos físicos estão


estreitamente associados às emoções.


A medida que você dá seguimento ao exercício, suas energias


retidas começarão a circular para fora. Os sintomas dessa descarga


podem incluir memórias, sombras ou sentimentos indistintos, ou


mesmo poderosas manifestações de emoções, como chorar. (Se os


sentimentos se tornarem excessivamente fortes, interrompa o


exercício e descanse de olhos fechados durante cinco minutos.)


Quase todas as pessoas têm tanta energia armazenada que


adormecem rapidamente quando respiram dessa maneira — isso é


um indício de que uma fadiga profundamente retida está sendo


liberada pelo seu corpo.


Se você não sentir nenhuma liberação de energia sob as formas


que acabo de descrever é porque sua mente está atrapalhando o


processo. Você pode ludibriar a mente modificando ligeiramente a


respiração: experimente resfolegar superficialmente e com relativa


rapidez. Essa respiração rápida, superficial e rítmica distrairá a


mente consciente e permitirá que as energias passem


desapercebidas por ela. Você poderá resfolegar dessa maneira no


máximo por uns dois minutos, porque a liberação pode facilmente se


tornar intensa demais.


Este exercício pode ser repetido para eliminar antigas energias


armazenadas, mas ele também é extremamente útil para que você


aprenda a descarregar qualquer emoção ou sentimento novo que


queira sair. Como qualquer outra parte do seu ser, sua sombra


deseja expressar-se e tornar-se livre, e o primeiro passo é descobrir


uma maneira natural e confortável de liberar as energias negativas


em vez de armazená-las nos calabouços ocultos da mente, y


88


11- Lição


O mago é o mestre da alquimia. A alquimia é


a transformação.


É através da alquimia que você começa a busca da perfeição.


Você é o mundo. Quando você se transforma, o mundo em que


você vive também será transformado.


As metas da busca — o heroísmo, a esperança, a graça e o amor —


são a herança do intemporal.


Para invocar a ajuda do mago, você precisa ser forte na verdade,


sem ser teimoso no julgamento.


Depois que o jovem Artur deixou a floresta de Merlim, ele foi morar


com o velho Sir Ector e seu filho Kay. Ele recebeu o posto de


escudeiro, mas apenas nominalmente. Artur não tinha nem família


nem posses. Ele não tinha recursos para comprar suas roupas, e


ninguém realmente acreditava que ele viesse de uma família nobre.


Escondidos de Sir Ector, os garotos do estábulo costumavam atirar


lama nele, e as criadas cochichavam que Artur conhecia magia


negra.


Em decorrência disso, Artur passava muito tempo sozinho. Certo


dia, ele estava sentado à margem de um bosque de carvalhos,


contemplando um jarro de chumbo amassado, quando Kay


casualmente passou por onde ele estava.


—Você roubou isso? — perguntou Kay desconfiado.


—Não — replicou Artur, sacudindo a cabeça. — Eu o peguei


emprestado.


—Para quê?


89


— Alquimia.


Kay arregalou os olhos. Ele ouvira dizer que os magos tinham o


poder de transformar os metais não preciosos em ouro.


— Você aprendeu alquimia? — perguntou Kay.


Artur fez que sim com a cabeça.


— Se você pode transformar chumbo em ouro — disse Kay


agitado — nossa família será a mais rica da Inglaterra. Mostreme


como se faz.


Artur concordou e fez um gesto convidando Kay a sentar-se ao


lado dele na grama. Sem proferir mais nenhuma palavra, ele


começou a olhar fixamente para o jarro. Depois de algum tempo, Kay


percebeu que os olhos de Artur estavam fechados. Ele esperou


impaciente, mas quando Artur abriu os olhos quinze minutos depois,


o jarro permanecia inalterado.


— Acho que você é um embusteiro — declarou Kay acalo


radamente. — O jarro continua de chumbo.


Artur olhou calmamente para ele.


— Ora, claro que continua. Ele é apenas um ponto de


referência. É a mim que eu estou tentando transformar em ouro.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


A alquimia é a arte da transformação. Como ensinado pelos magos,


os segredos da alquimia existem para transformar os mortais,


levando-os de um estado de sofrimento e ignorância para um estado


de iluminação e bem-aventurança. Merlim disse:


— A alquimia acontece o tempo todo. Você não pode impedir que


ocorram transformações em todos os níveis da vida. É na sua


transformação que estou interessado. Em comparação com isso,


transformar metais não preciosos em ouro é algo trivial.


A alquimia é uma busca, e a busca é sempre pela mesma coisa: a


perfeição. Assim como o ouro é o mais perfeito dos metais porque


não pode ser corrompido, a perfeição no ser humano significai


liberdade com relação à dor, ao sofrimento, à dúvida e ao medo.


90


— Mas e se os seres humanos não forem capazes de se


aperfeiçoar? E se formos de fato tão fracos e imperfeitos quanto


parecemos? — indagou Artur.


— O segredo não repousa na sua aparência — replicou Merlim


—, e sim em quão profundamente você está disposto a olhar.


As buscas são jornadas individuais, e cada passo é dado


solitariamente. Mas Merlim tinha muito a dizer a Artur antes que


este alcançasse o significado da sua busca.


— Já lhe disse muitas vezes que essa massa de carne e osso


não é seu corpo, que essa personalidade limitada que você


vivência não é seu eu. Seu corpo é na verdade infinito e um só


com o universo. Seu espírito abarca todos os espíritos e não


possui limites no tempo ou no espaço. O trabalho da alquimia lhe


revelará essas verdades.


Quando Merlim pronunciou essas palavras, a época dos magos


estava praticamente desaparecida, dando lugar à nova era, que seria


governada pela razão. Esta última sustenta que a alquimia não é


possível, e à medida que os magos recolhiam-se à penumbra da


lenda, as pessoas começaram a aceitar que estavam de fato limitadas


a viver como pacotes finitos de carne e osso em delgadas fatias de


tempo e espaço.


Por termos como certo que as coisas sólidas são reais, atribuímos


realidade à matéria sólida da qual somos feitos. Os mesmos átomos


de hidrogénio, oxigénio e carbono formam as nuvens, as árvores, as


flores, os animais e seu corpo, mas esses átomos estão em constante


modificação e transformação — menos do que 1 porcento dos átomos


que estavam presentes em seu corpo há um ano permanecem nele


hoje. Mesmo sob o aspecto material, faz pouco sentido afirmar que


você é feito de matéria sólida, quando debaixo dessa solidez existe


um mundo de espaço vazio e fluxo constante. A busca que é a


alquimia começa debaixo da superfície dos átomos e moléculas, atrás


da aparência de mudança.


Mesmo quando menino, Artur estava ansioso pela sua primeira


busca, e esperava ardentemente que Merlim lhe fornecesse um


cavalo e um mapa. Mas Merlim disse:


— Os mapas são inúteis no lugar aonde você está indo,


porque o território que você tem à sua frente está em constante


91


modificação. Seria a mesma coisa que tentar fazer um mapa da água


corrente.


Tão logo você aceita que não é nada menos do que o fluxo da


vida, a busca pela perfeição torna-se uma busca além do ilimitado.


As coisas perfeitas dentro de você são a essência, o ser e o amor.


Estes não podem ser limitados pelo tempo e pelo espaço. Quando


você atravessa a sala, seu amor por sua família atravessa a sala?


Quando você se molha na banheira, a sua essência se molha? As


fronteiras podem ser mapeadas, e o aspecto visível de um ser


humano pode ser cartografado como ossos, músculos, tecidos e


células. O cérebro pode ser mapeado como caminhos para a


incessante interação de dez milhões de neurónios. Entretanto, em


ambos os casos, o mapa não é o território. A essência, o ser e o amor


que compõem o ser humano possuem uma vida própria que começa


e termina com a mesma percepção invisível.


—Posso vê-lo como uma nuvem de energias — disse Merlim a


Artur. — E você pode me ver da mesma maneira, mas mesmo essa


nuvem não é o verdadeiro você. Trata-se apenas de mais substâncias,


só que num nível mais sutil.


—Que tipo de energias? — perguntou o menino.


—Vamos chamá-las de luz e sombra, que se deslocam ao redor da


sua forma enquanto você pensa e sente. A luz fica diferente


conforme você esteja feliz ou triste, inspirado ou cansado, animado


ou entediado. Alguns mortais caminham pelo mundo como luzes


brilhantes, outros como melancólicas sombras. Mas por mais


luminosa que possa ser a luz, ela não é tão real quanto o silêncio


puro que existe dentro de você.


—Por que não vejo a mim mesmo como você vê? — indagou Artur.


—Porque essas energias funcionam como mantos. Alguns são


densos, outros leves, e não existem duas pessoas que possuam


camadas idênticas. Mesmo assim, todos vocês se parecem com


nuvens ambulantes. Enquanto você não despir as camadas que


envolvem sua alma, você não perceberá o núcleo límpido e


intemporal que jaz no centro do seu ser.


92


VIVENDO COM A LIÇÃO


Na doutrina da alquimia, os quatro elementos — terra, ar, água e


fogo — misteriosamente se combinaram para chegar a um produto


final chamado vida. É inegável que você seja composto dos


elementos terra, ar e água, rearrumados a partir de uma forma


anterior, como a comida. No entanto, a chama que inflama esses


materiais inertes não pode ser destilada, por não ser um fogo visível,


ou mesmo um calor metabólico. É o fogo da transformação, puro e


simples. Por conseguinte, você é a transformação, o transformador e


o transformado. Você é seu próprio alquimista, que constantemente


transmuda moléculas opacas e inertes na personificação viva de si


mesmo. Esse é o ato mais criativo e mágico que você jamais poderá


empreender.


Não existe limite para as maravilhas dessa alquimia. Em qualquer


momento dado você pode estar lendo um livro, digerindo uma


refeição, fabricando proteínas e enzimas, armazenando informações


como memória, crescendo, respirando, sentindo seu ambiente,


curando uma ferida, substituindo células mortas, evitando o ataque


de vírus e executando inúmeras outras ativi-dades. Todas essas


transformações ocorrem, em grande parte, desapercebidas. O


alquimista é invisível, trabalha atrás dos bastidores, e poucos de nós


pensamos, algum dia, em descobrir quem ele é. Seu lar não está


situado no tempo e no espaço e sim no intemporal, além da memória.


Sente-se por um instante, e imagine que você consegue ver sua


vida como um pergaminho que vai se desenrolando à medida que


você examina eventos que aconteceram cada vez mais no passado.


Comece desenrolando esse pergaminho até enxergar uma cena


familiar, como a do dia em que você conseguiu seu atual emprego.


Veja-a com clareza, e depois recue um pouco mais, digamos à época


em que você frequentou a faculdade, e continue a desenrolar o


pergaminho passando pelo segundo grau, primeiro grau e jardim de


infância. Veja o mais claramente possível as cenas de quando você


era criança, de quando você começou a andar, de quando era um


bebé. Não importa que as


93


imagens não sejam vívidas; basta que você tenha um sentimento de


como era ser você mesmo naquelas idades.


Recue agora ao dia em que você nasceu — isso será pura


imaginação — e depois veja a si mesmo como feto, e a seguir como


uma coleção de células transparentes que formam uma bola. Observe


a bola até ela se transformar em duas células, e depois em uma.


Finalmente, vá adiante e imagine-se antes disso, sem mesmo uma única


célula à qual você possa se apegar.


Ao transpor esse limiar, repare que sua identidade não desaparece.


Mesmo não tendo um corpo ou uma imagem para observar, você


continua a ser quem você realmente é — uma consciência observante


que permanece a mesma embora o cenário da sua vida


constantemente se modifique. Essa é sua identidade como


consciência, um alquimista sábio e ativo que permanece


independente, atrás do incessante espetáculo da transformação.


Tente agora imaginar o desaparecimento dessa consciência. Em


outras palavras, imagine uma época antes de você existir. Isso não


pode ser feito, porque o alquimista não está limitado à esfera do tempo,


onde todos os eventos têm um início e um fim. Analogamente, você pode


desenrolar o pergaminho em direção ao futuro e tentar imaginar-se


morto e completamente inexistente. Mais uma vez, isso não pode ser


feito. Quando você alcança o final da memória, do sentimento, da


emoção, da imaginação e das ideias, o que ainda permanece é você


numa forma pura, como um impulso vital, que flui eternamente através


do milagre da criação. Esse fluxo tem lugar como uma incessante


transformação, a alquimia da existência estendendo-se por todos os


mundos e transcendendo-os.


94


12a Lição


A sabedoria está viva e é, portanto, sempre imprevisível.


A ordem é outra face do caos, o caos é


outra face da ordem.


A incerteza que você sente interiormente é a porta de


entrada para a sabedoria.


A insegurança sempre estará com o que busca — ele


continua a tropeçar mas nunca tomba.


A ordem humana é feita de regras. A ordem do mago não tem


regras — ela flui com a natureza da vida.


Pequenos detalhes da natureza amiúde chamavam a atenção de


Merlim, e neles ele conseguia perceber lições. Certo dia, quando ele


e Artur caminhavam pela floresta, ouviram um gaio repreen-dendoos


de um pinheiro nas proximidades.


— Pare e olhe — comentou Merlim baixinho.


O gaio era um pássaro nervoso e extravagante. Depois de chilrar


para os dois intrusos, voou até outro galho para ter uma visão


melhor. Depois de alguns segundos, ainda insatisfeito, voou para um


terceiro. A seguir, o pássaro aparentemente esqueceu-se da


presença dos dois e saltou no chão para examinar uma pinha. Em


questão de segundos, ele patinhou numa poça d&
39;água, enxotou uma


garriça cinzenta e começou a bicar um pedaço de casca de árvore em


decomposição.


— Qual é a sua opinião sobre esse modo de vida? —


perguntou Merlim.


95


—Considero-a desprezível — replicou Artur. — O pássaro age como


uma bola de penas desmiolada que não tem ideia do que vai fazer a


seguir.


—E o que parece sempre que uma criatura vive apenas confiando


em Deus — disse Merlim. — Ele passa os dias seguindo um impulso


descuidado após o outro, sem pensar no futuro, e, no entanto,


consegue viver muito bem, você tem que admitir.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


A natureza da vida é conter tanto o caos quanto a ordem. Os padrões


emergem da desordem e se dissolvem novamente nela. Seu corpo é


totalmente caótico em determinados níveis — átomos rodopiantes de


oxigénio penetram na sua corrente sanguínea a cada respiração,


numerosas enzimas e proteínas enchem cada célula, e até a descarga


de neurónios em seu cérebro é uma incessante tempestade elétrica.


No entanto, esse caos é apenas uma das faces da ordem, pois não há


dúvida de que nossas células são obras-primas de uma função


organizada, que nossa atividade cerebral resulta em pensamentos


coerentes.


Com efeito, o caos e a ordem existem em tão estreita comunhão


que não podem realmente ser separados.


— Antes de ser uma estrela dançante, você precisa ser o caos — disse


Merlim. E isso é literalmente verdadeiro, pois os rodopiantes gases


primordiais que formaram o universo tiveram que preceder o


nascimento das galáxias. No início, esses gases não exibiam nenhum


padrão, apenas uma leve tendência de serem atraídos uns para os


outros. No entanto, a partir desse ténue indício de atração


gravitacional, foi posta em movimento uma cadeia de eventos que


acabou por conduzir à formação do ADN humano, uma molécula de tal


modo complexa que perturbar qualquer um de seus três bilhões de


unidades genéticas poderia estabelecer a diferença entre a vida e a


morte.


Na escala pessoal, todos nos debatemos na ordem e na desordem.


As coisas têm a tendência de se desintegrar; o que era


96


fresco e maduro acaba por se deteriorar; o que era jovem fica velho e


morre.


— A morte é uma ilusão — disse Merlim —, mas a luta que


os mortais empreendem diante da morte é extremamente real.


Nenhum mortal efetivamente sabe o que é a morte, mas o evento


é de tal modo assustador que os mortais lutam contra ele com


todas as forças, sem perceber a tremenda desordem e o caos que


provocam com essa atitude.


O mago sabe que a vida sempre se organizou a partir do interior.


A mesma leve atração da gravidade que criou as estrelas dançantes a


partir do caos existe em cada nível da natureza. A rosa pode ter a


certeza absoluta de que se transformará numa rosa, embora ao


nascer ela possa se parecer com um feijão ou uma violeta, e em forma


de semente sua única reivindicação de individualidade possa repousar


em seus filamentos geminados de ADN. Nós, humanos, contudo, nos


preocupamos muito em virmos a ser perfeitos, de modo que


despendemos incontáveis horas esforçando-nos para garantir nossa


singularidade.


—O que importa se os pássaros vivem sem pensar, ou se uma rosa é


sempre uma rosa? — indagou Artur. — Eles não têm uma mente e


portanto sua única escolha é ser o que são.


—É verdade, vocês mortais têm o livre-arbítrio, mas vocês atribuem


a ele uma importância exagerada — replicou Merlim. — Eu vivo sem


escolhas e considero minha vida muito mais feliz.


—Sem escolhas? Mas você toma as mesmas decisões que eu tomo —


protestou Artur.


Merlim deu de ombros.


—Você se deixa enganar pelas aparências. Examine sua mão. Não


há dúvida de que ela lhe pertence; no entanto, você não escolhe como as


células dela se desenvolvem; você não tem noção de o que faz os


nervos e os músculos dela se moverem; você não obriga


conscientemente suas unhas a crescerem e nem faz um corte cicatrizar


quando machuca a mão, não é verdade?


—Sem dúvida, não preciso fazer nada disso.


—Em outras palavras, elas não representam uma escolha para você


— prosseguiu Merlim. — Essas funções foram entregues a um lado


involuntário do seu cérebro, que cuida automa97


ticamente delas. Do mesmo modo, todas as coisas às quais você dedica


tanto tempo, pensar, decidir, sentir, escolher, julgar, eu entreguei ao


lado automático do meu cérebro, o que é a mesma coisa que dizer que


eu as entreguei a Deus.


— Então para que você usa sua mente consciente? — perguntou


Artur.


— Para apreciar este mundo e o milagre da vida. Sou testemunha


de tudo que existe, e posso lhe assegurar que não existe espetáculo


mais belo, surpreendente ou satisfatório.


VIVENDO COM A LIÇÃO


A vida moderna está tão cheia de pressões que a empurram de um


lado para outro que a maioria de nós reage tentando impor-lhe ordem.


Nossa sociedade de forças caóticas é portanto uma sociedade de


infindáveis leis e regulamentos. Isso não é de causar surpresa, porque


os seres humanos vicejam na ordem e se assustam com a desordem.


Esta última é imprevisível e está fora do nosso controle, fazendo,


portanto, com que nos sintamos estressados. Pense numa ocasião em


que a desordem e a imprevisibilidade tenham de repente invadido sua


vida: um momento em que você tenha perdido um avião, em que seu


carro tenha enguiçado à beira da estrada, em que você tenha ouvido a


pessoa amada dizer que perdeu o emprego.


Quase sempre esses eventos se resolvem sozinhos; nenhum dano é


realmente causado à sua existência, apenas uma simples


inconveniência. Entretanto, seu sistema nervoso provavelmente reagiu


de forma voervta, expressando medo e desconforto quando seus


planos não deram certo. A reação do ego diante do caos é combatê-lo e


impor um controle ainda maior. Na vez seguinte em que você viajou


de avião, você provavelmente verificou duas vezes o horário da partida


e saiu cedo para o aeroporto. Na vez seguinte em que dirigiu, você


provavelmente tomou precauções para evitar que o carro enguiçasse


novamente. O problema é que toda essa luta, preocupação, planejamento


e controle vai contra o sentido da vida. A vida comprime junto


98


o caos e a ordem. Não é possível ter um sem o outro. Se você quer


acompanhar o fluxo da vida, você não pode ao mesmo tempo lutar


contra ele. Por conseguinte, aquele que busca a perfeição aceita que


a incerteza sempre existirá em sua vida, que ele sempre se sentirá


desequilibrado.


— O papel do discípulo — disse Merlim — é sempre tropeçar,


mas nunca cair.


Apesar do fato de seu ego detestar a imprevisibilidade, a verdade


é que você várias vezes extraiu benefícios dela. Pense por um


momento nas inesperadas oportunidades que surgiram em seu


caminho, nas ofertas de ajuda que você jamais antevira, nas


repentinas ideias e inspirações que você teve, nas decisões


impulsivas de se mudar ou falar com um estranho que abriram novos


horizontes. Essa é a maneira natural de viver.


— Sua vida já está organizada dentro de si mesma — disse


Merlim. — A vida emana da vida, o botão se transforma na flor,


a criança se torna um adulto. Confie em cada estágio, celebre-o,


e deixe que o seguinte venha a você sem esforço.


Um simples exercício poderá lhe mostrar como é maravilhoso


viver uma vida imprevisível. Sente-se por um momento e imagine


que você pode ver sua vida na mente como um vídeo. Comece a


passar o vídeo com os eventos de hoje e deixe-os se desenrolarem da


maneira como você deseja que seja o amanhã, o depois de amanhã, e


em seguida imagine-se envelhecendo: veja o futuro que você gostaria


de viver se pudesse ter tudo que quisesse. Deixe sua fantasia vagar


por onde ela quiser, e termine o vídeo com sua morte. Faça dela uma


morte desejável, indolor e tranquila.


Depois de fazer isso, volte atrás e veja um vídeo completamente


diferente. Comece com os eventos de hoje, mas faça com que eles


resultem em algo completamente diferente. Você está apenas


fazendo uso da imaginação, de modo que pode inventar uma vida


turbulenta e catastrófica, uma vida dramática, ou ainda uma vida


santa. Leve o vídeo até a cena da sua morte. Volte mais uma vez e


recomece tudo. A finalidade do exercício é mostrar que tudo que


você visualizou é verdade — seu futuro não é composto de um único


cenário, mas sim de todos os cenários possíveis. Eles se expandem a


partir do momento presente como


99


fios invisíveis de potencial. A vida de todo mundo é assim; somente


nosso falso senso de controle nos faz acreditar que podemos impor a


ordem ao que na verdade é totalmente imprevisível.


O ego precisa examinar seus receios e parar de tentar controlar as


coisas. Essa é uma parte enorme da busca que você está


empreendendo. Se você conseguir aceitar o fluxo da vida e se render a


ele, você estará aceitando o que é real. Somente quando aceitar o que


é real é que você poderá viver com paz e felicidade. A alternativa é


uma luta interminável, porque ela é uma luta com o irreal, com uma


miragem da vida em vez de com a vida propriamente dita.


100


13a Lição


A realidade da sua experiência é uma imagem especular das suas


expectativas.


Se você projetar as mesmas imagens todos os dias, sua realidade


será a mesma todos os dias.


Quando a atenção é perfeita, ela cria ordem e clareza a


partir do caos e da confusão.


Depois de se tornar rei, Artur só compartilhou suas experiências na


gruta de cristal com uma única pessoa, sua esposa. Passaram-se


anos antes que Merlim reaparecesse, e Guinevere pensava nele mais


ou menos como pensaria num unicórnio ou outro animal mítico.


—Se ele for tão selvagem quanto as sombrias montanhas galesas


onde dizem que ele nasceu, eu morreria de medo de encontrá-lo —


confessou ela certa vez a Artur.


—Ele não é assim — retrucou Artur. — Ele não se parece com


nada que você poderia esperar ou prever.


—Meu senhor, conheci magos na corte francesa, ou aqueles que


assim se chamavam — declarou Guinevere. — Eles não são


simplesmente velhos, com uma longa barba branca, que agem de


uma maneira muito sábia, e sacodem a cabeça como se estivessem


vendo coisas que não podemos ver, e afirmam ter poderes que


ninguém jamais testemunhou?


Artur sorriu.


— Esses magos atravessaram meu caminho, mas Merlim


não era um deles. Certa vez eu disse a ele: "Em que você e eu


somos diferentes? Para mim somos apenas duas pessoas à beira


de um riacho, sentados debaixo de uma árvore, esperando para


101


pescar um peixe para o jantar." Ele olhou para mim e sacudiu a


cabeça. "É verdade que somos apenas duas pessoas sentadas aqui


como você diz, mas para você este cenário é toda a sua realidade, ao


passo que o riacho, a árvore e tudo que nos cerca é uma partícula


mínima sobre o horizonte mais distante da minha consciência."


Guinevere perguntou:


—Se Merlim realmente vivia num mundo tão separado do seu, ele


algum dia lhe disse como alcançá-lo?


—Disse — respondeu Artur. — Ele insistiu em afirmar que minha


versão da realidade, a árvore, o riacho, a floresta, era uma completa


ilusão, uma alucinação particular que minha mente me impôs, enquanto


o mundo dele estava aberto a todos por ser um mundo totalmente de


luz.


Guinevere ficou perplexa.


—Mas tanto você quanto eu estamos vendo este quarto onde


estamos, e todo mundo que conhecemos também consegue vê-lo. Não


creio que ele seja apenas uma ilusão.


—Deixe-me então mostrar-lhe uma coisa — disse Artur. Ele pediu à


rainha que deixasse o aposento e prometesse não retornar até a


badalada da meia-noite. Guinevere fez o que o marido lhe pedira, e ao


voltar descobriu que o quarto estava escuro como breu, as velas todas


apagadas e as cortinas de veludo fechadas.


—Não se preocupe — disse uma voz. — Estou aqui.


— Meu senhor, o que quer que eu faça? — perguntou


Guinevere.


Artur replicou:


— Queco descobrir se você realmente conhece este quarto.


Caminhe na minha direção e descreva os objetos que estão ao


seu redor, mas não toque em nada.


A rainha achou que esse era um teste muito estranho, mas fez o


que o marido lhe pedira.


— Aqui está nossa cama, e ali a arca de carvalho do meu


dote, que eu trouxe através da água. No canto está um candelabro


espanhol alto, de ferro batido, com duas tapeçarias penduradas


de cada lado.


Caminhando com cuidado para não tropeçar nas coisas, Guinevere


foi capaz de descrever cada detalhe do quarto, que na verdade tinha


sido mobiliado por ela, até o último travesseiro.


102


—Olhe agora — disse Artur. Ele acendeu uma vela, depois uma


segunda e uma terceira. Olhando em volta, Guinevere ficou perplexa ao


perceber que o quarto estava completamente vazio.


—Não compreendo — murmurou ela.


—Tudo que você descreveu foi uma expectativa do que este quarto


contém, e não do seu verdadeiro conteúdo. Mas a expectativa é


poderosa. Mesmo no escuro, você viu o que você esperava e reagiu de


acordo com sua expectativa. O quarto não lhe pareceu o mesmo? Você


não andou com cuidado nos locais onde achava que poderia tropeçar


nos objetos? — Guinevere fez que sim com a cabeça. — Mesmo à luz do


dia — continuou Artur, — andamos por aí de acordo com o que


esperamos ver, ouvir e tocar. Cada experiência se baseia na


continuidade, que alimentamos ao nos lembrarmos de tudo como era


no dia anterior, na hora anterior ou no segundo anterior. Merlim me


disse que se eu pudesse ver totalmente sem expectativas, nada que eu


tivesse como certo seria real. O mundo que o mago vê é o mundo real,


depois que a luz aparece. O nosso é um mundo de sombras que


tateamos no escuro.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


O mago libertou-se completamente do conhecido. Para ele, a única


liberdade jaz no desconhecido, porque tudo que é conhecido já passou


e está morto.


— Você sabe por que eu sempre digo que seu mundo é uma prisão?


— perguntou Merlim. — Porque tudo que a mente pode conceber


precisa ser restringido. Tão logo você atribui palavras a uma


experiência, envol ve-a com o pensamento ou diz "eu sei", algo


maravilhoso e invisível escapole. Os limites são gaiolas; a realidade é


um pássaro delicado que treme na sua mão. Se você o segurar por


muito tempo, ele morrerá.


Se é verdade que o desconhecido é seu bilhete para a liberdade,


também é verdade que o ego se sente mais à vontade com limites.


Nossa mente gera as mesmas imagens dia após dia. Essas imagens são


um espelho de quem você é, e no entanto o


103


ego as considera reais. "Não é óbvio que uma árvore é uma árvore,


um muro um muro, uma montanha uma montanha?" pergunta o ego.


Mas eles só são reais num determinado estado de consciência — o


estado desperto. Num sonho você poderá se sentar num campo e


observar as nuvens passando sobre uma montanha. Ao acordar, você


compreenderá que a montanha, as nuvens e o campo eram apenas


descargas aleatórias de células cerebrais dando origem a imagens


passageiras. Não existe nenhuma prova de que estar acordado é


diferente. Montanhas, campos e nuvens "reais" não possuem uma


realidade comprovável fora das imagens que explodem em seu


cérebro. Artur ficou chocado quando Merlim descartou o mundo


visível como uma ilusão.


—Mas eu posso tocar nas coisas à minha volta e sentir que elas são


duras. Se eu bater a cabeça contra uma pedra, terei uma contusão —


protestou Artur.


—As imagensnão são apenas visíveis — lembrou-lhe Merlim. — Você


também pode tocar as coisas num sonho, e sentir toda a amplitude das


sensações.


—Então por que faço uma distinção entre estar acordado e estar


sonhando? Por que todo mundo chama um de realidade e outro de


ilusão?


—Hábito. Se os mortais assimilassem esse conhecimento dos


magos, eles aprenderiam a fazer despertos tudo que fazem nos sonhos.


Os limites começariam a se dissolver, e a realidade os tiraria da sua


sombria prisão.


Todos experimentamos o novo e o desconhecido, mas poucos de


nós vemos este último como uma força que acena para nós. O


desconhecido contém pistas que conduzem a outra realidade. Que


pistas são essas? Elas mudam a cada momento, mas se você examinar


atentamente qualquer imagem que o mundo lhe apresente, uma parte


maior do seu eu começará a olhar de volta. A aparente aleatoriedade


dos eventos começará a se transformar em forma e significado, como


se parte de você estivesse dizendo: "Estou aqui. Você não consegue me


encontrar?" Encontros casuais, coincidências inesperadas, pressentimentos


que se tornam realidade, a repentina realização de desejos,


lampejos de uma felicidade imprevisível, a sensação de


104


um profundo conhecimento, o despertar da confiança — todos são


formas que a realidade pode assumir quando ela nos convence a sair das


prisões que nós mesmos construímos. Não somos obrigados a escutar


esse sussurro que acena para nós. A escolha é totalmente pessoal.


Uma decisão precisa ser tomada, no recôndito do seu coração, entre


o conhecido, que é rançoso porém familiar, e o desconhecido, que é


novo, um campo de infinitas possibilidades.


VIVENDO COM A LIÇÃO


Viver com esta lição significa ir além da fronteira do conhecido. Se você


pudesse esquecer tudo e não antever nada, você automaticamente daria


consigo transpondo os limites que o impedem de perceber uma


realidade superior. Essa realidade superior está enredada na


realidade familiar que você vê e atravessa diariamente; nenhuma


distância separa as duas. E contudo milhões de quilómetros também


podem separar as duas.


Ao lado do hábito e da inércia, o medo também ajuda muito a manter


a realidade igual ao que sempre foi. Experimente uma versão do teste a


que Artur submeteu Guinevere. Coloque-se, à noite, no meio de um


aposento familiar completamente às escuras. Ande agora através dele,


aproximando-se o mais possível dos objetos do aposento sem tropeçar


neles. Você irá reparar que é extremamente difícil andar por um


aposento às escuras, por melhor que você o conheça, sem sentir uma


certa apreensão. Quase todos tememos a cegueira por causa da


incerteza que ela provocaria; o coração dispara diante do pensamento


de que poderíamos cair ou derrubar as coisas.


No entanto, você está na verdade demonstrando que o conhecido


não é capaz de protegê-lo do medo. Por melhor que você conheça o


aposento, a apreensão está presente, e o mesmo acontece no mundo à


luz do dia, só que nele o medo está enterrado um pouco mais


profundamente. Precisamos de algo mais do que o escuro para ficar


com medo: um acidente, uma quebra da rotina, a repentina perda da


segurança. Por mais à


105


vontade que você ache que está no mundo das coisas conhecidas, o


potencial para o desastre nunca está muito longe do seu


subconsciente.


Você pode obter uma amostra do desconhecido com outra


experiência simples. Ponha uma venda nos olhos e sente-se na cozinha.


Peça a um amigo que coloque três pratos de comida à sua frente sem


lhe dizer quais são. Prove-os pedindo a seu amigo que ponha uma colher


ou um pedaço do alimento na sua boca. Você rapidamente reconhecerá


cada comida, mas também deverá perceber que, na fração de segundo


de incerteza antes do reconhecimento, você provará algo novo — uma


textura inesperada, uma nuança de sabor, um leve aroma — que você já


não lembrava estar presente.


Esse é o poder da incerteza. Enquanto você tiver certeza das coisas,


você estará vivendo dentro de limites. No entanto, coisas a respeito das


quais você se sente tão seguro possuem na verdade novas qualidades a


serem desenvolvidas.


— Deus criou este mundo — disse Merlim. — Portanto ele deve ser


suficientemente interessante para prender a atenção Dele. Se você


descobrir que as coisas estão ficando monótonas, rançosas ou


previsíveis, talvez tenha sido você que perdeu a capacidade de se


interessar.


É difícil para o ego aceitar a abertura do caminho para a incerteza,


mas ele é a única avenida que conduz ao mundo do mago.


106


14& Lição


Os magos não lamentam a perda, porque a única coisa que


pode ser perdida é o irreal.


Mesmo que você perca tudo, o real permanecerá.


No cascalho da devastação e do desastre estão enterrados


tesouros ocultos.


Quando você examinar as cinzas, examine bem.


Como acontece a todas as crianças, a morte um dia chamou a


atenção de Artur. Ele tinha quatro ou cinco anos quando Merlim


encontrou-o agachado na floresta contemplando uma pequena pilha


de penas cinzentas, os restos mortais do que fora um dia um pardal.


—O que aconteceu a ele? — perguntou o menino.


—Depende — replicou Merlim.


—De quê?


—De como você encara o processo. A maioria dos mortais o


chamaria de um pássaro morto. Com morto eles querem dizer que a


vida dele foi destruída. Os mortais mais sábios, contudo, fazem um


exame mais profundo. Eles percebem que a morte é apenas uma


rearrumação. A substância da qual o pássaro era formado está


voltando à terra para se misturar com os elementos que o deram à


luz.


O menino pensou por um momento.


—Por que fico com medo quando vejo isso?


—Por causa da memória. Quer saiba quer não, você formou ideias


a respeito da morte desde que era bebé, e à medida que elas se


desdobram você se lembra do medo e da dor ligados a essas


memórias.


107


O menino era pequeno demais para entender tudo que Merlim


estava dizendo, e, como a maioria das crianças, parou de fazer as


perguntas realmente profundas. Durante um ano ele ficou satisfeito


com as explicações de Merlim, até que passou pela cabeça dele que a


morte também poderia acontecer a ele e não apenas aos animais.


— Eu acho — disse Artur quando tinha doze anos — que é


provável que eu fique cada vez com mais medo da morte.


Merlim concordou.


— A medida que você experimentar mais o mundo, suas


memórias voltarão cada vez com mais força. Mas existe também


outra coisa. Os mortais temem a morte porque têm medo de


perder suas posses. Quando você vê um animal morto, você não


é capaz de dizer qual a parte dele que morreu. Depois do último


suspiro, o corpo pesa a mesma coisa; as células são as mesmas.


Apenas a respiração está ausente, e seja o que for que está além


dela.


"Mas os mortais têm casas e coisas dentro deles. Eles têm famílias


e experiências que lhes são caras. A ideia de perdê-las assusta-os


terrivelmente. Mas vou lhe contar um segredo. Nada morre no instante


da morte. A morte é um começo, não um fim. Os mortais a temem


porque se apegam às suas memórias. Ninguém realmente sabe o que é


a morte. Adote a perspectiva do mago e acolha com alegria todas as


perdas, até mesmo a perda suprema da morte."


—Vou tentar — declarou Artur hesitante —, mas você está certo.


Existem muitas coisas que não quero perder.


—Desapegue-se então um pouco, e lembre-se: tudo a que você se


agarra já está morto, porque é passado. Morra a cada momento e


você descobrirá a porta para a vida eterna.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


Num mundo de mudança é preciso que haja ganho e perda. O ego


considera o ganho bom e a perda má, mas a natureza não estabelece


essas distinções. Enquanto houver criação, tem que haver destruição.


108


— Vocês, mortais, gostariam de abolir a morte — declarou


Merlim —, mas não pensam em como o mundo ficaria entulhado


de pessoas, animais e plantas. A floresta em breve ficaria


sufocada debaixo da sua própria força vital, os mares se retorce


riam com criaturas lutando por espaço e ar, e a delicada beleza


da natureza deixaria de existir.


O ciclo de nascimento e morte torna-se uma questão de medo e


luta somente quando se torna pessoal. Após lutar durante toda a vida


para evitar a perda, o ego considera a morte a derrota final. Para a


maioria das pessoas o medo da morte é por demais esmagador para ser


enfrentado; é um assunto empurrado para o subconsciente e negado na


vida cotidiana. Ou então a negação é intelectualizada, fazendo com que


a morte se torne um mistério metafísico que pode ser examinado a


partir de uma segura distância emocional.


Os magos dizem que a morte não pode ser conhecida, por uma


razão diferente; eles alegam que a experiência normal, e com ela


nosso modo normal de conhecimento, pára no momento da morte. A


experiência normal está orientada para o que podemos ver, ouvir,


tocar, cheirar e provar. Adicionam-se ainda o pensamento e a emoção.


Morrer significa abandonar os sentidos, deixar para trás o mundo


material, e ir em direção a um novo tipo de percepção.


—Se você ao menos o soubesse — disse Merlim —, eu já estou


morto.


—Isso não me parece possível — retorquiu Artur. — Estar vivo para


mim significa comer, beber, dormir e ter experiências. Você não faz isso


o tempo todo, exatamente como eu?


Merlim sacudiu a cabeça.


—Por que você acha que a vida e a morte não podem coexistir? Ao


mesmo tempo que faço todas as coisas que você mencionou, também


me encontro num estado de conhecimento, consciente de mim apenas


como eu mesmo, que nunca nascerei e nunca morrerei. A morte abre


para nós a descoberta desse estado. Se você tiver a sorte de fazer essa


descoberta cedo, antes de deixar o corpo, melhor para você.


—Você tem muita sorte por não ter mais que temer a morte —


comentou Artur.


109


— É verdade, mas eu tomei uma decisão que a maioria de vocês,


mortais, evitaria tomar. Decidi perseguir a morte e tomá-la em meus


braços como um amante, ao passo que vocês estão sempre fugindo dela


como se ela fosse um demónio. A morte é extremamente sensível, e se


você a converter num demónio ela se manterá afastada e guardará para


si seus segredos. "Na verdade, tudo que você teme com relação à morte


é uma projeção da sua ignorância. Você simplesmente tem medo do que


desconhece.


VIVENDO COM A LIÇÃO


A morte é um evento supremo, mas antes de ela acontecer, inúmeras


perdas secundárias acontecem durante o percurso. Se você parar um


momento para pensar no assunto, poderá facilmente perceber o


padrão de perda e ganho que atravessa sua vida. Quando ocorrem, as


perdas parecem dolorosas, e o ego inevitavelmente reage diante delas


querendo resistir. No entanto, a passagem da infância para a


adolescência é uma perda a partir de uma perspectiva e um ganho a


partir de outra; o casamento representa a perda da vida de solteiro e a


aquisição de um parceiro. O ganho e a perda são duas faces do mesmo


fenómeno. A única coisa na vida que acarreta um ganho absoluto é o


ganho da percepção consciente, que é a essência da busca.


— Já lhe ocorreu alguma vez que você não pode perder nada —


perguntou Merlim — porque você nunca na verdade teve nada? A


única coisa que você realmente já teve é você mesmo. Esse eu poderá


passar algum tempo numa casa ou num emprego, algum tempo na


presença de certas coisas ou ter uma certa quantidade de dinheiro, mas


com o tempo tudo isso se modifica. Tudo que você tem então é uma


memória, uma imagem, um conceito. Estes não são reais; são


invenções da mente. Os pensamentos são como hóspedes; eles entram


e saem enquanto você permanece. Encare os objetos e as posses da


mesma maneira. Eles vêm e eles vão. O que fica é você.


A vida está repleta de adversidades, pequenas ou grandes. O ego


assumiu o fardo de proteger sua vida. Ele o defende da perda


110


e da desgraça, e afasta o conceito da morte pelo maior tempo


possível. Mas o mago acolhe com alegria a adversidade, qualquer


perda, pelas seguintes razões, que você pode aplicar à sua vida: tudo


na criação é feito de energia. Depois de criada, qualquer forma de


energia precisa se sustentar por um certo tempo. Depois de um


período de estabilidade, a força vital deseja pôr em cena algo novo.


Para que isso aconteça, padrões desgastados precisam ser


dissolvidos.


Essa dissolução tem lugar em nome da vida, porque só existe vida


à nossa volta. Não obstante, o ego se apega a certas formas de


energia que ele não quer ver dissolvidas. Uma grande quantidade de


dinheiro, uma casa, um relacionamento, um governo — à maneira


deles, todos são formas de energia que tentamos proteger do fluxo


do tempo. As pessoas lutam até a morte, como diz o ditado, o que


significa que elas defenderão algo até que a dissolução seja a única


alternativa.


Na verdade, essas lutas não são necessárias, você não pode lutar


para fazer uma rosa florescer. Você não pode se esforçar para fazer


com que um embrião se transforme num bebé, essas coisas


simplesmente acontecem seguindo seu ritmo natural. Seu ego


facilmente aceita esse fato com relação às rosas e aos bebés, mas


não a respeito de dinheiro, casas, relacionamentos e outras coisas às


quais ele se apega. Mas o mago percebe que as mesmas leis


universais governam a vida. Afinal de contas, o ego não se esforçou


para trazer você ao mundo.


A luta do ego é uma forma de oposição à vida, porque ele tenta


impor uma vida artificial.


— A natureza leva as coisas embora por suas boas razões e


na época adequada — disse Merlim. — Se você quiser flores fora


da estação, você pode bordar flores que irão durar para sempre,


mas quem poderia fingir que elas estão efetivamente vivas?


Analogamente, sempre que você sente necessidade de controlar e


lutar, de manter as pessoas, o dinheiro ou as coisas presos a você


quando eles vão embora, você está se opondo à força universal que


mantém tudo em equilíbrio.


— Você terá que adquirir confiança antes de poder renunciar


ao seu controle. Seu condicionamento conduz à desconfiança,


porque vocês, mortais, querem desesperadamente acreditar que


111


são imunes aos ciclos da natureza — disse Merlim num tom meio


divertido. — Enquanto seu corpo nasce, envelhece e morre, vocês


criam fantasias a respeito de deixar prédios e estátuas imortais, uma


reputação e cofres cheios de riquezas. Façam como quiserem, mas


se vocês querem escapar à dor e à morte, livrem-se primeiro da


ilusão de que estão além da natureza.


Quando você começar a perceber as sementes da oportunidade


nas cinzas da desgraça, a confiança estará começando a crescer.


Essa confiança surge em estágios. Primeiro, comece a perceber que


os julgamentos do ego sobre a perda são falsos.


— A dor não é a verdade — disse Merlim. — A dor é o que


os mortais sofrem para descobrir a verdade.


Segundo, procure a outra face da desgraça ou da perda, a


minúscula semente do novo que quer nascer.


— Quando você examinar as cinzas — recomendou Merlim


—, examine bem.


Terceiro, substitua a culpa e a queixa pelo conhecimento calmo e


seguro de que você está protegido no plano da natureza; não importa


o que você possa ter perdido, é temporário e irreal. Isso estava


destinado a ir embora, não porque a natureza seja cruel e


indiferente, mas porque cada passo que você dá em direção ao real é


precioso. A partir dessa perspectiva, você começará a perceber que a


perda e o ganho são apenas uma máscara. Debaixo dela encontra-se


a luz constante do eterno, que brilha através de todas as coisas,


tecendo a unidade a partir do caos.


112


15- Lição


Na medida em que você conhece o amor, você se torna o


amor.


O amor é mais do que uma emoção. Ele é uma força


da natureza


e, portanto, tem que conter a verdade.


Quando você pronuncia a palavra amor, você pode captar o


sentimento, mas a essência não pode ser proferida.


O amor mais puro situa-se onde é menos esperado —


no desapego.


O mais puro cavaleiro a servir Artur era Galaad, e contudo ele tinha


em comum com o rei o fato de ser um filho ilegítimo. Não havia


nenhum estigma associado ao fato de Galaad ser filho natural de


Lancelote, mas quando chegou o dia de Galaad tornar-se o paladino


de uma dama da corte, Artur sacudiu a cabeça e franziu a


sobrancelha.


—Eu não faria de você o paladino de nenhuma nobre dama —


declarou Artur. Galaad ficou vermelho como um pimentão e


gaguejou:


—Mas, meu senhor, todo cavaleiro deve servir uma dama devido


à pureza do seu amor.


—O que você sabe do amor? — indagou Artur, num tom tão direto


que Galaad ficou duas vezes mais vermelho. — Se você está tão


ansioso para ser o paladino de uma dama, eu lhe oferecerei três


delas para que você faça sua escolha.


O rei imediatamente mandou chamar Margaret, uma velha


faxineira de cabelos grisalhos e verrugas no nariz.


113


— Você a serviria por amor, belo cavaleiro? — inquiriu


Artur.


Galaad estava desconcertado.


— Não compreendo, meu senhor — murmurou ele.


Artur lançou-lhe um olhar penetrante e mandou embora a


velha senhora.


—Tragam outra — ordenou. Desta feita foi trazida à presença de


Galaad um bebé do sexo feminino.


—Se você achou Margaret velha e feia demais para que você possa


servi-la, que tal esta dama? Ela é de origem nobre, e você precisa


reconhecer que é linda. — O bebé, sem dúvida, era lindo, mas Galaad


ficou ainda mais confuso. Ele sacudiu a cabeça.


—Esse amor a que você se refere é um senhor exigente — disse


Artur. Ele mandou buscar a terceira dama, e Arabelle, uma encantadora


menina de doze anos, entrou no recinto. Galaad olhou para ela e


tentou controlar sua raiva.


—Meu senhor, ela é apenas uma jovem donzela e minha meia-irmã


— disse ele.


—Você pediu uma dama à qual pudesse servir — declarou Artur — e


fui bastante generoso ao submeter três delas à sua consideração.


Agora você precisa tomar sua decisão.


Galaad parecia atordoado.


— Por que você está zombando assim de mim? — perguntou


ele.


Artur ergueu a mão, e num instante todos se retiraram do grande


vestíbulo, deixando os dois sozinhos.


— Não estou zombando de você — disse ele. — Estou


tentando mostrar-lhe algo que me foi ensinado por meu mestre


Merlim.


Galaad ergueu a vista e percebeu uma expressão enternecida no


rosto do rei.


—Meus cavaleiros afirmam servir as damas por amor — prosseguiu


Artur, e, apesar de seu juramento de servir virtuosamente, amiúde eles


sentem paixão por aquela que servem, não é verdade? — Galaad fez


que sim com a cabeça.


—E quanto mais apaixonadamente apegados eles são às damas,


maior o entusiasmo que sentem em servi-las, não é mesmo? —


perguntou mais uma vez Artur. O jovem cavaleiro concordou


novamente. — Merlim ensinou-me outra maneira de


114


amar — disse Artur. — Considere a velha mulher, o bebé e a menina


que é sua irmã. Todas são manifestações do aspecto feminino, e à


medida que essas formas se alteram, aquilo que você chama de amor


se modifica com elas. Quando você afirma estar apaixonado, o que


você está na verdade dizendo é que uma imagem que você carrega


dentro de si foi satisfeita.


"É assim que o apego começa, com o apego a uma imagem. Você


pode afirmar amar uma mulher, mas se ela o trair com outro homem,


seu amor se transformará em ódio. Por quê? Porque sua imagem


interior foi profanada, e como foi essa imagem que você amou o


tempo todo, a traição dela o deixa enfurecido."


—O que pode ser feito a respeito disso? — indagou Galaad.


—Olhe além das suas emoções, que sempre se modificarão, e


pergunte o que jaz atrás da imagem. As imagens são fantasias; as


fantasias existem para nos proteger de algo que não queremos


enfrentar. Neste caso é o vazio. Por não amar a si mesmo, você


forma uma imagem para encobrir o vazio. É por isso que ser


rejeitado ou traído no amor causa tanta dor: a ferida aberta da sua


necessidade fica exposta.


—O amor é considerado extremamente belo e sublime —,


lamentou-se Galaad —, mas você faz com que ele pareça horrível.


Artur sorriu.


— Aquilo que é geralmente tomado por amor pode ter


consequências terríveis, mas esse não é o fim da história. O amor


encerra um segredo. Merlim contou-me esse segredo há muitos


anos, e vou partilhá-lo com você: quando você puder amar da


mesma maneira uma velha, um bebé e uma menina, você estará


livre para amar além da mera forma. Aí então a essência do amor,


que é uma força universal, se revelará dentro de_ yQcê^JVocê


ficará livre do apego, que é o chamado silencioso a que o amor


precisa obedecer.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


Quando o mago fala do amor, ele está se referindo praticamente ao


oposto daquilo que chamamos de amor. Para nós, o amor é um


115


sentimento altamente pessoal; para o mago, ele é uma força


universal. Apaixonar-se é para nós uma condição que acaba por fenecer;


o mago não se apaixona porque se encontra permanentemente na


corrente do amor propriamente dito. Mas a maior diferença envolve o


apego. Este último surge quando você diz: "Eu o amo porque você é


meu." Esta forma de amor é realmente uma extensão do ego, que


sempre pensa em função de "eu", "mim" e "meu".


— Vocês, mortais, acham que estão diante do amor quando


se sentem completamente apegados a uma outra pessoa — disse


Merlim. — Sua fantasia é possuir alguém completamente ou ser


totalmente possuído. Mas os magos chamam amor o fato d^ não


seiítiremjnenhumsentimento de apegoxiujle_poss©v


— Isso não é simplesmente indiferença? — indagou Artur.


Merlim sacudiu a cabeça.


— A indiferença não contém vida nem energia. O amor do


mago é incrivelmente vivo e flui com a energia do cosmo. Para


que isso aconteça você precisa ser como um recipiente vazio. Os


mortais estão tão cheios de ego que não há lugar para mais nada.


O mago é completamente vazio; por conseguinte, o universo


pode enchê-lo de amor.


Merlim falou suavemente, quase com ternura.


— Apaixonar-se é uma maravilhosa oportunidade para você


— disse ele. — Normalmente você vive em segurança atrás dos


muros do seu ego. Você gosta da estabilidade que sente ali, da


sua falta de vulnerabilidade. Quando você se apaixona, os muros


desmoronam, pelo menos temporariamente. Você fica exposto


e vulnerável, exatamente como temia, mas a força avassaladora


do amor faz com que essa condição seja extática em vez de


dolorosa como você esperava. Em sua melhor manifestação,


apaixonar-se significa partilhar o desconhecido com outra alma,


estar disposto a penetrar junto com ela a sabedoria da incerteza.


Os magos não vêem as formas do amor como superiores ou inferiores


— essa é a linguagem do julgamento, e os magos não julgam.


— Se seu inimigo passar por você e o insultar — declarou


Merlim — ele estará praticando um ato de amor. O impulso do


amor foi despertado no coração do seu inimigo, transformandose


em ódio ao passar através do crivo da memória. Suas expe116


deformado ou distorcido ao vir à tona. Mas não se engane; qualquer


expressão seria amorosa se você pudesse encontrá-la na origem


dela.


—É possível construir uma ponte do tipo de amor que os mortais


sentem para o tipo que você sente? — indagou Artur.


—Você não precisa construir uma ponte, pois existe apenas um


único tipo de amor — replicou Merlim. — O amor pessoal que vocês


sentem uns pelos outros é uma forma concentrada do amor


universal; o amor universal é uma forma expandida do amor pessoal.


Você pode experimentar a ambos em sua plenitude se você se


permitir ser receptivo.


VIVENDO COM A LIÇÃO


Até certo ponto, todos nos apaixonamos por imagens. Carregamos


essas imagens dentro de nós, esperando até encontrar algo que se


ajuste a elas no mundo exterior. Geralmente procuramos uma pessoa


que reflita nossa auto-imagem ou que a corrija. Um tipo de amor


procura um espelho, o outro uma peça que está faltando. Em ambos


os casos existe uma sensação subjacente de necessidade. Por se


sentir incompleto, você tenta compensar sua carência através de


outra pessoa.


— Se você quiser sentir o amor como Deus sente, você precisa


preencher todos seus vazios, porque Deus só pode amar a partir de


um estado de plenitude — advertiu Merlim.


Ser um amante perfeito significaria não ter nenhuma fraqueza ou


ferimento secreto que você deseje que outra pessoa cure para você.


Descobrir seus vazios é o primeiro passo e preenchê-los com o Ser


ou a essência, o segundo. Este processo normalmente se chama


aprender a amar a si mesmo, mas precisamos ter cuidado com essa


expressão. Frequentemente ela é sinónimo de aprender a amar a


auto-imagem. Aos olhos do mago, a auto-imagem é simplesmente o


ego; é a negação que procura disfarçar o vazio da falta.


Uma melhor denominação para o verdadeiro processo do


aprendizado de amar a si mesmo seria aprender a amar o Eu,


117


significando o espírito. Se você examinar com sinceridade seu


passado, que está agora armazenado sob a forma de milhares de


memórias interiores, você sempre encontrará um conjunto bastante


sortido — algumas experiências podem ter despertado o amor do eu


ou de outras pessoas, muitas não o fizeram. As memórias de


vergonha, culpa, rejeição, ódio, ressentimento e de outros sentimentos


desagradáveis não podem ser convertidas em amor. Essas


imagens são o que são. Aceite-as e avance em direção a um senso


mais elevado do Eu, que não está relacionado com a memória.


Esta última só pode encerrá-lo numa sensação sufocante do seu


passado pessoal. Além da memória situa-se a tranquila experiência


do Ser, a simples percepção consciente sem conteúdo. Essa é a


região do amor, a região que existe dentro de você e na qual você


entra através da meditação. Existem muitos tipos de meditação; a


tradição, tanto no oriente quanto no ocidente, é guiada pelo


princípio de que existe dentro de você um núcleo do Ser, ou


essência, que pode ser penetrado. O acesso não se dá através do


pensamento ou do sentimento. Em vez disso, meditar é ir


diretamente à região silenciosa interior.


Você pode ter uma ideia de como é ir além das imagens através


do seguinte exercício: pense numa mulher ou num homem bonito,


que represente seu objeto ideal de amor. Veja a pessoa o mais


vividamente possível, e depois mude o rosto dela, tornando-a cada


vez mais velha, até que a beleza desapareça e você passe a


contemplar uma pessoa enrugada e encarquilhada. Seu sentimento


de amor ainda é tão forte quanto o do início? Quase todos nós


achamos extremamente difícil nutrir os mesmos sentimentos por


uma face velha e enrugada e por um rosto jovem e belo. Você pode


chamar isso de amor, quando uma mera mudança na imagem causa


uma alteração tão grande?


—Por que o amor muda? — perguntou Artur.


—Porque a emoção do amor sempre encerra seu oposto. O amor


mais forte encobre um ódio igualmente forte — replicou Merlim. — A


única diferença é que o amor está em florescência enquanto o ódio


ainda é uma semente.


Ou então experimente fazer este exercício correlato: pense. numa


ocasião em que alguém que você amava profundamente o magoou.


Pode ter sido um momento de indiferença ou traição, ou pode ter


sido um ato que revelou que seu amado não era


perfeito e sim apenas humano. S^xox^Jor-sincercL-consigCL mesmo,


118


se^lemhrará 4e como o amor pode se transformar em outros


sentimentos de uma forma violenta e repentinaJQ ódio, o ciúme, a


mágoa ou a indiferença que surgiu esteve sempre presente de uma


forma incipiente, oculto pela visão do amor que você preferia sentir. Por


que você o preferia? Além do simples prazer, existe outro motivo: o


ega Na verdade, o tipo de amor que você sente por outra pessoa diz


respeito a você, porque o que mantém ativo esse amor não é o que é


real no ser amado e sim algo bem mais premente: sua necessidade de


possuir.


Quando você pensa que possui uma outra pessoa, você está na


verdade descobrindo uma maneira de fugir de si mesmo, de evitar os


medos e as fraquezas que você nega. Em vez de se enfrentar, você


olha no espelho do amor e enxerga a perfeita realização nas emoções


que você sente pelo ser amado. Isso não é uma crítica. Na visão do


mago, o amor é na verdade uma maneira de vivenciar a realização


perfeita, mas isso não pode acontecer através da fantasia. O espelho do


amor é uma maneira divina de transcender o ego, mas somente


depois de você alcançar a corrente pura do Ser que jaz como uma


jóia secreta dentro de cada sentimento de amor.


— Lembre-se — disse Merlim —, o amor não é um mero sentimento


e sim uma força universal, e como tal ele precisa conter a verdade.


Se você for capaz de se aprofundar dessa maneira, perceberá que


todas as emoções vêm a ser o amor disfarçado. O ciúme e o ódio


parecem opostos ao amor, mas eles também podem ser vistos como


uma maneira deformada de retornar ao amor. A pessoa ciumenta


procura o amor, mas tem um jeito distorcido de envolver-se com ele; a


pessoa que tem ódio dentro de si pode querer desesperadamente o


amor, mas odeia ao se sentir desesperada por nunca consegui-lo.


Quando você parar de encarar o amor como uma mera emoção,


perceberá que faz sentido o fato de que uma força universal atrai todo


mundo na direção dele — esse é o amor do mago. Assim, deveríamos


honrar todas as expressões do amor, por mais deturpadas que sejam.


Embora poucas pessoas possam ser capazes de vivenciar o amor


universal em sua plenitude, todas estão percorrendo o caminho em


direção a ele.


119


16- Lição


Além de andar, sonhar e dormir, existem infinitas


esferas de consciência.


O mago existe simultaneamente em todas as épocas.


O mago enxerga infinitas versões de cada evento.


As linhas retas do tempo são na verdade fios de uma teia


que se estende em direção ao infinito.


O manto de Merlim era bordado com luas e estrelas, e o menino


Artur tinha curiosidade de saber por que ele era assim.


—Vou lhe mostrar — disse Merlim. O mago levou Artur para o


alto de uma colina. — Mostre-me agora a coisa mais distante que


você consegue enxergar.


—Vejo a floresta estendendo-se por quilómetros até alcançar o


horizonte. Isso é o mais longe que consigo ver — foi a resposta de


Artur.


—E o que está mais longe do que isso? — perguntou Merlim.


—A extremidade do mundo, o céu, e o sol, eu suponho —


respondeu Artur.


—E além disso?


—As estrelas e depois o espaço vazio, estendendo-se em direção


ao infinito.


—E isso também seria verdade se eu o virasse de costas? —


indagou Merlim. O menino fez que sim com a cabeça.


—Muito bem — disse o mago. — Agora, siga-me.


Ele conduziu o menino ao riacho aonde frequentemente iam à


tarde para cochilar.


120


—Agora qual a coisa mais distante que você consegue ver? —


perguntou Merlim.


—Não consigo ver muito longe nas florestas profundas como esta;


só enxergo até a última curva do riacho, ali adiante. — Artur apontou


para um ponto situado a cerca de cem metros dali.


—Mas você sabe que o riacho corre em direção ao mar e que o


mar avança em direção ao horizonte, não é? — indagou Merlim.


Artur concordou com ele. — Então o horizonte daria lugar à


extremidade do mundo, ao céu, ao sol, às estrelas e ao espaço


infinito, exatamente como antes? — perguntou Merlim.


—Sim — respondeu Artur. Uma vez mais o mago demonstrou


estar satisfeito e conduziu o discípulo à gruta de cristal.


—Agora até onde você consegue ver? — perguntou ele.


—Está escuro, e tudo que consigo enxergar são as paredes da


gruta — disse Artur —, mas, antes que você me pergunte, concordo


que fora da gruta estão a floresta, as montanhas, o horizonte, o céu,


o sol, as estrelas e o espaço vazio.


—Então guarde bem isso — declarou Merlim num tom de voz


mais elevado. — Não importa aonde você vá, o mesmo infinito se


estende em todas as direções. Você é portanto o centro de universo,


não importa aonde vá.


—Isso parece um truque — protestou Artur.


—Não, seus sentidos é que estão lhe pregando uma peça, fazendo


com que você acredite que possui uma localização específica. Na


verdade todo ponto no cosmo é o mesmo ponto, um foco para o


infinito em todas as direções. Não existe aqui ou ali, perto ou longe.


Na visão do mago, há apenas todos os lugares e nenhum lugar.


Sabendo disso, você também vestiria luas e estrelas. Sem a ilusão


dos sentidos, você compreenderia que a lua e as estrelas estão bem


aqui ao seu lado.


—Quando compreenderei isso? — perguntou o menino.


—Com o tempo. Quando o tumulto da sua alma se acomodar,


você verá os céus dentro do seu ser.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


Se acreditamos nos nossos sentidos, o espaço e o tempo não são


misteriosos. De pé sobre uma montanha, podemos ver que a terra


121


termina no horizonte e que o sol nasce no céu. Os segundos vão


passando e o tempo se desloca em linha reta do passado em direção


ao futuro. No entanto, para o mago, o tempo e o espaço são


infinitamente misteriosos. O mago acredita num presente eterno, ele


percebe que todos os eventos ocorrem simultaneamente, e cada


lugar é o mesmo ponto circundado pelo infinito.


— O espaço-tempo ordinário é um véu que você ainda não


atravessou — disse Merlim. — Enquanto confiar nos seus senti


dos, você permanecerá deste lado do véu. Quando você trans


cender seus sentidos, contudo, dará consigo em esferas e mun


dos que você não consegue imaginar agora. Cada esfera é um


estado de consciência, e a descoberta de novos mundos depende


apenas da redefinição da sua consciência até que ela desperte


para as realidades que pairam tão perto. Neste exato momento,


tanto você quanto eu podemos ver o infinito em todas as


direções, mas fazemos disso um uso muito diferente.


Para fazer uso do infinito, você precisa reformular sua concepção


mental do tempo e do espaço, descartando a percepção grosseira


dos sentidos. Você já sabe que a extremidade do mundo não é o


horizonte, que o sol na verdade não nasce no céu. Os fatos que


substituíram essas crenças erróneas podem parecer bastante


sólidos, mas também estão abertos à mudança. O mago vê o tempo,


por exemplo, como uma frágil coleção de fios tecidos momento a


momento. A cada vez que você toma uma decisão, você cria uma


nova linha de eventos que se estende a partir deste momento; até


você ter tomado essa decisão, esse fio de tempo não existia.


Por perceber o tempo dessa maneira, como subjetivo e criativo, o


mago pode tecer sua própria versão de eventos na teia e, desse


modo, alterar o passado ou o futuro.


—Alguém pode realmente modificar o passado? — perguntou


Artur.


—É claro — retrucou Merlim. — Vocês, mortais, têm o hábito de


acreditar que o passado cria o presente e que o presente gera o


futuro. Este é apenas um ponto de vista arbitrário. Imagine por um


momento sua versão de um futuro perfeito. Veja a si mesmo nesse


futuro tendo realizado tudo que possa desejar neste momento. Você


consegue se ver lá?


122


Artur fez que sim com a cabeça, porque ele tivera de repente uma


visão de Camelot em toda sua glória.


—Muito bem. Pegue agora a memória desse futuro e traga-a para


o presente. Deixe que ela influencie a maneira como você irá se


comportar a partir deste momento. Se você imaginou a paz e a


satisfação numa total ausência de medo, viva isso agora. Sempre que


impulsos de raiva, medo ou carência surgirem do passado, desfaçase


dessas memórias e aja de acordo com suas memórias futuras.


Livre-se do fardo do passado, e deixe-se guiar por sua visão de um


futuro realizado. Você percebe o que aconteceu?


—Não estou bem certo — replicou Artur.


—Você está vivendo às avessas no tempo, exatamente como faz o


mago. Viver hoje o sonho de amanhã é uma possibilidade que está


sempre aberta a você. Quem diz que você precisa viver apenas o


passado? Por viverem para a frente no tempo, os mortais são sempre


oprimidos pelo fardo da memória; eles deixam que o passado crie o


presente. O mago escolhe deixar o futuro criar o presente, é isso que


realmente significa viver às avessas no tempo.


—E você alterou o passado, então, por não mais permitir que ele


influenciasse suas ações no presente — disse Artur.


—Exatamente. Mas esse não é o final da história. O passado pode


ser modificado de um modo muito mais profundo. Quando você


aprender que o tempo está sendo inventado na sua consciência, você


perceberá que não existe passado. Existe apenas o eterno presente,


em eterna renovação. O agora é o único tempo que realmente existe.


O passado é memória, o futuro é potencialidade. Este momento é o


ponto central de qualquer futuro possível que você possa imaginar.


Mude, portanto, completamente o passado vendo-o como irreal, um


espectro da mente.


Viver às avessas no tempo não é uma fantasia, uma vez que você


já está vivendo alguma versão do futuro neste momento. Você


carrega na sua consciência modelos de como as coisas funcionam;


esses modelos lhe permitem projetar suas expectativas para a frente


no tempo. Você antevê que seus amigos continuarão a ser seus


amigos, que você continuará a ter uma


123


família e um emprego. Num nível mais profundo, seus modelos sociais


lhe dizem que o país e o governo permanecerão os mesmos, e assim


por diante. Nesse mesmo nível mais profundo, seu modelo da realidade


supõe que a gravidade, a luz e outras forças da natureza não sofrerão


modificações.


É tão importante psicologicamente para nós ter um modelo de como


as coisas continuarão a funcionar, que sofremos quando esse modelo é


ameaçado por qualquer mudança profunda ou inesperada na nossa


vida; seguindo a mesma linha de raciocínio, também usamos projeções


que nos proporcionam uma vida mais satisfatória do que a que temos


neste momento. Todos temos desejos, sonhos, temores e crenças —


eles são projeções dos nossos modelos internos — que nos conferem


uma segunda v ida, por assim dizer, inteiramente baseada em


projeções. Aos olhos do mago, quase todas as pessoas parecem trens,


com lâmpadas reluzindo na locomotiva, atravessando velozes a linha


férrea. Tudo que vêem é o que se encontra no campo de visão dos seus


faróis dianteiros, sem levar em consideração a infinita expansão de


possibilidades que se estendem em ambos os lados.


Pense na linha férrea como o tempo. Nosso estreito senso de tempo


está diretamente amarrado às nossas estreitas convicções. O pessimista


acredita que nada vai dar certo, o que lhe proporciona um modelo


unidirecional para o futuro. O idealista acredita que os valores mais


elevados irão prevalecer, e esse também é um modelo para o futuro.


Quando o pessimista depara com a boa sorte ou o idealista com


resultados que estão aquém do ideal, ambos preferem seus modelos à


realidade. Esta observação não pretende criticar a utilidade dos


modelos, e sim mostrar que eles não são reais. Em vez de enfrentar


cara a cara o momento presente, todos vivemos às avessas no tempo,


utilizando o futuro que projetamos para guiar nossas ações no


presente. Mas ao contrário do mago, não fazemos isso


conscientemente.


Em vez de você ser presa do seu subconsciente, que está


constantemente impelindo-o a abraçar um futuro previsível, você pode


assumir o controle do seu talento para projetar. Viva agora seu mais


elevado ideal. Veja um futuro baseado na crença de que o universo se


preocupa com você, que você está crescendo em direção a uma


consciência superior, que o amor, a verdade


124


e a auto-aceitação já são seus. Você não precisa atingir esses estados


a fim de vivê-los agora. Vivê-los agora é a maneira de alcançá-los.


VIVENDO COM A LIÇÃO


Como acabamos de ver, é fundamental que você destrua suas antigas


suposições sobre o tempo e o espaço, porque o que você considera


como o tempo e o espaço "reais" são na verdade ideias preconcebidas


herdadas da infância. Chamo isso de a teia do tempo — explicou


Merlim —, porque eu me vejo como uma aranha sentada no centro de


todos os eventos, que emanam de mim como fios da teia. Cada evento,


assim como cada fio, é necessário para a criação da teia, e no entanto


posso escolher seguir um de cada vez se o desejar.


O mago acha fácil deslocar-se do tempo local para o tempo


universal, deixar de ver as coisas como eventos isolados e percebê-las


como uma totalidade.


Como você pode aprender a ver o tempo como uma totalidade em


vez de encará-lo como uma linha reta? Na história, Merlim mostrou a


Artur como ele poderia se ver como o centro espacial do universo não


importa onde estivesse. O mesmo pode ser feito com relação ao tempo.


Considere o momento presente e depois recue no tempo até ontem, o


ano passado, uma década atrás. Continue a recuar até atingir seu


nascimento, depois acelere e veja os séculos passados, a pré-história,


o início do mundo. Leve a linha até o nascimento da terra, do sol, das


estrelas. Ao dissolver as estrelas e recuar até o universo primordial,


você chegará ao momento do big-bang. Sua imaginação agora


provavelmente será incapaz de criar imagens de um passado ainda


mais distante, mas mesmo assim você não precisa parar. Não existe


realmente um início do tempo, porque com relação a qualquer


momento que você considere um início, você pode fazer a pergunta: O


que aconteceu antes disso?


Analogamente, se você começar no momento presente e avançar


no tempo, poderá esgotar suas imagens depois de


125


imaginar o fim do mundo, o fim do sol, o fim das galáxias. Mas nunca


haverá um final do tempo, porque você sempre poderá perguntar: O


que vai acontecer depois disso? Em resumo, o tempo é uma


eternidade que se estende em ambas as direções, não importa o


momento que você escolha como seu início. Isso lhe diz duas coisas:


você é o centro da eternidade, e todos os pontos no tempo são na


verdade o mesmo. Isso precisa ser verdade se a eternidade


realmente for igual a partir de qualquer ponto no tempo. Foi dito que


o tempo é a maneira de a natureza evitar que experimentemos tudo


simultaneamente. Também poderíamos dizer que o tempo é a


maneira de a natureza deixar que satisfaçamos pouco apouco nossos


desejos, que é, afinal de contas, a maneira mais agradável.


De fato, cada momento é cada outro momento, e o que cria a


ilusão de passado, presente e futuro é apenas o foco da sua atenção.


Sua mente é a faca que corta o continuum do espaço e do tempo em


distintas fatias de experiência linear. Quando você conseguir utilizar


conscientemente esse poder, você será um mago.


— Escreva a palavra nowhere (em nenhum lugar) — ordenou Merlim


a Artur — e depois reescreva-a como now here (agora aqui). Você


tem em poucas palavras a verdade a respeito do tempo e do espaço.


Você teve origem num continuum que não tem um início no tempo ou


no espaço. Por ser infinito e eterno, você não vem de nenhum lugar.


Sua mente e seus sentidos localizaram a eternidade num ponto, que


é agora aqui. O relacionamento entre nenhum lugar e agora aqui é o


relacionamento entre o infinito e este momento no qual você está


vivendo


126


17a Lição


Os buscadores nunca se perdem, porque o espírito está sempre


acenando para eles.


Os buscadores recebem continuamente pistas do mundo do


espírito. As pessoas comuns chamam essas pistas


de coincidências.


Não existem coincidências para o mago. Cada evento existe para


expor outra camada da alma.


O espírito deseja conhecê-lo. Para aceitar esse convite, você


precisa deixar cair suas defesas.


Comece a procurar em seu coração. A gruta do


coração é o lar da verdade.


Merlim tinha o estranho hábito de parecer apreciar os pequenos


infortúnios de que era vítima o menino Artur. Se Artur chegava na


gruta todo machucado por ter caído de uma árvore, o mago


murmurava "Otimo" quase inaudivelmente. Certa vez, durante uma


tempestade de relâmpagos, um sicômoro velho e podre foi atingido


por um raio e quase caiu em cima de Artur.


— Excelente — resmungou Merlim.


Apesar de suavemente proferidos, esses comentários faziam com


que o menino se sentisse fortemente magoado. Ele prometeu a si


mesmo que iria ocultar do mestre esses pequenos acidentes, mas no


dia seguinte ele estava cortando lenha perto da gruta quando o


machado escorregou da sua mão. Numa fração de segundo a lâmina


atravessou o sapato de Artur, quase atingindo seus dedos do pé.


Quando ele gritou assustado, Merlim chegou rapidamente e fez uma


rápida avaliação do sapato.


127


—Está cada vez melhor — sussurrou Merlim suavemente. Artur


não conseguiu se conter.


—Como você pode ficar feliz por eu ter me machucado? — ele


gritou.


—Feliz? Do que você está falando? — Merlim parecia


genuinamente confuso.


—Você não percebe que eu noto, mas sempre que algo ruim me


acontece, você parece ficar satisfeito.


Merlim fez uma careta.


— Você não deveria escutar às escondidas conversas que


não são para você ouvir, especialmente quando são conversas


que tenho comigo mesmo.


Essa resposta fez com que o menino se sentisse extremamente


deprimido. Ele estava prestes a afastar-se rapidamente para escapar


ao coração de pedra de Merlim quando o mago segurou-o pelo


ombro.


—Você acha que me entende, mas isso não é verdade — disse ele.


Sua voz tornou-se mais suave. — Eu não estava festejando sua


desgraça. Eu estava comemorando o fato de você conseguir escapar.


Você nem pode imaginar como esses acidentes poderiam ter sido


piores.


—Você está querendo dizer que me salvou do perigo? — indagou


Artur desconcertado. Merlim sacudiu a cabeça.


—Você salvou a si mesmo, ou pelo menos está aprendendo a fazêlo.


Não existem acidentes, embora vocês, mortais, acreditem neles.


Existe apenas causa e efeito, e quando a causa está muito distante


no tempo, o efeito retorna depois de você ò haver esquecido. Mas


esteja certo de que tudo que lhe acontece de bom ou de mau é


resultado de alguma ação no passado.


Por ser jovem e confiar em seu mestre, Artur não opôs resistência


a essa nova ideia. Ele refletiu por um segundo.


—Você está dizendo que esses infortúnios são como um eco. Se


eu gritasse ontem e o eco esperasse até hoje para voltar, eu talvez o


tivesse esquecido.


—Exatamente.


—Então como estou aprendendo a evitar essas reações


retardadas, se já esqueci as ações que lhes deram origem? —


indagou o menino.


128


— Estando mais alerta. As ações voltam repetidamente para


nós vindas de diferentes direções. Existem tantos tipos de causa


e efeito atuando à nossa volta que precisamos ficar muito atentos


para poder percebê-los. Nada é aleatório no universo. Suas ações


passadas não estão voltando para puni-lo e sim para captar sua


atenção. É como se elas fossem pistas.


— Pistas? Para o quê?


Merlim sorriu.


— A pista perderia a finalidade se eu lhe contasse. É


suficiente que eu lhe diga que você não é quem pensa ser. Você


vive em múltiplas camadas de realidade. Uma delas chamare


mos de espírito. Imagine que você não se conhece como espírito,


mas que seu espírito o conhece. O que poderia ser mais natural


do que ele chamar por você? As pistas que caem do céu são men


sagens do espírito, mas você precisa estar alerta para captá-las.


—Mas tudo que aconteceu foi eu cortar meu sapato com um


machado e quase ser atingido por uma árvore que tombou. Foi apenas


uma coincidência eu estar debaixo daquela árvore para me proteger


da tempestade — protestou o menino.


—Isso é o que você diz, e os mortais gostam de dizê-lo o tempo


todo. Mas se você prestar atenção, perceberá que uma pista


disfarçada está presente em cada coincidência. Cabe a você interpretála.


Contudo, vou lhe dizer o seguinte. Se aquela árvore tivesse caído


em cima de você ou se você tivesse se machucado hoje, eu não teria


me lamentado. Eu teria dito: E difícil prestar atenção ao espírito.


Como você está conseguindo evitar cada vez melhor os acidentes, posso


afirmar em vez disso: Ele está aprendendo a ouvir.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


Dos mundos que o mago habita, os que estão mais afastados um do


outro são o da matéria e o do espírito. Esses são os dois pólos da nossa


existência. E natural oscilar de um pólo para o outro, abandonar a fé


em favor do ceticismo, até os opostos se unirem. No presente momento,


o impulso está distante do pólo material,


embora esse pólo ainda domine o pensamento de todo mundo. Quando


falamos de causa e efeito, queremos dizer que as coisas materiais


interagem — o Sol atrai a Terra fazendo com que gire ao redor dele, o


riscar de um fósforo cria uma chama, o raio atinge a árvore e ela cai.


O fato de os seres humanos habitarem essa arena de causa e efeito não


129


faz nenhuma diferença; as leis da natureza operam sem fazer caso de


nós.


O mago não aceita esse ponto de vista materialista. Para Merlim


cada ação da natureza, por mais insignificante, tinha um significado


humano. Isso se deve ao fato de ele olhar para o pólo oposto, o mundo do


espírito, para descobrir o lugar onde a causa e o efeito realmente


começam.


—Vocês, mortais, precisam ser muito mais vaidosos — disse ele a


Artur.


—Mais vaidosos? Você frequentemente diz que nada tão cheio de


vaidade jamais foi criado — retorquiu Artur.


—Ainda afirmo a mesma coisa, mas se vocês fossem ainda mais


vaidosos, talvez conseguissem perceber como são excepcionais. O


universo está organizado ao redor do seu destino e obedece aos seus


menores caprichos, e no entanto vocês saem por aí reclamando que


Deus e a natureza são totalmente indiferentes.


—Se Deus não é indiferente, então por que Ele não mostra Suas


intenções?


—Ah, você precisa tentar descobrir isso. Talvez o mundo todo tenha


sido criado como um jogo divino de esconde-esconde.


—Esse seria um jogo muito cruel — disse Artur, sacudindo a cabeça.


— Eu não simpatizaria com um pai amoroso que se recusasse a


mostrar o rosto para mim. O que significaria então esse suposto amor?


—Não esteja tão certo de que a decisão foi Dele — admoestou


Merlim. — Se Deus pareceu afastar-se, talvez tenha sido você que O


mandou embora.


Merlim está tratando aqui de uma questão de perspectiva. Se você vê


o mundo como material, então os eventos acontecem sem levar em


consideração a existência humana. Por outro lado, se você percebe que


o espírito é a força primária no universo, então a aparente indiferença


da natureza pode ser uma máscara ou encerrar uma mensagem oculta.


Os magos enxergam através


130


da máscara, descobrindo uma mensagem do espírito em cada evento,


mas as mensagens permanecem disfarçadas enquanto nossa


percepção está obscurecida.


E por isso que Merlim chamou as mensagens de pistas. Para haver


pistas, é preciso existir um mistério. Neste caso, o mistério é como o


mundo consegue ser ao mesmo tempo material e espiritual, como o


mesmo ato pode dar a impressão de ser o trabalho de um Deus


completamente indiferente ou o sinal da Sua presença amorosa.


— Não cultivo os paradoxos simplesmente porque isso me


agrada — declarou Merlim. — A perspectiva é tudo. Se alguém


corre em sua direção de braços abertos, você pode considerar


esse ato um ataque se você sentir que a pessoa é um inimigo, ou


um abraço se ela for um amigo. O bebé pode chutar e gritar


quando sua mãe esfrega seu rosto, mas do ponto de vista da mãe,


ela está praticando um ato de amor ao limpar o filho.


"Analogamente, a maioria dos eventos que vocês chamam de


desgraças ou até de castigo divino são na verdade oriundos da


compaixão, pois Deus sempre corrige os desequilíbrios da natureza


da maneira mais afável. São vocês que criam esses desequilíbrios, os


quais Ele precisa purificar a fim de salvá-los de desgraças mais


profundas."


Os buscadores são aqueles que tentam resolver o aparente


paradoxo da indiferença de Deus e do amor de Deus. Eles examinam as


crises que a maioria das pessoas evita. Porque é da dor, do fracasso ou


da desgraça que podemos extrair a verdade mais profunda. Vale a


pena dedicar toda uma vida à solução desse enigma.


— Não me interprete mal quando eu digo que o espírito deixa


pistas em toda parte — disse Merlim. — Não estou querendo


dizerque as pistas são óbvias ou que o mistério será facilmente


solucionado.


VIVENDO COM A LIÇÃO


Se o espírito derrama pistas em toda parte, como você pode detectálas?


Primeiro, você precisa estar disposto a enxergar


131


essas pistas. Elas se manifestam de diferentes formas: quando você


encontra alguém em quem acaba de pensar, ouve uma pessoa


pronunciar uma palavra que acaba de passar pela sua mente, vê seus


planos fracassarem e descobre nisso um benefício oculto, observa que


um número excessivamente grande de coincidências estão


acontecendo na sua vida para que possam ser verdadeiramente


coincidências. O espírito frequentemente começa a falar dessas


maneiras — elas poderiam ser chamadas de primeiros encontros.


Escapar por um triz, os felizes acidentes e as intuições que se tornam


realidade também se encaixam nessa categoria; em todos esses casos,


os padrões normais de causa e efeito são estendidos, algumas vezes


rompidos. Se você tentar aplicar o tipo de lógica que diz que A causa B,


que por sua vez causa C, a explicação não vai funcionar, porque essas


coincidências são altamente improváveis e excessivamente pessoais. A


verdadeira pergunta não é "Por que isso aconteceu?" e sim "Por que


isso aconteceu comigo?"


E claro que a autocomiseração pode gerar a mesma pergunta: Por


que isso aconteceu comigo? É preciso aprender a fazê-la de uma


maneira diferente, em função de uma curiosidade desprovida de


autocomiseração. O ego acha que uma coisa estranha ou má que


acontece não pode possivelmente ser ao mesmo tempo boa. No


entanto, qualquer ocorrência destina-se a ser útil. O espírito às vezes


precisa usar uma bondade superior, ensinando uma árdua lição, por


compaixão, para que coisas verdadeiramente desastrosas sejam


evitadas. E o que dizer do que é realmente desastroso? O mago encara


esses eventos como o melhor que o espírito poderia fazer, tendo em vista


a complexa rede de causa e efeito em que cada pessoa está


emaranhada.


No entanto, frequentemente, não existe um conteúdo espiritual


óbvio nas pistas da vida cotidiana. Elas são apenas o primeiro aceno,


um chamado para o despertar. Todo mundo nota os eventos fora do


comum, mas a não ser que os encare como pistas, você não


perguntará o que eles querem dizer. Você simplesmente os deixará


acontecer e seguirá adiante. Eles permanecerão inexpressivos.


É importante ter uma estrutura de entendimento, saber que outro


aspecto de si mesmo — o espírito — está brilhando através


132


18- Lição


A imortalidade pode ser vivida em meio à mortalidade.


O tempo e o intemporal não são opostos. Por abarcar tudo,


o intemporal não tem opostos.


No nível do ego, nos esforçamos para resolver nossos


problemas.


O espírito percebe que o problema é o esforço.


O mago tem consciência da batalha entre o ego e o espírito,


mas compreende que ambos são imortais


e não podem morrer.


Cada aspecto seu é imortal, até mesmo as partes que


você julga com mais severidade.


Quando Artur era um rei muito jovem, ele ouviu falar num louco que


vivia nas profundezas da floresta de Camelot.


— Não preste atenção a esses rumores infundados — reco


mendaram os mais sábios. — Trata-se apenas de um lunático que


se fechou numa cabana e logo morrerá.


Mas Artur sentiu algo despertar dentro de si. Ele convocou seus


cavaleiros e partiu em busca do louco. Horas depois, o grupo real


chegou a uma clareira não muito distante da estrada principal que


atravessa a floresta. No meio da clareira erguia-se uma cabana feita


de taipa, tão mal construída que galhos nus sobressaíam em toda


parte. Artur apeou e caminhou em direção a ela. A cabana não tinha


porta, apenas uma pequena janela para deixar o ar entrar.


— Quem está aí? — perguntou ele.


133


— Alguém que não é deste mundo — respondeu uma voz


fraca.


Artur ficou parado um momento, pensando.


—Gostaria de conversar com você, seja lá quem você for. Saia por


ordem do rei.


—Não tenho nenhum rei. Deixe-me em paz — retrucou a voz.


—Mas você não tem nem água nem comida. Você precisa de


ajuda — disse Artur.


—Não preciso da sua ajuda — retorquiu a voz, recusando-se


depois a pronunciar qualquer outra palavra. Os cortesãos queriam


que Artur partisse, constrangidos por ele estar interessado num


lunático, mas em vez de acatar a sugestão deles, o rei ordenou que


qualquer pessoa que tivesse informações sobre o homem fosse levada


à presença dele. Vários homens partiram a cavalo pela floresta,


regressando com uma pobre mulher maltrapilha.


—Esta é a esposa — disse um dos homens soltando a mulher, que


estava claramente confusa e assustada.


—Por favor fique calma. Só quero ajudar seu marido — disse


Artur.


A mulher ainda tremia, mas disse:


—Ele não me chama mais de esposa. Meu Will jurou ficar isolado


dentro dessa cabana até morrer ou receber um sinal de Deus.


—Por quê? — perguntou Artur.


—Por estar sofrendo, meu senhor. Tínhamos um filho que ele


amava mais do que tudo no mundo. Meu Will é lenhador, e um dia


ele entrou na floresta com nosso menino, que tinha seis anos. Will


estava absorto em seu trabalho, e quando não estava olhando, o


garoto escapuliu. Nós chamamos e procuramos até ficarmos


desesperados. No dia seguinte, seu pequeno corpo apareceu


flutuando correnteza abaixo. Nosso filho morreu afogado, e meu


marido não consegue se perdoar por isso.


A história deixou Artur muito triste.


—A dor não é motivo para alguém se matar — disse ele.


—O mesmo digo eu — declarou a pobre mulher. — Mas ele jurou


que enquanto Deus em pessoa não vier lhe dizer por que nosso filho


foi levado embora, ele amaldiçoará este mundo e não terá nada a ver


com ele. "Observei toda minha vida o sofrimento


134


que Deus permite", diz ele, "e não terei mais nada a ver com ele. Se


Ele não aparecer para Se explicar, não faz diferença, porque, de


qualquer modo, estou praticamente morto."


Apesar de a hi stória da mulher ser extremamente comovente,


Artur não pôde deixar de ficar intrigado com a curiosa postura desse


homem diante de Deus.


—Essa história é verdadeira? — perguntou ele ao homem que


estava dentro da cabana. Ouviu-se um grunhido baixo, mas Will, o


lenhador, nada mais teve a dizer.


—Vou passar a noite aqui e conversar com esse pobre coitado —


anunciou Artur, mandando para casa o resto do grupo real. Os


cortesãos mostraram-se relutantes em deixar seu rei sozinho na


floresta, mas ele acabou convencendo-os a se afastarem e


acamparem a meia légua dali. A noite caiu rapidamente, e não havia


lua. Artur sentou-se ao lado da cabana, embrulhado em seu manto,


para proteger-se da umidade.


—De certa maneira sinto-me mais próximo de você do que de


qualquer outra pessoa no meu reino — começou ele. — Sou novo no


governo, e sinto intensamente o sofrimento que me cerca. Existem


pobres, doentes e aleijados em toda parte, mas os problemas deles


também são meus, enquanto eu for o rei. Passei muitas noites em


claro me perguntando como poderia resolver os males deste mundo.


Parece que eu poderia passar a vida inteira e gastar toda minha


fortuna para combater a desgraça que vejo à minha volta, e, no


entanto, como o trigo na primavera, as sementes do infortúnio


germinariam duas vezes mais abundantes na estação seguinte.


—Estou esperando Deus — interrompeu de repente a voz dentro


da cabana. — Não preciso ouvir seus discursos. Deixe que Ele


responda por Si mesmo.


—Bastante justo — replicou Artur. — Mas é da minha conta o fato


de eu me ver em você. Tive um mestre chamado Merlim, e ele me


disse que existe apenas uma única solução para o mal, que é não


lutar contra ele e sim compreender que o mal não existe.


—Palavras tolas — disse a voz. — Procure outro mestre.


—Você precisa escutar mais — insistiu Artur. — Merlim disse que


o bem e o mal entram constantemente em conflito;


135


ambos nasceram há milhares de vidas. E enquanto houver luz e


sombra, o bem e o mal subsistirão.


—Nesse caso, você deveria se desesperar e se fechar comigo


nesta cabana, pois você viu os verdadeiros sentimentos de Deus com


relação a este mundo. Ele quer que soframos — declarou


amargamente a voz.


—Também me senti como você durante um longo tempo, mas


então Merlim me mostrou que existem dois caminhos na vida. Num


deles a pessoa tenta conquistar a recompensa do céu, e se viver


virtuosamente, ela atingirá sua meta. Mas mesmo no paraíso existem


sementes de insatisfação, e finalmente, por estar entediada, ou por


ter medo de não merecer o céu, a pessoa começa a avançar na outra


direção. Ela afunda e acaba dando consigo no inferno. O inferno


precisa existir se o céu existe, mas ele também é temporário, pois


com o tempo a pessoa se cansará de seus tormentos e começará a


subir de novo. Assim, o primeiro caminho que a alma pode escolher é


um ciclo constante, que vai do céu para o inferno e de volta para o


céu.


—Se o que você afirma é verdade, estamos sendo enganados além


de amaldiçoados — disse a voz com uma amargura ainda mais


profunda. — Quem pode amar um pai que nos apresenta o paraíso


apenas para nos mandar de volta para o inferno?


—Você está certo — disse Artur. — Meu mestre salientou


exatamente isso. Mas depois ele me falou sobre um segundo


caminho. A chave para esse caminho é a percepção de que o céu e o


inferno são criados por nós, que somos nós que mantemos o ciclo em


andamento. Como acreditamos na dualidade, é preciso haver o mal


em oposição ao bem, assim como a luz precisa ter a sombra, caso


contrário ela não seria luz. Depois de entender isso, podemos fazer


uma escolha diferente.


—Que é?


— Renunciar à dualidade, recusar tanto o céu quanto o


inferno. Além da ação dos opostos, disse Merlim, jaz uma esfera


intemporal de pura luz, puro Ser, puro amor. "Toda essa questão


de bem e mal", disse ele. "Pare de correr atrás da sua cauda e


afaste-se dela." Não posso falar por você, meu amigo, mas para


mim essa é a mensagem divina. Se Deus deve aparecer para nós,


é através do nosso entendimento do que é possível. Nossa


136


vontade é livre, e podemos nos prender eternamente ao ciclo de


prazer e dor. Mas somos igualmente livres para partir e não sofrer


nunca mais.


Artur parou, sentindo de repente como era estranho ele estar


conversando daquela maneira com um pobre infeliz que nunca vira


antes.


— Sinto muito por ter me intrometido na sua dor — disse ele


finalmente. — Vou me retirar agora.


O homem na cabana não fez nenhum comentário.


Artur se levantou, apertou mais o manto de encontro ao corpo, e


caminhou em direção à floresta. Tinha andado cerca de trinta metros


quando sentiu atrás de si uma incandescência e o crepitar de


chamas. Temendo que o louco tivesse incendiado a cabana, ele se


voltou e começou a correr de volta, mas parou no meio do caminho.


A cabana se transformara numa bola de luz branca, dela saindo


um anjo, que disse:


— Deus me disse que vocês, mortais, conheciam um segredo, e


como sempre Ele estava certo. Você sabe que Deus não está sim


plesmente no céu, e sim muito além, na esfera do espírito puro.


E com essas palavras, o anjo desapareceu.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


A essência desta lição, ou seja, que existem dois caminhos na vida,


está explicada nela mesma. O primeiro caminho é a aceitação de que


a dualidade é real, de que o bem e o mal com que deparamos


diariamente são simplesmente realidade, e precisamos fazer todo o


possível para lutar contra eles. O segundo caminho é perceber a


dualidade como uma escolha nossa. Embora tudo na criação pareça


ter seu oposto, uma coisa não o tem: a totalidade. A totalidade do


espírito não tem oposto porque ela abarca tudo que existe. Para


escolher o segundo caminho, você precisa estar disposto a desistir


de lutar contra o mal. Este é o caminho do mago.


137


Will (arbítrio) por uma razão — é nosso^-ee will (livre-arbítrio) que


nos permite escapar do ciclo do bem e do mal. Esta é a promessa


contida nesta lição. O caminho do mago é compassivo, porque


resolve o problema do sofrimento à medida que a luz do espírito se


aproxima.


138


19- Lição


Os magos jamais condenam o desejo. Foi seguindo seus desejos


que eles se tornaram magos.


Todo desejo é criado por algum desejo passado. A cadeia do


desejo nunca acaba. Ela é apropria vida.


Não considere nenhum desejo inútil ou errado — um dia cada um


deles será realizado.


Os desejos são sementes que esperam o momento propício


para germinar.


A partir de uma única semente de desejo,


florestas inteiras se desenvolvem.


Acalente cada desejo do seu coração, por mais trivial


que ele possa parecer.


Um dia esses desejos triviais o conduzirão a Deus.


Artur arrancou a espada da pedra num milagroso Dia de Natal. Da


enorme multidão que presenciou o feito, ninguém ficou mais


surpreso do que o próprio jovem Artur. Onde está Merlim? pensou


ele, certo de que o mago realizara a façanha por meio da magia. Mas


Merlim não apareceu.


Tarde da noite, muito tempo depois de todos terem ido dormir,


Artur ainda estava acordado, perguntando a si mesmo se seu destino


era realmente ser rei.


— Preciso de você, Mestre — suplicou ele.


De repente, ele viu uma luz debaixo da porta. Artur deu um pulo e


abriu a porta, mas não era o mago. Era Kay, seu irmão adotivo.


139


—Como você está? — perguntou Kay. Artur não sabia o que dizer,


mas quando se voltou para dentro do quarto, sua respiração ficou


mais forte.


—Levante mais a vela — disse ele. Kay fez o que ele pediu e a luz


caiu sobre três objetos que haviam surgido na cama de Artur — uma


boneca de palha, uma atiradeira quebrada e um espelho rachado.


—Você está vendo estas coisas? — perguntou Artur com uma voz


estranha. Kay mostrou-se confuso.


—Eu as vejo, mas elas não significam nada para mim — disse ele.


—Pedi a aj uda de Merlim, e agora estes objetos apareceram. Este


foi meu primeiro brinquedo — disse Artur, pegando a boneca. — Eu


devia ter dois anos quando Merlim a fez para mim. Eu mesmo fiz esta


atiradeira com pele de veado e vime quando tinha oito anos. Aos


doze eu encontrei na floresta este espelho rachado. Você sabe o que


eles têm em comum? — Kay sacudiu negativamente a cabeça. — Eles


foram as coisas mais importantes que eu já possuí, cada um na sua


época, e agora olhe para eles.


—Lixo inútil — resmungou Kay.


—E no entanto estou felicíssimo por revê-los, pois agora tenho a


certeza de que Merlim me guiou o tempo todo. Veja, Kay, aos dois


anos eu só queria brinquedos; aos oito eu só queria caçar pardais e


esquilos; e aos doze eu só queria olhar no espelho para ver se as


meninas me achariam feio ou bonito. Deixei todas essas coisas para


trás e, no entanto, cada uma foi um degrau que me trouxe a este


momento. Um dia porei de lado a coroa, embora hoje ela seja meu


único desejo e meu destino.


Kay era uma alma simples e resoluta que venerava a monarquia.


Ele estava chocado.


—Por que alguém jogaria fora a coroa? — perguntou ele


desconcertado.


—Porque chegará o dia em que ela se tornará trivial como uma


boneca, inútil como uma atiradeira quebrada e fútil como um


espelho. Acho que é isso que Merlim queria que eu percebesse.


140


COMPREENDENDO A LIÇÃO


O desejo ocupa um lugar peculiar no nosso coração, porque embora


cada um de nós passe pela vida desejando uma coisa após a outra,


nossos antigos desejos são jogados fora como se nunca tivessem tido


importância. Os desejos nunca acabam, não importa quantos se


tornem realidade, e, ao mesmo tempo, nenhum desejo dura tempo


bastante que nos permita deixar o desejo totalmente para trás.


— Você é apenas humano, e faz parte da sua natureza querer


cada vez mais — disse Merlim. — É o desejo que o conduz


através da vida até o momento em que você passa a desejar uma


vida superior. Não se envergonhe, portanto, de querer tanto, mas


não se engane pensando que o que você quer hoje será suficiente


amanhã.


É óbvio que os desejos nunca acabam, e no entanto isso nunca


impediu as pessoas, amiúde pessoas extremamente espirituais, de


tentar renunciar ao desejo. No ocidente, os cristãos condenam a


fraqueza da carne por causa de seus desejos inferiores; no oriente, o


budismo culpa o desejo por estar na base do ciclo interminável de


prazer e dor. Mas aos olhos do mago, não existe motivo para que o


desejo seja condenado.


—Quando você sair da floresta e entrar no mundo — disse Merlim


ao menino Artur —, você vai alcançar um prémio que todos os


homens desejam. Isso fará com que milhares de pessoas se voltem


contra você e o conduzirá a anos de luta pela conquista da sua coroa.


—Nesse caso, não vou ficar com a coroa — disse Artur, bastante


perturbado.


—Não, não é esse o caminho — replicou Merlim. — O desejo lança


os mortais em todos os tipos de confusão, mas faz parte do plano de


Deus que vocês tenham desejos.


—Mas o desejo cega as pessoas e as torna egoístas. Ele instiga a


violência, como você mesmo profetizou. Ele cria a ignorância e faz


com que as pessoas lutem umas contra as outras.


—Tudo isso são usos do desejo — salientou Merlim. — Existe um


mistério aqui, como sempre, que somente o buscador


141


solucionará. O desejo é bom, mau ou nenhuma das duas coisas? Vou


lhe dar uma pista. Para descobrir a verdadeira natureza do desejo,


você precisa começar sem julgar nada. Honre cada desejo que você


tiver. Acalente os desejos do seu coração. Nãct se esforce para


conseguir o que você quer; tenha confiançajjg que o espírito superior


colocou o desejo dentro de você, e deixe a cargo do espírito fazer


com que seus desejos se tornem realidade/Você poderá descobrir


que o mal existentg no desejo não é realmente o desejo em si, e sim


o esforço que o ser humano faz para alcançá-lo.


O mago não se esforça para conseguir o que quer, para agarrar,


conquistar ou possuir, porque ele vê o desejo num padrão mais


amplo estabelecido pelo espírito.


—Quando visto pelo que realmente é, o desejo expressa sua


necessidade suprema de se reunir à perfeição. Desde o momento em


que você nasceu, nunca houve a esperança de que você se sentisse


realizado através de conquistas, posses ou status. Nada externo


jamais iria funcionar.


—Então por que Deus criou tantos objetos de desejo? — indagou


Artur.


—Por que não? O que há de errado em querer mais deste mundo


se vale a pena querer tudo? — replicou Merlim. — Considere o


desejo como a disposição de receber o que Deus quer dar. Este


mundo é uma dádiva; o Criador não foi coagido a criá-lo. A


capacidade de Deus de dar só é limitada pela capacidade que você


tem de receber.


—Talvez isso seja verdade, mas por que Deus simplesmente não


providenciou um caminho que levasse diretamente a Ele? —


perguntou Artur.


—Mas Ele fez isso. O desejo é o caminho direto, pois não existe


um caminho mais rápido para Deus do que seus desejos e


necessidades. Por que Deus lhe daria algo antes de você desejá-lo?


Quando você examina seus desejos e emite um julgamento negativo


com relação a eles, você alguma vezjá se perguntou por que faz


isso? Julgar o desejo significa criticar a origem dele, que é você


mesmo; temer o desejo significa que você tem medo de si mesmo. O


problema não diz respeito ao desejo e sim ao que


142


acontece quando seus desejos são bloqueados ou frustrados. É aí que


começam a luta e as críticas.


"Se você pudesse descobrir uma maneira de satisfazer todos os


seus desejos, que é o que Deus sempre teve em mente para você,


perceberia que sem o desejo você não poderia crescer. Imagine-se


como uma criança que não quisesse ir além de brincar com os


brinquedos; se novos desejos não surgissem constantemente dentro


de você, você ficaria preso a uma perpétua imaturidade."


VIVENDO COM A LIÇÃO


O discurso de Merlim sobre o desejo mexe conosco, porque vivemos


numa sociedade na qual as pessoas são capazes de ter um número


cada vez maior de bens materiais. O resultado final, porém, não foi


nos tornar perfeitamente felizes. Com frequência encontramos um


vazio espiritual atrás da abundância. Isso não significa que desejar


ter uma casa, um carro e uma conta bancária é errado ou


vergonhoso. O vazio espiritual não foi criado por desejarmos coisas


materiais. Ele foi criado ao nos voltarmos para as coisas externas


esperando que elas fizessem o que não são capazes de fazer. As


coisas externas não podem satisfazer as necessidades espirituais. O


ditado que diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma


agulha do que um rico entrar no reino dos céus não condena a


riqueza. Ele simplesmente salienta que o dinheiro não tem valor


espiritual. O dinheiro não é a porta de entrada para o paraíso.


Os magos sempre ensinaram que o desejo precisa ser visto como


um caminho. No início, os desejos giram em torno de coisas como o


prazer, a sobrevivência ou o poder. Mas com o tempo, o caminho do


desejo nos leva além dessas gratificações. Eles não são desejos


inferiores e sim desejos iniciais. Assim como numa certa idade a


criança deixa de se interessar pelos brinquedos, o desejo de


conseguir cada vez mais acabará por conduzir a pessoa a uma fase


natural na qual o desejo de alcançar Deus assume uma suprema


importância.


143


— Não se preocupe em se tornar um buscador de Deus — disse


Merlim. — Você tem sido um buscador desde que nasceu, só que no


início o Deus que você buscava eram os brinquedos, depois a


aprovação, e depois o sexo, o dinheiro ou o poder.


"Você venerou todos eles e os desejou com grande paixão. Regozijese


neles quando forem o desejo do momento, mas esteja preparado


para quando eles desaparecerem. O grande problema que você


enfrentará não será o desejo, e sim o apego, a vontade de agarrar-se a


alguma coisa quando o fluxo da vida quer que você desista dela."


O exercício desta lição é uma pura experiência de pensamento.


Sente-se e imagine aquilo que você deseja mais apaixonadamente neste


momento. Talvez seja um carro, uma vida de riquezas ou algum tipo de


sucesso num relacionamento. Procure escolher algo que você ainda está


querendo alcançar para poder sentir como a perseguição do desejo é


realmente poderosa.


Recue agora a um desejo que você teve no passado, um desejo que j


á tenha se tornado realidade. Pode ter sido seu último carro novo, um


projeto bem-sucedido ou uma grande quantidade de dinheiro.


Comparado com seu desejo atual, esse desejo antigo parecerá diferente.


Você não sentirá com tanta intensidade a sede de perseguir o antigo


desejo porque você já provou sua realização. Nesse contraste, você


está vivenciando a maneira como a vida o empurra para a frente. O


desejo de ontem teve seu impulso particular de realização, que agora se


deslocou para o desejo de hoje. Esse movimento para a frente não é


aleatório. Ele o conduziu dos desejos do bebé aos desejos da criança,


aos desejos do adolescente e, finalmente, aos desejos do adulto.


O caminho do desejo é incrivelmente poderoso e nunca termina;


somente os objetos do desejo mudam e se modificam. O mago percebe


que, em seu nível mais profundo, nossos desejos contêm o impulso


evolucionário da própria vida. Querer viver não é um mero instinto de


sobrevivência, é um caminho que desabrocha. A vida não gosta de ser


bloqueada, e é por isso que Merlim disse que os problemas com


relação ao desejo só surgem quando um obstáculo é colocado em seu


caminho. Um bebé saudável aprende que qualquer coisa que ele queira


é boa quando sua mãe fica contente em satisfazer suas necessidades.


144


Se um modelo positivo de desejo for estabelecido desde cedo, o


bebé crescerá com desejos naturais que se adequarão às suas


verdadeiras necessidades. Uma pessoa psicologicamente saudável,


na verdade, pode ser definida como alguém cujos desejos realmente


produzem felicidade. Mas se a noção oposta for gravada na memória


do bebé, ou seja, que seus desejos são vergonhosos e apenas


relutantemente satisfeitos, o desejo não se desenvolverá de uma


maneira saudável. Em anos posteriores, o adulto continuará a tentar


se realizar nas coisas externas, a precisar cada vez mais de poder,


dinheiro ou sexo para preencher um vazio que foi criado no seu


senso do eu quando bebé; o próprio senso de ser da pessoa é julgado


como errado.


Em casos extremos, o desejo se torna tão distorcido que sua


necessidade se transforma na necessidade de matar, roubar,


cometer violência, e assim por diante. Esses desejos podem causar


um dano incalculável, tanto sob o aspecto pessoal quanto social.


Entretanto, ninguém é capaz de dizer, ao ver um assassino ou um


ladrão, em que ponto seus valores se extraviaram. Para o mago,


todos os desejos começam no mesmo lugar, naquele ponto em que a


vida simplesmente quer se expressar; é a obstrução ou condenação


do desejo que cria o problema. As expressões pouco saudáveis de


desejo simplesmente refletem a doença numa psique que precisa


desesperadamente conhecer a si mesma, como todos nós


precisamos, mas que falhou, pelo menos por enquanto.


Por conseguinte, é de vital importância que você se harmonize


com a natureza do seu desejo, que compreenda que no plano divino


todos seus desejos estão destinados a se tornarem realidade. Deus


não o está impedindo de ter uma coisa ou tudo que você queira. E


você que bem no fundo acredita não merecer uma coisa ou tudo.


Esse autojulgamento cria bloqueios no fluxo natural da vida, mas tão


logo esses impedimentos são removidos, o caminho do desejo


transforma-se em alegria, por ser o trajeto mais curto e natural em


direção a Deus. Nenhum desejo é trivial, porque cada desejo encerra


um significado espiritual. Cada um deles é um pequeno passo em


direção ao dia em que você desejará a suprema realização, que é


conhecer sua natureza divina.


145


20- Lição


O maior bem que você pode fazer ao mundo é tornar-se um


mago.


Era o último dia que iam passar juntos. Artur postou-se à beira da


estrada que o levaria para além da floresta. Olhando por cima do


ombro, procurou o atalho de Merlim, mas eleja não estava mais ali.


Um denso trecho de floresta crescera da noite para o dia, engolindo


o atalho e com ele a clareira que dava para a gruta de cristal. Artur


sentiu uma dor aguda, sabendo que essa perda seria sentida por


todos os mortais, não apenas por ele.


— Eu não vou voltar, não é mesmo? — perguntou ele.


Merlim, que estava a seu lado, sacudiu a cabeça.


— Não há necessidade. Seu trabalho comigo está terminado.


Duvido que algum dia meu trabalho com você esteja terminado,


pensou Artur. Parecia que após todos esses anos de treinamento, ele


tinha mais a perguntar a seu mestre do que no dia em que haviam


começado. Lendo a mente de seu discípulo, o mago disse:


— Eu queria lhe dar um presente de despedida, e não pude


pensar em nada melhor do que isto.


Ele apontou para a estrada que se estendia aos pés deles, que


também surgira da noite para o dia.


—As estradas são o sinal do mago. Você já sabia disso?


—Não.


—Lembre-se então do que eu digo. O mago é aquele que ensina


indo embora, e quando você também conseguir partir, você será um


mago. Embora você possa imaginar que possui uma parte da terra,


na verdade você só caminha sobre ela. Em espírito, você é apoeira


da estrada, a inquietude do vento. Vocês,


146


mortais, constroem casas para se proteger do mundo. Para o mago, o


lar é o momento presente, e os momentos estão sempre se


deslocando...


—Pela estrada do tempo — disse Artur, terminando a frase para


ele. Ele conhecia de cor grande parte do que Merlim tinha para


ensinar.


—É verdade — concordou Merlim. Ambos ficaram em silêncio. O


rapaz espiou com o canto dos olhos para ver se Merlim estava triste,


ou pelo menos confuso, com a separação. Ele não estava nem uma


coisa nem outra.


—Vejo que você realmente não acredita em mim — disse Merlim.


— Mas deixar que você vá embora é de fato o melhor presente que eu


posso lhe dar.


E com essas palavras os pés relutantes do rapaz começaram a se


mover. Havia uma curva na estrada a cem metros dali, e cada passo que


Artur dava adiante parecia modificá-lo um pouco. Os anos que passara


com Merlim começaram a se dissolver num sonho, enquanto sua


curiosidade com relação ao mundo aumentava.


Quando atingiu a curva na estrada, eleja não podia esperar para


ver o que havia em volta. Toda a ação e o desejo de um mundo que


nunca conhecera tornaram-se algo do qual ele tinha que participar;


seus pés agora estavam voando, ansiosos para sair da floresta. A


própria imagem de Merlim começou a desaparecer da sua mente, até


que restou apenas uma voz que dizia: "Eu o conduzi aos locais


secretos da sua alma, e agora você precisa redescobri-los, só que


desta vez sozinho." Num instante, essa voz também desapareceu. O


rapaz transpôs a curva, chutou um monte de poeira, e sorriu. De


repente ele soube que sempre que visse uma estrada se lembraria de


Merlim.


COMPREENDENDO A LIÇÃO


Caminhar por uma estrada é um sinal de desapego, e os magos


ensinam que no desapego repousa a verdadeira liberdade. À


semelhança do mago, a pessoa livre vive no espírito, e é capaz


147


de fazer um bem muito maior do que aquele que pode ser feito fora do


espírito. Este ponto de vista ainda não é aceitável para a sociedade,


porque você, eu e todos que conhecemos fomos condicionados a


acreditar que as coisas funcionam de outra maneira. Nós nos


apegamos a tudo e acreditamos que é o apego que faz nossa vida


funcionar.


Nosso senso de apego começa com nosso relacionamento com a


terra. Os mortais, dizem os magos, têm a ilusão de que são donos do


mundo ou controlam seu destino. Na visão dos magos, o mundo tem um


espírito que supervisiona nosso bem-estar; vivemos abrigados no


espírito dele e nos é permitido moldar nosso destino. Mas é impossível


possuir ou controlar o espírito.


—Você quer ter o mundo todo, não é verdade? — perguntou Merlim a


Artur.


—Não, creio que não — retrucou o menino.


—Oh, você quer, acredite-me. Vocês, mortais, são como uma


centelha que um dia vai incendiar um campo inteiro. A centelha parece


minúscula, mas ela se propaga a perder de vista.


—Você está querendo dizer que vamos destruir o mundo? —


indagou Artur.


—Depende. O espírito não pode ser destruído, e se você vier a se ver


como espírito, você se unirá ao espírito desta terra. A alternativa é não


tomar conhecimento do espírito, e se você fizer essa opção, não terá


respeito pela terra. A dor dela parecerá remota para você.


Merlim apontou para uma grande pedra.


—Dê um chute nela — disse ele. Artur fez o que o mestre mandou.


—Ai — gritou Artur, recuando.


—Curioso — comentou Merlim. — A pedra levou um chute, mas foi


você que gritou.


—O que há de curioso nisso? — resmungou Artur, desconfiando de


que o mago fizera com que ele chutasse a pedra com mais força do


que pretendera.


—Esta foi uma lição sobre o espírito. Quando você chutou a pedra,


você feriu a si mesmo. A pedra não protestou, porque a terra nunca


reclama. Ela confia no seu espírito. Essa confiança no espírito é o que a


terra tem para ensinar a vocês, mortais. Mas


148


se você ficar com raiva por causa do seu ferimento, que a pedra


meramente devolveu a você, você se sentirá tentado a desprezar o


espírito. Você terá vontade de esmagar a pedra, destruí-la, e usá-la de


alguma maneira, tudo porque aterra é suficientemente dócil para não


gritar quando você dá um chute nela.


Faz parte da natureza do espírito não protestar. Você não pode


realmente fazer mal ao espírito, e embora os seres humanos tenham


infligido um terrível dano à terra, o resultado final é sempre fazermos


mal a nós mesmos. Não respeitamos nosso próprio espírito. Olhamos


para nós mesmos com medo e raiva.


— Vocês perderam a fé na fé — disse Merlim. — Vocês não


mais parecem confiar na confiança.


Isso quer dizer que as qualidades do espírito, que incluem o amor, a


fé e a confiança, precisam ser conhecidas e experimentadas antes de


poderem ser benéficas.


Quase todas as pessoas lutam contra sua vontade; elas recorrem


ao medo e à raiva por sentirem que esses caminhos lhes foram


impostos. A disposição de viver em paz depende de não nos deixarmos


dirigir por essas energias negativas, e isso só pode acontecer se


adorarmos o caminho do mago.


— Se você quiser fazer bem ao mundo, seja completamente


altruísta e torne-se um mago — disse Merlim. — Se você quiser


fazer bem a si mesmo, seja completamente egoísta mas mesmo


assim torne-se um mago.


Isso pode parecer um paradoxo, mas em última análise, todo espírito


é espírito. Você caminha sobre a terra como um indivíduo, mas


também caminha sobre ela como parte da terra. Por conseguinte, à


medida que você recupera a si mesmo, você recupera o mundo.


VIVENDO COM A LIÇÃO


Os magos não nos desestimulam a fazer o bem. Desapego não é


sinónimo de indiferença.


— Quando você deparar com o sofrimento, procure aliviá-lo — disse


Merlim —, mas certifique-se de que, ao ir embora, o sofrimento não


estará grudado em você.


149


Este conselho está diretamente dirigido à essência da compaixão. A


raiz da palavra compaixão é "sofrer com", e é assim que quase todos


nós a interpretamos. Presumimos que uma pessoa compassiva


incorporou o sofrimento de outra, mas se isso fosse verdade, a


compaixão dobraria o sofrimento do mundo em vez de aliviá-lo.


A verdadeira compaixão não é negativa. A pessoa é capaz de sentir


a dor de outra mas permanece confiante no espírito. A terra se


comporta assim conosco. Embora o drama das questões humanas seja


representado na palco da terra, e derramemos nosso sangue em seus


campos e construamos a riqueza em suas praias, ela permanece


desapegada. As florestas, os campos, as praias e as montanhas não


aparecem e desaparecem por nossa causa.


Se você não aceitar que a terra tem um espírito, esse desapego


transforma-se em indiferença. Em nome da indiferença, a terra está


sendo saqueada. Só é possível sentir compaixão pela terra quando


unimos nosso espírito ao dela.


O que é preciso para nos unirmos ao espírito da terra? Este livro é


uma tentativa de oferecer uma resposta. O caminho do mago começou


no mito, na profunda memória da humanidade, quando ainda éramos


embalados nas florestas primordiais. Merlim representou então um


espírito da natureza de grande magia e poder. Hoje em dia não


existem espíritos da natureza porque os mortais decidiram se separar


da natureza. O antigo impulso de viver dentro da natureza cedeu espaço


ao seu oposto, o impulso de conquistá-la.


Esse impulso se esgotou quase ao ponto do desastre. O retorno à


natureza está sendo desesperadamente buscado em toda parte, talvez


no último instante. Os magos nunca se separaram da natureza, de


modo que eles não têm ao que retornar. Eles esperam para nos acolher


com alegria quando retornarmos ao espírito. Seus segredos revelam


que, se você quiser se reunir à natureza, o caminho é recuperar sua


própria natureza, que é a consciência pura. Não existe nada "lá fora"


exceto um espelho do que existe "aqui dentro". Se você quiser ir


novamente para casa, compreenda que seu lar é o momento presente.


150


Através de um processo bastante semelhante, a mente consciente


não pode compreender como o universo faz os desejos se tornarem


realidade. E exatamente como a pessoa que se esforça para recordar


um nome mas não consegue nada, as pessoas se debatem


violentamente para satisfazer seus desejos, sem nunca perceber que


o esforço é o problema, não a solução. Esses pontos já foram


abordados neste livro, mas eu gostaria de reapresentá-los num nível


mais profundo. Neste exato momento, você é um mago. Você é


perfeito em espírito; você nunca se separou de Deus ou da natureza.


Tudo que aconteceu é que, na sua luta para não sentir dor, você


começou a bloquear o momento presente. A memória e o desejo


encobrem o espírito. Eles o fazem porque há muito tempo você


começou a temer pela sua segurança aqui na terra. A insegurança é


o motivo pelo qual atacamos a terra, porque se tivéssemos confiança


que seríamos alimentados e defendidos, nenhum de nós se mostraria


tão histérico com relação à sobrevivência.


— Confie na confiança, tenha fé na fé — disse Merlim. — Essa é a


única solução quando você perde a confiança e a fé.


Na nossa essência, cada um de nós é apenas confiança. O ser e o


amor também são partes inatas de nós mesmos, mas é a confiança


que nos permite respirar com facilidade, aceitar o espírito da terra


como sendo nosso. E a técnica que nos permite lembrar disso é tão


simples quanto a técnica que usamos para nos lembrar de qualquer


outra coisa. Permita-se parar de acreditar que a resposta está no


esforço. Aprecie em silêncio a vida que vem ao seu encontro a cada


momento. Uma tremenda energia que está oculta no presente


acompanha essa silenciosa aceitação, e essa energia encerra


abundância, paz, inteligência e criatividade. Essas são as dádivas do


silêncio envoltas no espírito da terra.


151


T E R C E I R A P A R T E


AS SETE ETAPAS DA ALQUIMIA


152


Na época do rei Artur, nenhuma aventura despertava maior paixão do


que a procura do Santo Graal. Cada um dos cavaleiros de Artur sonhava


em conquistar esse impalpável troféu, que traria a proteção e a bênção


de Deus para seu rei. Era comum verse cavaleiros cumprindo penitência


para receber uma visão do Graal, e os pintores competiam uns com os


outros para tornar cada quadro da Ultima Ceia mais esplêndido do que


o anterior.


— É praticamente impossível convencer os mortais de que


as buscas nunca são de coisas externas, por mais sagradas que


sejam — dissera Merlim certa vez a Artur. Ele se lembrava


dessas palavras sempre que a febre do Graal chegava ao auge, o


que normalmente acontecia nos longos e sombrios meses do


inverno, quando os cavaleiros ficavam entediados e inquietos.


Os mais jovens, em particular, estavam eternamente querendo


partir em direção à Terra Santa, ao castelo de Monsalvat ou a


qualquer lugar, mítico ou real, onde o Graal pudesse estar


guardado.


O rei se mantinha à parte desse fervor.


—Se você quiser ir... — dizia ele, a voz diminuindo de intensidade.


—O quê? Você não acredita no Graal? — perguntou impetuosamente


Sir Kay. Por ter sido certa vez considerado irmão do rei, antes de Artur


ter arrancado a espada da pedra, Kay tomava certas liberdades que


ninguém mais ousava tomar.


—Acreditar? Suponho que você teria que dizer que acredito —


replicou calmamente Artur —, mas não da maneira como você pensa, e


tampouco da maneira que você acredita.


153


Essa resposta foi por demais sutil para Kay, que mordeu o lábio


para não fazer uma pergunta ainda mais insolente.


—O Graal é real, meu senhor? — indagou Galaad num tom bem


mais suave.


—Você pergunta como se achasse que eu já o vi — disse Artur.


—Eu mesmo não sei se devo acreditar — replicou Galaad


hesitante — mas correm histórias por aí.


—Que tipo de histórias?


—A respeito de Merlim. Dizem que ele trouxe pessoalmente o


cálice da Terra Santa, onde ficara guardado em segredo durante


muitos séculos.


Artur ponderou por um momento essa observação.


— Como todas as histórias, ela encerra uma parcela de


verdade.


A corte se agitou, pois esta era a primeira vez em que o rei


admitia ter alguma ligação com o tesouro com o qual todos


sonhavam. Mas Artur não tinha mais nada a dizer.


Certa noite, no início da primavera, quando os campos degelavam


e junquilhos, não mais compridos do que uma unha, floresciam entre


as rosas de Natal que murchavam, uma fogueira podia ser vista a


uma grande distância fora dos muros do castelo. Ao redor dela


sentavam-se Sir Percival e Sir Galaad, que haviam prometido fazer


juntos um retiro santo. Era cedo demais para que esse retiro tivesse


lugar no seio da floresta, onde a última neve do inverno ainda se


acumulava em montes sujos debaixo da sombra das árvores, de modo


que os dois cavaleiros rezavam e jejuavam numa pequena tenda,


visível dos aposentos do rei.


—Certa vez confundi meu sonho de conquistar o Graal com uma


fantasia fútil — começou Percival. — Todo cavaleiro quer ser o


primeiro entre os paladinos, mas durante anos voltei as costas para


meu desejo, considerando-o um joguete do meu orgulho. Mas eu lhe


digo, Galaad, minha alma arde por essa coisa.


—O rei afirma que o Graal não é uma coisa — lembrou o


cavaleiro mais jovem.


—Ele também diz que Merlim o trouxe para a Inglaterra. Você


mesmo o ouviu dizer isso, não ouviu?


A voz de Percival soou com uma sugestão de desafio, e Galaad


simplesmente fez que sim com a cabeça. Algumas vezes


154


a prece e a penitência acendiam mais chamas do que apagavam, pensou


ele. Certamente Galaad tinha que admitir que compartilhava o


crescente desejo de Percival.


— Se alguém está destinado a conquistar o Graal, sem


dúvida tem que ser um de nós — disse ele, atirando no fogo


alguns galhos secos de aveleira e observando-os flamejar. —


Somos o único grupo de cavaleiros que realmente vivem para


defender a paz e não apenas para fazer ataques de surpresa nos


campos e disseminar o terror. Não sei se meu coração é sufici


entemente puro para alcançar o Graal, não sou tão vaidoso ou


tolo a ponto de acreditar que ele deva cair nas minhas mãos, mas


meu coração sofrerá enquanto eu não tentar.


Naquele momento os dois homens ouviram o ruído de passos


rachando a fina camada de gelo que ainda cobria o solo perto deles.


Ficaram tensos, esperando que o estranho se identificasse, quando


uma voz levemente zombeteira disse:


— Não se assustem, e por favor concedam-me partir em


segurança. Preciso de lume, se vocês puderem compartilhar o


seu comigo.


Percival olhou para Galaad, e depois disse na escuridão:


— Vá saindo e acenda seu fogo. Isto é um retiro de dois


cavaleiros que durante algum tempo não devem ter contato com


as impurezas do mundo.


Eles receberam como resposta um riso zombeteiro.


— Acender meu fogo, vocês disseram? E o que farei então.


Antes que essas palavras acabassem de ser ditas, Percival


pôs-se de pé assustado, pois o chão debaixo dele se inflamara. Galaad


olhou assombrado em volta ao notar que um círculo de fogo agora os


rodeava, subindo da terra congelada. Antes que ele pudesse gritar, uma


figura alta, macilenta como um velho abeto, atravessou as chamas


aproximando-se deles.


—Merlim — disse Galaad, controlando suas emoções. — O que o traz


aqui após tanto tempo?


—Sem dúvida não seu amigo insolente — retrucou Merlim, fitando


Percival, que tentava manter um mínimo de dignidade possível para um


homem que está com o traseiro em chamas. — Sente-se, sente-se —


acenou o mago.


Percival sentiu a dor embaraçosa desaparecer, e sentou-se ao lado


de Galaad, tendo Merlim à sua frente. Nenhum dos dois


155


o vira antes, mas a descrição de Artur fora precisa, inclusive a de


seus chinelos pretos surrados, de pele de toupeira, bordados com


fios de lã.


—Não fique olhando para mim — disse Merlim. — Estou


pensando.


—Em quê? — perguntou Percival.


—E não me interrompa — foi tudo que o mago teve a dizer em


resposta.


Depois de um instante, sua expressão um tanto dura suavi-zou-se.


— Sim, acredito que você esteja dizendo a verdade. O único


problema agora é o que fazer a respeito.


— A verdade sobre o Graal? — perguntou Galaad. —


Certamente queremos empreender essa busca.


Merlim examinou-o com um olhar de aprovação.


— Você reconheceu quem eu era sem apresentações tolas, e


agora você quase consegue ler minha mente. Bastante promete


dor — disse Merlim.


Com sua modéstia natural, Galaad baixou o olhar para o chão,


esperando que Percival não ficasse com inveja desse elogio que ele


não procurara.


— Seu rei falou acertadamente, você sabe — disse Merlim.


— O Graal não é uma coisa que se possa perseguir a cavalo como


uma raposa. Ele não é feito de ouro ou pedras preciosas, e, por


conseguinte, não traz nenhum benefício a quem o guarde em


segredo. E possuí-lo não confere à pessoa a bênção de Deus, o


mesmo ocorrendo se a pessoa não possuí-lo.


Percival, que estava ficando cada vez mais agitado, finalmente


interrompeu:


— Como você pode dizer isso? O Graal deve conferir a


bênção de Deus.


Merlim interrompeu-o com um olhar contundente.


—Meu caro palerma, se o mundo todo foi criado por Deus, como


poderia qualquer parte dele, por mais remota ou insignificante, ser


menos abençoada do que outra?


—Mas existe um Graal, não existe? — perguntou Galaad. — O rei


nos disse que você o protege.


Merlim fez que sim com a cabeça.


156


— Protejo o que não precisa de proteção, oriento a busca que


você não pode empreender a lugar nenhum, e no final estarei


presente quando você encontrar o Graal, embora você não vá ver


nem a mim nem a ele.


Merlim parecia muito feliz com esse enigma e calmamente soltou


uma baforada de fumaça pela boca, como se o tabaco já tivesse sido


descoberto.


Percival levantou-se de repente.


— Bem, se eu sou o palerma aqui, vou me retirar.


O comportamento de Merlim suavizou-se um pouco.


— Você é o que você é, o que parece muito bom aos olhos


de Deus e bastante raro neste mundo sem esperanças — murmu


rou ele. — Tome seu lugar, por favor.


Percival, ainda um tanto zangado, aquiesceu a esse pedido


delicado.


— Não me aproximei de vocês por acaso. Estou aqui para


conduzi-los ao Graal — declarou Merlim. — Existe uma regra


que não pode ser desobedecida: quando o discípulo está pronto,


o mestre aparece. O que vocês desejam saber, eu posso ensinar.


Meus primeiros comentários não foram rudes nem místicos.


Quero apenas eliminar das suas cabeças quaisquer sonhos erró


neos que possam ter com relação ao objeto da sua busca.


Com um movimento da mão, Merlim fez com que o anel de fogo se


reduzisse a uma incandescência opaca, e seus traços mal ficaram


visíveis à luz das brasas. Os dois cavaleiros o viam basicamente como


uma longa sombra coroada de cabelos brancos iluminados pela lua


que subia no céu.


—A busca que traz o Graal como prémio não é uma jornada do tipo


que os cavaleiros ignorantes anseiam por empreender. Ela é uma


jornada interior, uma busca da transformação. Vocês já ouviram falar


numa coisa chamada alquimia? — Percival e Galaad inclinaram


afirmativamente a cabeça, figuras indistintas esboçadas pela escuridão


mais profunda. — A alquimia é a arte da transformação — prosseguiu


Merlim — e quando suas sete etapas forem concluídas, somente então,


vocês serão capazes de reclamar o Graal.


—Sete etapas? — perguntou Percival. — Então afinal o Graal é


feito de ouro, pois eu sei que os alquimistas...


— Sofismas e tolices. Vocês conhecem muito pouco, ou


nada, a respeito dessa arte, e no entanto a vêm praticando


157


diariamente desde o dia em que nasceram — replicou Merlim. —


Todo bebé nasce um alquimista, depois deixa escapar a arte,


apenas para recuperá-la mais tarde.


Percival compreendeu que o mago iria continuar a recorrer a


enigmas se ele insistisse em duvidar dele; por conseguinte, o cavaleiro


sabiamente acomodou-se e ficou escutando.


—O maior desperdício da existência — disse Merlim — é o


desperdício do espírito. Cada um de vocês, mortais, veio ao mundo


para procurar o Graal. Ninguém nasce com mais privilégios do que


outro; o mago percebe que todo mundo é criado para alcançar a


liberdade e a realização.


—Eu já não sou livre? — indagou Percival.


—No sentido mais simples é, uma vez que você não está sendo


mantido prisioneiro de ninguém, mas estou me referindo à liberdade


num sentido mais profundo: a habilidade de fazer qualquer coisa que


você queira quando bem entender — replicou Merlim. — E existem


níveis ainda mais profundos. Como você deve admitir, você é o tempo


todo prisioneiro do seu passado, suas lembranças criam o


condicionamento que literalmente dirige sua vida. Se você estivesse


livre do passado, você poderia ingressar em infinitas possibilidades,


rompendo a barreira do conhecido a cada momento. O Graal é apenas


uma promessa visível de que essa perfeição existe. Vocês


compreendem?


Agora que se entusiasmara pelo assunto, o mago não esperou pelo


assentimento deles.


— Eu disse que o caminho em direção à liberdade e à


realização encerra sete etapas de alquimia. A primeira etapa


começa no nascimento, as seguintes seguem-se na infância, e as


restantes são deixadas para vocês. Vocês são sempre protegidos


no plano divino, mas à medida que crescem é permitido que sua


vontade e seu desejo aumentem. Quando bebés, vocês eram


puros bastante para alcançar o Graal, mas muito ignorantes para


saber da existência dele. Quando adultos, vocês conhecem a


meta, mas já fecharam o caminho que leva até ela. Foi a


introdução do livre-arbítrio que fez com que vocês deixassem


158


escapar o Graal, mas no entanto ele também é o meio pelo qual irão


recuperá-lo no final.


Temendo que Percival pudesse começar a apresentar obje-ções,


Galaad rapidamente aparteou:


— Você pode nos mostrar as sete etapas?


Merlim deixou que um leve sorriso de entendimento passasse pelos


seus lábios antes de inclinar a cabeça em sinal de assentimento.


PRIMEIRA ETAPA - A INOCÊNCIA


— Vocês nasceram num estado de inocência. De todos os ingredientes


utilizados pelo alquimista, este é o mais importante. O bebé recémnascido


não questiona sua existência; ele vive na &
39;auto-aceitação, na


confiança e no amor. A voz insistente da dúvida ainda não é ouvida.


"Quando você olha nos olhos de um bebé, você enxerga muito


pouca individualidade. A pergunta Quem sou eu? é inexpressiva para


um bebé. Em vez disso, o que brilha através dele é a própria


consciência, a fonte de toda sabedoria. O bebé vem ao mundo a partir


da fonte da vida, e se desliga gradualmente dessa fonte. Durante algum


tempo o bebé permanece banhado pelo intemporal. Ele não tem


nenhum conceito de passado ou futuro, somente de um presente que


se desenrola. É esse o significado de viver na eternidade, pois o que é


o eterno senão o momento presente que está sempre se renovando? A


própria promessa do Graal, a vida imortal, já é desfrutada pelo bebé,


visto que viver no intemporal é o segredo da imortalidade."


— Se isso é verdade — comentou Galaad gravemente —, então por


que não somos todos imortais desde que nascemos?


— Sementes e tendências — respondeu Merlim. — Todo bebé tem a


tendência de se deslocar do mundo intemporal para o mundo das


horas, dias e anos; do silêncio do mundo interior para a atividade do


mundo exterior; do envolvimento consigo mesmo para o envolvimento


com todas as coisas fascinantes que o cercam. Observe um bebé em suas


primeiras semanas de vida.


159


Você pode ver a atenção dele ser atraída para esse surpreendente


mundo novo no qual ele se encontra. E assim começa a alquimia, a


constante transformação que sustentará cada alento dele em todos os


anos seguintes.


"O bebé não é um anjo, sua pureza tem vida curta. O bebé sente


dentro de si as primeiras pontadas de medo, desconfiança e dúvida.


Quando o bebé deixa seu estado de inocência, ele emerge num mundo


mais duro de pancadas e machucados. Começam a surgir desejos que


não são imediatamente satisfeitos; pela primeira vez, a dor é


vivenciada.


"Vocês, mortais, chamam isso de descer do estado de graça, mas


vocês estão errados. A graça opera em cada passo da existência


humana, embora a limitada percepção de vocês possa impedi-los de vêla."


— Por que essa história triste é semelhante à alquimia? — indagou


Percival, ainda sentindo-se cético.


— Porque existe uma magia oculta em funcionamento — respondeu


Merlim. — Quando o bebé cresce, sua inocência original não se perde


realmente. O que acontece é ainda mais misterioso. A inocência


permanece intacta num estado de pureza e totalidade que você


simplesmente esquece. Você agora vive em fragmentos. Para você, o


mundo é limitado; seu senso do eu está completamente envolvido com


as experiências e memórias individuais que você acumulou.


"Ao esquecer a totalidade você pareceu deixar escapar quem você


era, mas isso é uma ilusão. Você não sente nem age como um recémnascido,


mas sua essência permanece. Na realidade, a totalidade não


pode ser fragmentada; a verdade não pode ser prejudicada pela


inverdade. Sua perda de inocência foi um evento real que ao mesmo


tempo não encerra nenhuma realidade. As forças da alquimia estão em


ação além do que você consegue ver, ouvir ou tocar."


— Como posso ter certeza de que essa inocência está realmente


presente? — perguntou Galaad.


— Se você quiser entrar em contato com a inocência que existe


dentro de você, procure pelas características do bebé: vivacidade,


curiosidade, uma sensação de assombro, a certeza de que você é


querido na terra, o sentimento de viver na paz perfeita do intemporal.


Todos os bebés sentem essas coisas.


160


SEGUNDA ETAPA - O NASCIMENTO DO EGO


— A etapa seguinte — continuou Merlim — anuncia a entrada em


cena do ego, o senso do "eu". Para ter o "eu", você também


precisa ter o "você" ou o "ele". O nascimento do ego é o


nascimento da dualidade. Ele marca o início dos opostos e, por


conseguinte, o início da oposição. Cada nova etapa na alquimia


derruba a anterior, virando seu velho mundo de cabeça para


baixo, mas esta revolução é talvez a mais chocante. Você não é


mais um Deus!


"Imagine um ser que se sente onipotente neste mundo. Em todos os


lugares para onde olha, ele só vê um reflexo de si mesmo. De repente,


as pessoas e as coisas começam a ser vistas como criações separadas.


Nenhum de vocês se recorda desse evento dilacerador porque ele


aconteceu quando vocês ainda eram bem pequenos. No entanto foi uma


mudança fundamental, que importou num novo nascimento. Vocês


eram felizes como deuses, e agora vocês nascem na mortalidade."


— Foi também um nascimento para a dor — disse Percival.


— Esta etapa era absolutamente necessária?


— Oh, sem dúvida. Sementes e tendências, eu lhes disse.


Quando a curiosidade do bebé atrai sua atenção para fora de si,


o que ele vê? Primeiro o rosto da mãe. No plano da natureza, o


bebé reagirá automaticamente à mãe como uma fonte de amor


e carinho. Mas é uma fonte externa ao bebé em si. Aí está a


armadilha, pois por mais perfeito que seja o amor materno, ele


não é o amor por si mesmo, e durante muitos anos vocês irão


suspirar a perda do amor perfeito, para um dia compreender que


estão com saudades do seu próprio eu antes de qualquer outra


pessoa entrar em cena.


"No início não havia separação. Quando o bebé tocava o seio da


mãe, o berço ou a parede, todas essas coisas pareciam fazer parte de


uma única sensação fluente, indivisa. Logo, contudo, todo bebé passa a


perceber que existe outra coisa além dele mesmo, o mundo exterior. O


ego diz: Isso sou eu, aquilo não


161


sou eu. Depois, aos poucos, certas coisas passam a se identificar com


o "eu": minha mamãe, meus brinquedos, minha fome, minha dor,


minha cama. Assim que surgem as preferências, passa a existir todo


um mundo que não sou eu, nem minha mamãe, nem meus


brinquedos, e assim por diante."


—Não consigo me lembrar desse nascimento, como você o chama


— disse Percival. — Mas se o que você diz é correto, então deve ser


aqui que a busca do Graal começou. Onde mais ela poderia começar


a não ser na separação?


—É verdade. Enquanto você se sentia divino, não havia


necessidade de uma busca para recuperar a bênção de Deus —


Merlim concordou. — Na separação, você começou a procurar a si


mesmo nos objetos e eventos. Você perdeu a habilidade de ver a si


mesmo como a verdadeira fonte de tudo que existe, porque o bebé


não estava errado ao se ver como a verdadeira fonte da vida. Quando


você começou a explorar o mundo exterior e seus objetos se


tornaram fascinantes, você ligou sua felicidade a eles. Isso se chama


referência do objeto, que veio substituir a referência a si mesmo do


bebé.


—E essa etapa também não foi perdida quando a criança


continuou a seguir em frente? — indagou Galaad.


—Nada jamais é perdido. O nascimento do ego deu origem a


aspectos que você ainda pode sentir em si mesmo: o medo do


abandono, a necessidade de aprovação, a possessividade, a


ansiedade da separação, a preocupação consigo mesmo, a


autocomiseração. Você se viciou no mundo, e continua viciado até


hoje, porque você deixou de ser satisfeito da maneira simples como o


bebé o é. Mas não se desespere, porque uma força mais profunda


estava em funcionamento debaixo dessas mudanças.


TERCEIRA ETAPA - O NASCIMENTO DO EMPREENDEDOR


— Quando surge o ego — prosseguiu Merlim — você passa a ter um


mundo "lá fora", e uma nova tendência emerge, o anseio de sair pelo


mundo e fazer realizações. Os primeiros indícios dessa


162


mudança são primitivos. O bebé quer agarrar as coisas e segurá-las;


ele quer fazer sozinho suas explorações, sempre certifican-do-se de


que a mãe está por perto. Logo ele quer andar e protesta se sua mãe


não permite que ele o faça. Esse desejo de escapar e perambular é


tímido no início. Mas com o tempo, o mesmo bebé que ansiava para


que o segurassem e o protegessem grita para que o soltem. Trata-se


de um instinto saudável, pois o ego sabe que o desconhecido é a


fonte do medo. Se o bebé não saísse para conquistar o mundo, ele


passaria a temê-lo cada vez mais. "Estamos agora nos afastando


cada vez mais da sensação de paz, unidade e confiança com a qual


vocês nasceram. O ego começa a dominar o espírito. Quando o bebé


se volta para dentro de si para sentir o que existe ali, ele já não mais


encontra a consciência pura; em vez disso, encontra um turbilhão de


memória. As experiências se tornam pessoais, e nunca serão de novo


completamente compartilhadas."


—Outra história triste — lamentou-se Percival.


—Se ela parasse aqui, sem dúvida — disse Merlim. — Mas o


nascimento do empreendedor lhe conferiu confiança e a sensação de


que você é único. Este mundo de objetos e eventos diz respeito a


uma única coisa: a individualização. O ego é necessário para que isso


aconteça, pelo menos no caminho que vocês, mortais, escolheram.


—Nem todo mundo é um empreendedor. Essa etapa é realmente


necessária? — perguntou Galaad.


—Nem todas as pessoas valorizam o sucesso acima de tudo ou se


identificam com o dinheiro, o trabalho e o status — disse Merlim. —


Mas o anseio do empreendedor é mais simples, mais básico do que


isso. É a marca do ego em ação, provando a si mesmo que a


separação é suportável. De fato, o nascimento do empreendedor


torna este mundo onde estamos um lugar alegre, cheio de coisas


para fazer e aprender. Em algumas pessoas o empreendedor perdura


um tempo extremamente longo. A sede da fama e da fortuna


sobrepuja o verdadeiro objetivo da busca. Mas Deus permite o total


livre-arbítrio, e se a pessoa chega à conclusão que o mundo "lá fora"


é mais importante do que ela, o anseio pela fama e pela fortuna


segue-se necessariamente.


"O ego, na visão do mago, não oferece nenhuma possibilidade de


realização. Ele é controlador e indiferente.&
39;Escute-me&
39;,


163


diz ele, &
39;e agarre tudo que você puder para você mesmo. Isso é que é


felicidade.&
39; Todos vocês, mortais, seguem esse conselho durante


algum tempo. Tampouco existe nele qualquer prejuízo do ponto de


vista de Deus, porque a confiança Dele no livre-arbítrio vem a ser o


caminho mais sábio.


"Dificilmente preciso lhes dizer que essa terceira etapa permanece


com vocês, porque enquanto o ego estiver presente, o empreendedor


também estará. O empreendedor nunca satisfaz seus apetites. Afinal de


contas, não existem limites para as experiências que vocês podem


acumular; o mundo é infinito em sua diversidade. Mas à medida que se


desenvolve, o ego abafa o espírito com diferentes camadas, de


riqueza, poder, auto-imagem, até que uma voz começa a perguntar


baixinho: &
39;Onde está o amor? Onde está o ser?&
39; A quarta etapa, outro


nascimento, vem a seguir."


QUARTA ETAPA - O NASCIMENTO DO DOADOR


— Com o tempo o ego descobre uma nova noção — acrescentou Merlim


—, ou seja, que a felicidade não repousa apenas em dar mas também


em receber. Esta é uma descoberta importantíssima, pois liberta o ego


de muitos tipos de medo. Existe o medo do isolamento, ao qual o


completo egoísmo necessariamente conduz. Existe o medo da perda,


que surge porque vocês não podem se agarrar a tudo para sempre.


Existe o medo dos inimigos, aqueles que querem tomar de você.


"Ao tornar-se um doador, o ego não precisa conviver com esses


medos, pelo menos não tanto quanto antes. Um problema insistente foi


resolvido. Mas também existe algo mais profundo em funcionamento. O


ato de dar une duas pessoas, a que dá e a que recebe. Esta união dá


origem a uma nova sensação de pertencer; não o pertencer passivo do


bebé que automaticamente pertence à mãe, mas o pertencer ativo de


alguém que aprendeu a criar a felicidade.


"Dar é criativo, e também vira a perspectiva do ego de cabeça


para baixo. Antes de o doador nascer, a proteção contra


164


a perda era extremamente importante. Isso significava a perda de


dinheiro e posses mas também a perda da auto-imagem, a perda da


importância. Agora a pessoa abre livremente mão de alguma coisa,


mas não sente que perdeu alguma coisa. Em vez disso, o ego sente


prazer. Isso é impressionante, porque o prazer de tomar nunca foi


assim." Galaad parecia pensativo.


—O amor entrou no coração. Essa é a diferença.


—É verdade — disse Merlim. — Enquanto o ego persegue o


interesse pessoal, ele não sente amor. Ele pode sentir um intenso


prazer, auto-satisfação ou apego. Esses sentimentos são às vezes


chamados de amor, mas na natureza o amor é altruísta, e é preciso


um ato altruísta para suscitar o amor. Dar não está limitado a dar


dinheiro ou coisas para uma outra pessoa. Existe também o serviço,


o dar de si mesmo, e a devoção, a mais pura forma de dar amor.


"Por todos esses motivos, o nascimento do doador transmite uma


sensação nova e liberadora. Embora o ego ainda esteja no comando,


ele começou a olhar para fora de si mesmo. Quase todas as pessoas


aprendem o prazer de dar quando bem pequenas; a maioria dos pais


ensina os filhos a dividir as coisas com outras crianças. No entanto, o


verdadeiro nascimento do doador pode acontecer somente muito


mais tarde. Enquanto você estiver dando porque lhe disseram para


fazê-lo, ou porque você acha que dar é a coisa correta a ser feita,


você não sentirá o profundo prazer de dar. Dar precisa ser


espontâneo, nascer do sentimento &
39;É isso que eu quero fazer&
39;, e não


&
39;E isso que eu devo fazer&
39;."


— Quando a pessoa começa a dar, isso é um indício de que


o ego está morrendo? — perguntou Percival.


Merlim franziu as sobrancelhas.


— Na alquimia não existe a morte. Nada precisa perecer para


alcançar o Graal. Essa antiga noção da morte do ego pressupõe


que existam coisas a respeito de vocês que Deus condena.


—Mas você acabou de dizer que o ego é controlador e indiferente


— objetou Percival. — Isso faz parte do plano de Deus para nós?


—O plano de Deus é que vocês encontrem a si mesmos — disse


Merlim. — Vocês não estão simplesmente destinados a


165


atingir uma meta predeterminada. Se vocês quiserem explorar como


é ser egoísta, ignorante, homicida ou totalmente destituído de fé,


Deus permite todas essas experiências. Por que não deveria Ele


permitir? Como vocês não são julgados, nenhuma das suas ações é


boa ou má aos olhos de Deus.


— Mas isso é chocante — declarou Galaad. — Você está querendo


dizer que um assassino e um santo são iguais?


— Eles são iguais se o pecador e o santo forem apenas máscaras


que você veste — retrucou Merlim. — O santo nesta vida pode ser o


pecador em outra, e o pecador de hoje pode estar aprendendo a ser o


santo de amanhã. Todos esses papéis são ilusões aos olhos de Deus.


Não estou dizendo que vocês precisam se obrigar a adotar essa


perspectiva. Mas vocês me pediram orientação, e preciso lhes


mostrar o que está adiante no caminho.


QUINTA ETAPA - O NASCIMENTO DO BUSCADOR


— Durante um longo tempo, o ego teve tudo à sua maneira —


continuou Merlim. — A pergunta O que é bom para mim? dominou


todas as considerações; o ponto de vista limitado do indivíduo foi o


único que pareceu real. Isso é apenas natural. Como eu disse, este


mundo relativo tem um objetivo, ensiná-los a se tornarem indivíduos.


Mas a individualidade acaba por se abrir e ampliar seus horizontes.


Vocês poderiam prever que em virtude do livre-arbítrio, os seres


humanos se tornariam cada vez mais egoístas. Se o ego indiferente e


controlador tivesse a última palavra, talvez esse fosse seu destino,


mas a alquimia trabalha de forma invisível, nas passagens estreitas


da alma.


"No devido tempo, o doador dá o passo seguinte e avança em


direção ao buscador. Nesta fase, os interesses antigos e familiares


do ego são postos de lado. O senso do &
39;eu&
39; começa a se expandir.


Agora a pessoa começa a ansiar por experiências espirituais,


sentindo uma fonte de amor e realização que mesmo o mais intenso


amor de outra pessoa não é capaz de proporcionar. Uma vez mais,


essa reviravolta acontece como um choque.


166


Em sua melhor expressão, o doador é um filantropo. Ele começou


dando apenas para a família e para os amigos, depois para obras de


caridade ou para a comunidade, mas no final o espírito de dar só


consegue se satisfazer quando todos os seres humanos são


beneficiados.


"Mas é realmente possível vocês se darem para todas as outras


pessoas do mundo? Esta pergunta os leva ao limite da


individualidade; é a pergunta que só um santo pode responder. É


natural, portanto, que o estágio de dar levante questões que ele não


pode responder, preparando assim o caminho para um novo


nascimento. O doador que queria abraçar o mundo agora descobre


que o mundo não é mais uma fonte de realização. As coisas que


antes lhe proporcionavam prazer começam a parecer monótonas; em


particular, a necessidade de aprovação e importância pessoal do ego


não mais conferem satisfação. Surge a sede de ver o rosto de Deus,


de viver na luz, de explorar o silêncio da consciência pura: o impulso


do buscador pode assumir muitas formas.


"E contudo, todos os buscadores compartilham o sentimento de


que o mundo material não parece ser o lugar no qual seus desejos


podem ser realizados. Por quê? Deus não está em toda parte, o


espírito não se encontra no mais minúsculo grão de areia? Sim e


não. Deus pode estar em toda parte, mas este fato não lhes traz


nenhum benefício se vocês não puderem ver onde Ele está. O


buscador procura para poder ver."


—Eu acho que é nesse estágio que a busca do Graal começa —


declarou Galaad.


—Para alguns mortais, de fato, é então que o Graal se torna um


símbolo para uma profunda necessidade interior — replicou Merlim


— mas cada estágio foi uma busca, até mesmo a perda da inocência.


Vocês, mortais, são obcecados por dividir a realidade em bem e mal,


santo e pecador, sublime e não sublime, quando na verdade a vida é


um fluxo divino. Um único impulso, o impulso de possuir o completo


conhecimento e a completa realização, é que o que faz a vida seguir


adiante.


"E, contudo, sob um certo aspecto você está certo. Com o


nascimento do buscador, podemos, pela primeira vez, nomear um


desejo que até agora não tinha nome. Não importa que o nome seja


Deus, o Graal, o Ser divino ou espírito. Todos


167


apontam em direção a uma vida universal. O mundo parece ser


limitado pelo tempo e espaço, mas isso é apenas uma aparência."


— Por que temos que ser enganados pelas aparências? —


perguntou Percival.


— O universo não está escondendo nada de nós — respondeu


Merlim. — Você não está sendo iludido. A aparência de limitações


surge porque este mundo é uma escola, ou campo de treinamento. E


a regra básica que existe nele é que você verá o mundo como vê a si


mesmo. Se você se vê como carente ou indigno, é esse julgamento


que manterá Deus afastado de você. Você poderá dizer que quer


Deus, mas ao mesmo tempo deseja conservar dentro de si todas


essas críticas que você faz a si mesmo.


— Então Deus permanece afastado — lamentou-se Galaad. — E a


busca do Graal torna-se eterna.


Merlim lançou-lhe um olhar complacente.


— O espírito não poderia ficar afastado de você mesmo que


ele quisesse, porque tudo é espírito. Não existem lugares secre


tos onde ele não viva. Deus, na verdade, não vê nada errado em


você.


"Quero falar mais a respeito do buscador, pois este é o estágio da


alquimia que atrai o mago para vocês, e também é o estágio para o


qual os mortais estão menos preparados. Desde que eram bebés,


vocês sempre desejaram cada vez mais. O buscador é simplesmente


aquele cujos desejos se expandiram tanto que só serão satisfeitos se


encontrarem Deus frente a frente. Esse não é um desejo &
39;mais


elevado&
39; do que querer brinquedos, dinheiro, fama ou amor. Os


brinquedos, o dinheiro, a fama e o amor eram a face de Deus quando


eram as coisas mais « importantes para vocês. Qualquer coisa que


vocês acreditem que irá lhes conferir a paz e realização finais é sua


versão de Deus. A medida que avançam de uma fase para outra,


contudo, vocês se aproximam da verdadeira meta; sua imagem de


Deus torna-se mais verdadeira, mais próxima da natureza Dele como


espírito puro. No entanto, cada etapa é divina."


— Você está dizendo que alguém que queira roubar ou


cometer um assassinato está seguindo um impulso divino?


Afinal de contas, esses também são desejos — disse Percival.


168


—O amor é universal, e, por conseguinte, não toma partido —


replicou Merlim. — O ego pode não gostar desse fato. Ele pode dizer:


"Eu mereço o amor de Deus mas aquela pessoa não merece". Esta


não é a perspectiva de Deus. O ladrão inflige a perda da


propriedade; o assassino, a perda da vida. Enquanto essas perdas


forem reais para você, é claro que você condenará a pessoa que as


causou. Mas o tempo também não irá roubar sua propriedade e, no


final, sua vida? O tempo também é um criminoso? Existe uma


perspectiva que encara o pecado como uma ilusão. Nada que você


chame de pecado pode macular, mesmo que infimamente, o amor de


Deus.


—Os buscadores alcançam automaticamente as visões e


experiências que desejam? — indagou Galaad.


—Todo mundo obtém a versão do divino que concebe na mente.


Alguns vêem Deus em visões, outros numa flor. Existem muitos tipos


de buscadores. Alguns exigem atos de intervenção e redenção


milagrosos, outros seguem uma força invisível que se manifesta nas


mais mundanas ocorrências. O buscador é simplesmente motivado


pela sede de uma realidade superior. Isso não significa que o estágio


anterior de dar desapareça. Mas o dar agora é realizado sem uma


motivação egoísta, ele é feito com compaixão.


"Pela primeira vez a exigência do ego de ser onisciente e todopoderoso


é questionada. Por conseguinte, o nascimento do buscador


pode ser extremamente turbulento. Imagine-se como uma carruagem


conduzida por uma estrada por uma parelha de cavalos. Durante um


longo período de tempo, não existe um cocheiro, e os cavalos vieram


a acreditar que são os donos da carruagem. Então, um dia, uma voz


suave, vinda de dentro da carruagem, sussurra: &
39;Parem&
39;. No início, os


cavalos não escutam a voz, mas ela repete: &
39;Parem&
39;. Incapazes de


acreditar no que estão ouvindo, os cavalos avançam ainda mais


impetuosamente, apenas para provar que não têm um amo. A voz


interior não emprega a força; ela não protesta. Apenas continua a


repetir: &
39;Parem&
39;.


"É isso que acontece dentro de vocês. A carruagem é seu eu total,


os cavalos o ego, a voz dentro da carruagem o espírito. Quando este


último proclama sua entrada em cena, o ego


169


inicialmente não escuta, porque está certo de que seu poder é


absoluto. Mas o espírito não utiliza o tipo de poder ao qual o ego está


acostumado. O ego está habituado a rejeitar as coisas; está


acostumado a julgar, separar e tomar o que ele acha que lhe


pertence. O espírito é simplesmente a voz mais tranquila do Ser,


asseverando o que é. Com o nascimento do buscador, essa é a voz


que vocês começam a ouvir, mas vocês precisam estar preparados


para uma violenta reação do ego, que, afinal de contas, não vai


entregar o poder sem lutar."


—Como essa luta chega ao fim se o espírito não tem poder? —


perguntou Percival.


—Eu disse que o espírito não utiliza o poder da maneira como o


ego está habituado. Com o tempo, vocês aprenderão que o espírito é


apenas poder, um poder de alcance infinito. Ele é um poder


organizador que mantém cada átomo no universo em perfeito


equilíbrio. Comparado com ele, o poder do ego é absurdamente


limitado e insignificante. Não obstante, vocês só compreenderão isso


depois de terem renunciado à necessidade do ego de controlar,


predizer e defender. O poder do ego se limita a essas três coisas. Se


o ego pudesse renunciar às três ao mesmo tempo, não haveria


necessidade de outras etapas de crescimento; o nascimento do


buscador seria suficiente.


"Entretanto, este não é o caso. A voz do espírito anuncia que


existe uma realidade mais elevada. Ascender a essa realidade é


outra questão."


—Isso me faz pensar que os buscadores devem ser raros,


considerando-se como é árdua a luta — declarou Galaad. — Muitos


devem fracassar e perder a esperança. É por isso que tão poucos


nascem para alcançar o Graal?


—Todos nascem para alcançar o Graal — lembrou-lhe Merlim. —


O motivo pelo qual os buscadores parecem raros é basicamente uma


questão de aparências sociais. A busca é uma experiência


completamente interior. E impossível dizer, a partir de indícios


externos, quem está buscando e quem não está. A sociedade não


oferece distinções ou recompensas especiais para o buscador, que


poderá inclusive se retirar ao total isolamento, deixando a sociedade


para trás, ou, por outro lado, continuar a viver a vida numa posição


elevada.


170


—Como a pessoa saberá que é um buscador? — indagou Percival.


—As marcas internas do buscador são as seguintes: o dar passa a


ser motivado pelo amor altruísta e pela compaixão, sem desejar nada


em troca, nem mesmo gratidão; a intuição torna-se um guia


fidedigno para a ação, substituindo a rígida racionalidade; a pessoa


vislumbra lampejos de um mundo invisível como a realidade


superior; surgem sugestões de Deus e da imortalidade. Esses


indícios se farão acompanhar de um crescente gosto pela solidão, da


autoconfiança em vez da necessidade de aprovação social, da


atividade do Ser e de uma disposição para confiar. Os padrões de


hábito começarão a desaparecer. A meditação e a prece tornam-se


parte da vida cotidiana. E no entanto, ao mesmo tempo em que todas


essas manifestações espirituais os afastam do mundo material, vocês


sentirão, paradoxalmente, uma maior ligação com a natureza, mais


conforto no corpo e uma maior aceitação das outras pessoas. Isso


acontece porque o espírito não é o oposto da matéria. O espírito é


tudo, e o surgimento dele na sua vida tornará as coisas melhores, até


mesmo coisas que parecem ser opostas.


SEXTA ETAPA - O NASCIMENTO DO OBSERVADOR


— Eu lhes disse — prosseguiu Merlim — que a motivação do


buscador era ser capaz de ver, e isso logo emerge. A sexta etapa, o


nascimento do observador, está logo abaixo da superfície de


qualquer buscador. A busca por si só não encerra nenhuma


realização; a vida seria seca e frustrante se vocês buscassem e nada


encontrassem. Afortunadamente, no plano divino, todas as perguntas


trazem consigo suas respostas, todas as metas vêm a ser


encontradas na origem. Tão logo você verdadeiramente pergunte


Onde está Deus? você verá a resposta.


"Não quero iludi-los aqui. O nascimento do observador é tão


revolucionário quanto qualquer um dos anteriores. Ele significa a


extinção do ego, a extinção de toda identificação externa.


171


Imaginem que sua vida é um filme projetado sobre uma tela em branco.


Enquanto estiverem dominados pelo ego, vocês se concentrarão nas


imagens que se movem e as considerarão reais. Quando o observador


entra em cena, vocês começam a perceber a irrealidade delas. Mas com


o nascimento do observador, vocês se voltam e olham para a luz. A autoimagem


agora é vista pelo que ela é, uma insignificante projeção


transformada em realidade pela necessidade desesperada do ego de


atribuir importância à mente e ao corpo restringidos pelo tempo.


"O observador enxerga através dessa motivação e não mais se deixa


influenciar por ela. Em vez de verem a si mesmos como carne e osso


abrigando um espírito, um fantasma dentro de uma máquina, vocês


compreendem que tudo é espírito. O corpo é espírito amalgamado


numa forma que os sentidos podem sentir, ver e cheirar; a mente é o


espírito numa forma que pode ser ouvida e compreendida. O espírito,


em sua forma pura, não é nenhuma dessas coisas e só pode ser


percebido pela intuição refinada. Certamente vocês já ouviram a frase:


&
39;Aqueles que O conhecem não falam Dele; aqueles que falam Dele não


O conhecem.&
39; Esse é o mistério do espírito."


—Mas você não está falando Dele neste exato momento? —


perguntou Galaad, parecendo confuso.


—Não da maneira que você possa pensar. Quando falo sobre uma


rocha, você pode vê-la e tocá-la. Quando falo do espírito, estou


apontando em direção a um mundo invisível. Setas de luz voam desse


mundo em direção a nós para inflamar nossas almas, mas não podemos


mandar de volta setas de pensamento.


—Isso parece muito misterioso — murmurou Percival.


—A rosa seria misteriosa se você só pudesse pensar nela e nunca


experimentá-la. O espírito é uma experiência direta, mas ele


transcende este mundo. Ele é o silêncio puro combinando-se ao


potencial infinito. Quando você obtém o conhecimento de qualquer


outra coisa, você obtém o conhecimento de alguma coisa; quando


você obtém o conhecimento do espírito, você se torna o próprio


conhecimento. Todas as perguntas cessam porque você dá consigo no


útero da realidade, onde tudo simplesmente é. Quando o olhar do


observador cai sobre alguma coisa, esta é simplesmente aceita pelo


que ela é, sem ser julgada.


172


Não existe uma necessidade do ego de tomar, possuir ou destruir. Na


ausência do medo, essas motivações não se manifestam, porque a


necessidade de possuir nasce da falta. Quando você não tem nenhuma


carência a preencher, simplesmente estar aqui neste mundo, em seu


corpo, é a mais elevada meta espiritual que você possivelmente


poderia alcançar.


Percival e Galaad ficaram muito impressionados com essa parte do


discurso de Merlim. Eles haviam seguido as primeiras etapas com


atenção, mas o ego, o empreendedor e o doador já lhes eram


familiares. Quando o mago falou sobre o buscador, os dois cavaleiros


viram a si mesmos como eram naquele momento. O observador,


contudo, encheu-os de admiração, como se fossem exploradores


chegando ao topo de uma montanha e examinando um novo e vasto


horizonte há muito esperado porém ainda não experimentado.


— Eu quero ser esse observador do qual você fala — declarou


ardentemente Galaad.


Merlim concordou com a cabeça.


— O que significa que você está pronto para isso. Para o


mago só existem três tipos de pessoas: aquelas que ainda não


vivenciaram o Ser puro, aquelas que o experimentaram, e


aquelas que o exploraram completamente. Você o experimentou


e agora deseja explorá-lo. Para você este mundo começará a


desaparecer como uma coisa sólida e a retroceder na luz esma


gadora do Ser. Numa terra distante chamada índia, as pessoas


dizem que a vida comum se torna pálida diante de Deus, como


a vela que parecia brilhar num quarto escuro mas se torna


invisível quando trazida para o sol do meio-dia. — Ele se voltou


para Percival. — E eu o estou incluindo também neste estágio,


não importa como você possa imaginar que eu o julguei.


Percival ficou vermelho e depois gaguejou:


— Como será essa nova vida?


— Como sempre, ela parecerá um novo nascimento. O


observador difere do buscador por não mais ter que selecionar e


escolher. O buscador ainda está envolvido numa ilusão quando


sai por aí dizendo: "Deus está aqui, Deus não está aqui". O


observador, por outro lado, vê Deus na própria vida. A longa


guerra interior finalmente terminou, e o descanso chega para o


173


guerreiro. Em lugar da luta, você vivência todos seus desejos se


tornarem realidade naturalmente e sem esforço. Não existem sinais


externos que definam quem são os observadores entre nós, mas


interiormente eles se sentem abertos e satisfeitos, eles permitem


que os outros sejam quem querem ser, que é a forma mais elevada


de amor, não colocam empecilhos às outras pessoas e aos


acontecimentos, e abandonaram totalmente o senso egoísta do "eu".


SÉTIMA ETAPA - O ESPÍRITO


— E difícil imaginar que pudesse haver um estágio mais elevado na


vida — comentou Galaad após um momento, profundamente tocado


pela descrição do observador.


—Tenha cuidado com a expressão mais elevado — advertiu


Merlim. — E o ego que deve se preocupar com o superior e o


inferior. A meta da sua vida é a liberdade e a realização. A realização


só é alcançada quando você passa a conhecer Deus tão


completamente quanto Ele conhece a Ele mesmo. Vocês, mortais,


estão sempre ansiosos por milagres, e eu lhes digo que o maior


milagre são vocês mesmos, pois Deus lhes concedeu essa habilidade


única de se identificarem com a natureza Dele. Uma rosa perfeita


não sente que é uma rosa; um ser humano realizado sabe o que


significa ser divino.


—Esse estado pode ser descrito? — indagou Percival.


—Ele é a sétima e última etapa da alquimia, o espírito puro.


Quando ele surge, o observador descobre que o que parece ser a


alegria e realização totais ainda podem se expandir. Veja bem,


chegar à presença de Deus não é o final da sua busca e sim o início.


Você começou na inocência, e nela você irá terminar. Mas dessa vez


a inocência é diferente, porque você obteve o conhecimento


completo, ao passo que o bebé só tem sentimento.


"Quando vocês forem capazes de se verem como espírito, sua


identificação com o corpo e a mente deixará de existir. Ao mesmo


tempo, o conceito de nascimento e morte também cessará. Vocês


serão uma célula no corpo do universo, e esse


174


corpo cósmico será tão íntimo de vocês quanto seu corpo o é para


vocês agora. Isso é o mais próximo que eu consigo chegar de como


um mago sente, pois mago é apenas uma outra palavra para o sétimo


estágio.


"Entendam o seguinte: para o mago, o nascimento é meramente a


ideia de que &
39;eu tenho este corpo&
39;, e a morte é apenas a ideia de que


&
39;eu não tenho mais este corpo&
39;. Como os magos não estão sujeitos à


ilusão do nascimento, qualquer corpo que eles assumam é visto


apenas como um padrão de energia, qualquer mente como um


padrão de informação. Esses padrões estão em eterna


transformação; eles vêm e vão. Mas o mago está além da mudança. A


mente e o corpo são como quartos nos quais a pessoa escolhe viver,


mas não o tempo todo.


"Nenhuma quantidade de pensamento ou sentimento pode


aproximar ou trazer a vocês esse estado. O espírito nasce do silêncio


puro. O diálogo interno da mente precisa terminar e nunca mais


recomeçar, porque aquilo que deu origem ao diálogo interior, a


fragmentação do eu, não está mais presente. Seu eu será unificado, e


à semelhança do bebé que foi seu início, vocês não sentirão nenhuma


dúvida, vergonha ou culpa. A necessidade de dualidade do ego gerou


um mundo de bem e mal, certo e errado, luz e sombra. Agora vocês


verão que esses opostos se mesclam. Essa é a perspectiva de Deus,


porque onde quer que Ele olhe, tudo que Ele vê é Ele mesmo.


"Se vocês sentirem que esta meta é excessivamente grandiosa ou


distante, eis um segredo. Embora vocês tenham a impressão de que


passam pelas sete etapas da alquimia, cada uma delas esteve


presente desde o início. Na inocência estava a totalidade de Deus,


como ela está no ego, na realização, na doação ou na busca. Tudo


que realmente mudou foi o foco da sua atenção. Em seu ser


encontra-se cada aspecto do universo, tão completo e eterno quanto


o próprio universo. Mas mesmo assim o nascimento no espírito é um


acontecimento tremendo. A medida que a unidade for


amadurecendo, vocês se tornarão cada vez mais familiarizados com o


divino, até que finalmente vivenciarão Deus como um ser infinito que


se desloca a uma velocidade infinita através de dimensões infinitas.


Quando essa impressionante experiência tiver lugar, ela parecerá tão


simples e natural


175


quanto se sentar aqui debaixo das estrelas, só que cada estrela


dançante será vocês mesmos."


Como frequentemente acontece quando os magos falam, os dois


cavaleiros se sentiram transportados para o estado que ele estava


descrevendo. Galaad ergueu a vista para o céu noturno e teve de


repente a impressão de que podia tocar nas estrelas. Uma sensação


de verdadeiramente pertencer ao mundo inundou seu coração.


—Estamos em casa — Percival sussurrou para si mesmo.


—Não se impressionem demais — murmurou Merlim. — Esses


sentimentos possuem essa intensidade porque são novos para vocês.


Na verdade, este é o estado natural de vocês. Estarem unidos ao


cosmo, serem íntimos de todas as formas de vida, e finalmente


alcançarem a união com seu próprio Ser, este é seu destino, o final


da sua busca.


—No final voltaremos ao início — murmurou Galaad.


—Sim — disse Merlim. — Cada um de vocês começa com amor,


passa pela luta, paixão e sofrimento, terminando novamente no


amor.


A voz de Merlim ficou mais suave enquanto o círculo de luz ao


redor deles praticamente se extinguia.


— Vocês, mortais, anseiam por milagres, digo eu, e na


qualidade de filhos privilegiados do universo, nada lhes será


negado. O espírito é o estado do milagroso, que se desenrolará


em três estágios:


&
39;&
39;&
39;Primeiro, vocês vivenciarão milagres no estado chamado


consciência cósmica. Cada evento material terá uma causa


espiritual. Cada acontecimento local também estará acontecendo no


palco do universo. Seu menor desejo fará com que as forças


cósmicas o tornem realidade. Por mais maravilhoso que isso possa


parecer, esse não é um estado muito adiantado, porque muito antes


de alcançarem a consciência cósmica, vocês estarão acostumados a


ver seus desejos espontaneamente se tornarem realidade.


"Segundo, vocês realizarão milagres no estado denominado


consciência cósmica. Este é o estado de criatividade pura, no qual


vocês se mesclam com o poder de Deus, por meio do qual Ele cria os


mundos e tudo que acontece nesses mundos. Esse


176


poder não tem origem em nada que Deus faz, ele é apenas Sua luz


de consciência. Como um brilho rico e dourado, vocês verão a


consciência divina reluzindo através de tudo que seus olhos


contemplam. O mundo ilumina-se a partir do interior, e não existe


nenhuma dúvida de que a matéria é simplesmente o espírito


manifestado. Na consciência divina, vocês se verão como aquele que


cria, não o que é criado, o que dá a vida, não o que recebe.


"Terceiro, vocês se tornarão o milagre, no estado conhecido como


consciência de unidade. Agora, qualquer distinção entre o que cria e


o que é criado desapareceu. O espírito dentro de vocês se incorpora


ao espírito de tudo o mais. O retorno de vocês à inocência é todoabrangente,


porque, à semelhança do bebé que toca a parede ou o


berço e só sente a si mesmo, vocês verão cada ação como o espírito


derramando-se sobre o espírito. Vocês viverão num completo


conhecimento e confiança. E embora ainda pareçam morar num


corpo, ele será apenas um grão de Ser nas praias do oceano infinito


de Ser que são vocês mesmos."


Os dois cavaleiros não tinham ideia do tempo que Merlim levara


fazendo essa exposição. Eles tinham a impressão de terem sido


erguidos num espaço no qual esferas de Ser se abriam uma depois


da outra como as pétalas de uma flor. E quando a última se abriu,


um diamante quase transparente, que mal podia ser visto, girava no


centro. "O que é isso?" Galaad teve vontade de perguntar, mas não


ousou fazê-lo.


— Contemplem o Graal — sussurrou Merlim. — O desabro


char da sua busca conduziu a uma visão da meta, o ponto de pura


luz, a essência do diamante que arde dentro da sua alma.


Os dois cavaleiros se ajoelharam no chão frio e rezaram em seus


corações pedindo para merecer a visão.


—Vivam em devoção a este momento — disse Merlim. — Eu os


trouxe aqui por causa do seu mais íntimo desejo, mas agora vocês


mesmos precisam conquistar o verdadeiro Graal, e não apenas a


visão dele.


—O verdadeiro Graal? — murmurou Percival. — O que devemos


procurar, esta mesma imagem?


—Não esperem nem antevejam — advertiu Merlim enquanto a


visão do Graal começava a desaparecer. O homem vai em


177


busca de símbolos, e os símbolos mudam a cada época. Mas o que


lhes mostrei não foi um símbolo, e sim a verdade. O Graal é a


partícula de cristal do Ser no coração de vocês. Ela reflete


sutilmente a luz em suas facetas, e desses reflexos sutis surgem


todas as faculdades da mente e do corpo que vocês percebem com


seus sentidos. Como reflexos, eles são reais, mas muito mais real é


esse diamante transparente de puro Ser.


Inesperadamente, Merlim bocejou, inclinando a cabeça para trás


como se esse fosse o ato mais agradável do mundo. Ele estendeu os


braços bem abertos e se levantou. Estava agora quase escuro como


breu, o fogo havia se apagado completamente, mas Percival e Galaad


podiam sentir o olhar de Merlim fixo sobre eles. Ele disse:


— Um dia vocês olharão para trás, para esta noite, e pergun


tarão: "Quem é você, Merlim?" Além da esfera do tempo, assim


responderei: Sou aquele que não precisa de milagres. Sou um


mago, e o fato de eu estar aqui é um milagre suficiente. O que


poderia ser mais milagroso do que a própria vida?


Com a luz que se extinguia, o velho desapareceu. Percival e


Galaad permaneceram imóveis, sem emitir um som. O fascínio da


fala de Merlim ainda tomava conta deles, e quando ele começou a


diminuir, ambos tremeram, lamentando terem que voltar à terra. Ao


amanhecer, iniciaram o retorno ao castelo. A luz dourada do sol,


Percival avistou o rei Artur de pé, na janela de seus aposentos reais;


ele estava olhando diretamente para eles.


— Você acha que devemos falar com ele sobre o que


aconteceu? — perguntou Percival, fazendo um gesto em direção


ao castelo.


Galaad sacudiu negativamente a cabeça.


— Estou certo de que o rei sabe o que aconteceu; deve ter


acontecido a ele, ou por que outro motivo ele estaria tão relutante


em falar sobre o Graal? Mas quero lhe dizer uma coisa, Irmão


Cavaleiro. Eu gostaria que Artur compreendesse que estamos


com ele e Merlim nessa busca. Vamos chamar esta noite de noite


da gruta de cristal. O rei saberá ao que estamos nos referindo.


E embora eles não tivessem estado numa gruta e sim debaixo do


dossel de um céu estrelado, Percival concordou instantaneamente


com a sugestão de Galaad.


ANDRESSA


 


Quando puder ver agradeço.


 


1-Meu namoro com Luiz Fernando vai dar certo?


 


2- Serei novamente promovida em meu trabalho?


 


3- Vou conseguir finalmente ingressar na faculdade?


 


4- Está td certo com minha saúde espiritual e fisica?


 



1) Quero começar a fazer um curso de cinema digital e tenho procurado emprego, porém nunca trabalhei antes, então as oportunidades que surgem acabo perdendo por falta de experiencia, meu pai disse que se a aposentadoria dele sair logo ele pagaria, mas ele esta a anos esperando e até agora nada, final do ano a advogada disse que ligaria dando um parecer sobre a audiencia que foi feita mas tbm nao ligou, queria saber se pra conseguir fazer este curso conseguirei arrumar um emprego, ou se sai a aposentadoria do meu pai e ele paga ?E se ainda demora? (Jose O.16/03/62) 



 


04/08/07= Mostra que sim, os caminhos estão abertos pra vc conhece-la e para essa viagem tbm, mostra tbm que poderá acontecer algum envolvimento entre vcs. Conhecer ela irá mudar muita coisa em sua vida, não somente a possibilidade desta viagem, mas mostra que conhecer ela trará muitas outras  transformações na sua vida. Muita coisa boa relacionado a ela.



2) Atraves deste curso quero tentar conhecer uma pessoa a qual eu admiro muito o


trabalho, nome dele é Ian, gostaria de saber se atraves deste curso


terei mesmo a oportunidade de conhecer Ian pessoalmente e trabalhar com


ele algum dia? ( Ian S. 8/12/1978 )


3) Meu objetivo atravez deste curso tambem, é ir trabalhar nos EUA, apesar do Brasil estar tento bastante reconhecimento na area de cinema, mas acho que por la terei mais oportunidades de trabalho.Sera que dará certo de eu ter uma carreira internacional? (Nem que eu comece por aqui e só depois de um tempo vá pra lá)



4) E se esse curso de cinema digital me trata retorno financeiro e realização profissional?


 


 


Evelyn Oliveira dos Santos 14/3/85




MAGIA DOS GESTOS

POÉTICOS

Rubem Alves

“Não terei medo de ninguém sobre a terra.

Temerei apenas a Deus.

Não terei má vontade para com ninguém.

Não aceitarei injustiças de ninguém.

Vencerei a mentira pela verdade,

e na minha resistência à mentira

aceitarei qualquer tipo de sofrimento”

Gandhi

http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

Todos os direitos de edição reservados à

EDITORA FTD S.A.

MATRIZ Rua Rui Barbosa 156 (Bela Vista) São Paulo

CEP 01326-010 Tel. 253 5011

FAX (011) 288 0132

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara

Brasileira do Livro, SP, Brasil) Alves, Rubem, 1933

Gandhi: política dos gestos poéticos / Rubem Alves. 2ª. ed. - São

Paulo: FTD, 1994. -(Coleção prazer em conhecer)

ISBN 85-322-0172-5

1. Gandhi, Mahatma, 1869-1948 2. Pacifismo l. Título. II. Série.

94-0580 CDD-923.254

Índices para catálogo sistemático:

1. Índia: Estadistas : Biografia 923.254

2. Índia: Políticos : Biografia 923.254

Publicação original Coleção Encanto Radical Editora Brasiliense

Editor: Jorge Cláudio Ribeiro

Coordenador de revisão: Adolfo José Facchini

Editor de arte: Cláudio Cuellar

Capa: Chromo Digital - Design Gráfico

Ilustrador: Rogério Borges

Produtor: Edilson Felix Monteiro

Diagramador: Ricardo Hamassak

O autor

Eu nasci em Boa Esperança, Minas Gerais. Poucos foram lá,

mas muitos ouviram a “Serra da Boa Esperança”, do Lamartine Babo.

Em 1933. Depois, pinguei por várias cidades pequenas, até uma

juventude no Rio de Janeiro.

Estudei música, teologia e quis ser médico, por amor a Albert

Schweitzer. Fui pastor numa igreja do interior de Minas, Lavras,

cidade de ipês e de escolas. Convivi com o povo, e de 1958 a 1964

deixei os livros, sem remorsos, para viver dores e alegrias de outros.

Assim vivem pastores e, imagino, sacerdotes católicos.

Passei algumas vezes pelos Estados Unidos. Lá fiz meu

doutoramento. Princeton, New Jersey.

Livros

A Theology of Human Hope, três edições em inglês.

Traduzido para o italiano, o francês e o espanhol. Tomorrow’s child,

um livro sobre a imaginação e a magia, a esperança e a utopia. E

sobre plantar árvores em cuja sombra nunca nos assentaremos. O

enigma da Religião (Vozes). Protestantismo e repressão (Ática).

Filosofia da Ciência e O que é religião (Brasiliense).

Concordo com Octávio Paz quando ele diz que a tarefa do

intelectual é fazer rir pelos seus pensamentos e fazer pensar pelos

seus chistes...

RUBEM

Índice

Capítulo 1 - Gestos poéticos

Capítulo 2 - Origens

Capítulo 3 - Humilhações

Capítulo 4 - Saíyagraha

Capítulo 5 - Um colar

Capítulo 6 - Os saquinhos de anil

Capítulo 7 - A caminhada para o mar

Capítulo 8 - A reverência pela vida

Capítulo 9 - A tristeza final

Capítulo 10 - Como escrevi esta estória

Capítulo 1

Gestos poéticos

Escute só... Cessaram os ruídos comuns e as vozes que aqui

havia quando cada dia era como o outro. Tudo parou para ver, para

dizer adeus... Não é silêncio. É um mistério que está no ar,

misturado com este perfume de sândalo que sai da madeira que se

contorce e chia nas chamas. É o cheiro de incenso que diz que o

momento é sagrado. A morte foi sempre misteriosa, e é por isso que

os homens se aproximam dela com o nome de Deus nas suas bocas.

Nome que se pronuncia para exorcizar o medo: Râmi Râm

Ouve-se o crepitar do fogo, luminoso e quente, esplendor da

divindade. Ao lado do fogo corre o rio Jumna. Penso que suas

águas, nascidas nas distâncias do Himalaia, devem estar se

preparando para receber as minhas cinzas. Dizem as estórias

contadas de geração em geração que este rio é mulher, irmã gêmea

de lama, deus da morte.

Poderia haver lugar mais belo para uma pira funerária, entre o

fogo divino e as águas que carregam em si os segredos do além, mãe

que acolhe no colo um filho que retorna? Como é bom saber que,

no retorno, há uma mãe à espera... com suas águas irei indo

lentamente, até o Ganges. Isto me conforta porque todas as vezes

que vi o rio sagrado, e sempre que dele me lembrei, tive

pensamentos de harmonia e de tranqüilidade. Há também o discreto

murmurar das palavras que se dizem ao ouvido, e o choro da

separação.

O nome de Deus, o rio da morte, colo materno que acolhe, as

vozes do amor... Tudo isto junto fia e tece um tapete que convida a

alma...

Olho, ouço, e isto me faz bem. Meu coração se aquece porque

amei intensamente este povo comum e pobre da Índia, minha mãe...

É bom saber que me amaram. Eu não queria deixá-los ainda,

muito embora os acontecimentos me estivessem dizendo que já

bastava, que era hora de partir. Mas o meu tempo interior dizia

outras coisas. Queria continuar a viver para continuar a lutar com

um espírito equânime e tranqüilo. Não existe coisa alguma mais

doce que isto.

E foi por isto que disciplinei o meu corpo, para ter vida longa,

e cheguei a sonhar que chegaria a viver 125 anos...

Cada pessoa tem uma estória para contar. Elas trocam entre si

pequenos fragmentos de memória para que os outros saibam que, a

despeito da distância, vivemos juntos momentos de verdade,

respiramos o mesmo ar, conspiramos. As agonias compartilhadas

desjejuns, a solidariedade das prisões, a coragem da resistência

mansa e tenaz, a percepção da voz interior, surgida do fundo da

alma, as alegrias das vitórias: tudo isto selou nossa fraternidade. A

ternura com que falam a meu respeito me leva para muitos anos

atrás, naquela terra de humilhação para os indianos pobres e

indefesos, a África do Sul. Foi lá que começaram a me chamar de

bhai, irmão. Como era doce este nome na boca dos que o

pronunciavam. Hoje sinto coisa parecida. Pena que eles não possam

ver minhas mãos unidas e o meu sorriso, abençoando-os.

Como se cada um desejasse afirmar sua presença, em amor, na

pira incendiada.

- Eu também o vi...

- Sim, me lembro muito bem...

Pensam que estão falando a meu respeito. Mas se enganam.

Não percebem que, quando se fala com amor, cada palavra que se

diz é uma revelação daquele que fala. Confissões.

Se eles se lembram é porque este corpo, que o fogo vai

transformando, de alguma forma conseguiu despertar neles algo de

bom que ali se encontrava esquecido. Falam sobre eles mesmos ao

dizer o meu nome. Sentiram-se mais dignos e mais livres. O que fiz?

Quase nada. Só uns poucos gestos mansos e obstinados. E as coisas

boas adormecidas acordaram, como que por “magia...”

Lembro-me de uma longa viagem de trem, naqueles anos que

vivi na África do Sul. Seriam vinte e quatro horas. Eu tinha um

amigo íntimo a quem confidenciava tudo o que me ia na alma.

Acompanhou-me até a estação e, na despedida, deu-me um livro de

presente. Garantiu-me que a leitura seria do meu agrado, talvez para

certificar-se de que eu não o deixaria fechado, absorvido por minhas

preocupações de ordem prática. Ele sabia muito bem da vida que eu

levava, ação o tempo todo, o que não me deixava sobras para o

estudo. Comecei a lê-lo. Coisa estranha me aconteceu. Sentia como

se o autor estivesse simplesmente dando nomes a sentimentos que já

existiam dentro de mim. Não, não eram palavras que enunciavam

verdades acerca das coisas de fora, e que nos deixam convencidos e

impassíveis. Eram palavras encantadas, que invocavam partes do

meu próprio ser que eu já sentia, mas ainda não conhecia. Nunca

mais pude me esquecer. O autor, irmão desconhecido, era John

Ruskin, e o nome do livro era Até o último. Não pude dormir a

noite toda, fascinado pela leitura. Resolvi mudar de vida. Quando o

dia amanheceu eu era um homem diferente. Havia me decidido a

andar na direção indicada pelas vozes do meu íntimo. Aquela era a

minha verdade que precisava ser obedecida, para que eu estivesse

em paz comigo mesmo e sentisse a alegria de viver. Maravilhei-me

com este estranho poder das palavras. E entendi então o segredo do

poeta. O poeta é um ser que é capaz de despertar o bem que dorme

no fundo do coração humano. De fora ele pouco sabe. Contenta-se

em ser um espelho para que contemplemos as profundezas de

dentro.

Naquele momento compreendi o que desejava ser. E nunca

mais desejei ser outra coisa. Ser poeta de palavras era coisa além das

minhas possibilidades. Tal dom não me havia sido dado pela

providência divina. Mas eu poderia ser um poeta dos gestos, gestos

que trouxessem de novo à vida coisas que pareciam mortas, gestos

de encantamento e sedução. Compreendi que era destes gestos que

nasciam as grandes metamorfoses: dos indivíduos, das comunidades,

de povos inteiros. A razão? É que eles atingem o coração. Não

existe nenhum outro caminho que nos possa levar à transformação

do mundo. E nada há que se lhes compare em poder. Digam-me,

por favor: qual é a barreira que o sentimento proveniente do

coração não pode romper? Anos depois eu me encontrei com

Tagore, poeta que cantou o coração da Índia. Senti que éramos

companheiros. Ele fazia com as palavras aquilo que eu tentava fazer

com os meus gestos. As multidões, entretanto, o desorientavam.

Ele precisava ouvir as vozes que só se dizem no silêncio. E as

transformava em poemas. E eu sentia que era isto que cada alma,

perdida na multidão, desejava: a palavra que lhe dissesse a sua

verdade. Milhões de sofredores, pedindo um poema. Não, eles não

vivem só de comida. Os poemas fazem o corpo sorrir e lutar:

alimento revigorante.

Sei que os políticos não entendem isto. Acostumaram-se a

movimentar o poder dos raios. Ignoram o poder da semente. Até

mesmo Nehru, meu filho espiritual. Sensível, inteligente, apaixonado

pela Índia, respirávamos a mesma verdade, o mesmo amor pelo

povo. Mas ele era político. Escapava-lhe a significação dos gestos

poéticos.

Foi necessário que ele visse com os seus próprios olhos. O

mais fraco de todos os gestos, o jejum, o poeta dos gestos optando

pelo silêncio, indo até aqueles limites além dos quais o silêncio é sem

volta. Além do mais, eu era um prisioneiro, à mercê do Império

Britânico. Mas o gesto que ninguém viu, porque feito do lugar da

mais total impotência, virou palavra, andou de boca em boca, os

corações reverberaram, milhares, e o milagre aconteceu. Naquele

instante ele percebeu aquilo que iria escrever muito depois: “Que

grande mágico, este pequeno homem sentado na prisão de leravda!” Ele só se

enganou em um ponto: - pensou que o que fiz era coisa

extraordinária. Mas estou convencido, como o estive durante toda a

minha vida, de que tudo que me foi possível o é também para uma

criança. A palavra é muito boa: magia. É isto que sempre quis fazer:

modificar as coisas pelo poder do amor. E de todas as magias a mais

bela é aquela dos pobres amedrontados que, de repente, se

esquecem da intimidação das fardas e das armas, livram-se do medo,

e passam a obedecer somente à voz interior da sua verdade que um

gesto de amor fez acordar.

Foi isto que vi acontecer no rosto dos mais humilhados e mais

pobres de todos os indianos, aqueles camponeses que plantavam

índigo, para os seus dominadores, na região do Champaran.

Parece tão difícil acreditar no poder da vida. Tudo conspira

contra ela. Há os governos poderosos, a força das organizações

econômicas, o mal presente nas maiorias cruéis e nas minorias

militantes, e o átomo que agora pode destruir todas as coisas...

Como é possível que os homens mantenham a sua paz interior e se

sintam exteriormente tranqüilos, como podem eles conservar-se

honestos, livres, verdadeiros para consigo mesmos, em face de

todos os golpes que são desferidos contra eles? Muitos se agacham e

se submetem. A vida se encolhe cada vez mais. E é isto que abre as

portas ao totalitarismo. Se o indivíduo não estiver disposto a

defender-se contra os abusos do poder, a liberdade está condenada.

Alguns se enganam e pensam que o problema é exterior,

apenas: abertas as portas das gaiolas, os pássaros voarão. Ignoram

que os pássaros também constroem gaiolas para si mesmos, por

medo das alturas. A liberdade dá calafrios... Somos nossos próprios

carcereiros. Foi Tagore quem disse isto da forma mais dolorosa:

- Prisioneiro, dize-me, quem foi que fez esta inquebrável

corrente que te prende?

- Fui eu - disse o prisioneiro - quem forjou, com cuidado, esta

corrente...

Minha luta não era só para expulsar a morte. Queria trazer a

vida de volta...

Vejo que o fogo está mais forte. Vai-se o meu corpo. Vão ficar

as estórias que dele se contarão. Fantasias, memórias que o amor

preservou... Houve um tempo em que eu mesmo me dediquei a

escrever minhas memórias. Logo percebi as limitações desta

empresa, sob um ponto de vista histórico. Não é possível registrar

todas as lembranças.

Quem poderá decidir acerca do que deve ser dito e do que

pode ser esquecido, no interesse da verdade? Um espírito

esmiuçador que viesse a submeter-se a um interrogatório bem que

poderia terminar por gabar-se de haver revelado o vazio de boa

parte das minhas pretensões. Mas eu não coloquei minhas memórias

no papel por amor à ciência histórica. O que eu desejava era

simplesmente relatar minhas experiências com a verdade, a fim de

proporcionar aos meus companheiros de lutas um meio de

reconforto e um alimento para as suas meditações. Por oposição aos

ocidentais, que tendem somente a respeitar a face externa da vida,

que todos podem comprovar, e a que dão o nome de ciência, eu me

interessava por relatar aquilo que vivi, no domínio espiritual: sou o

único a saber destas coisas e é nelas que reside a medida da

influência de que disponho na política. É a isto que dou o nome de

verdade: algo que cresce de dentro, que não se pode ensinar, mas

apenas sugerir e invocar, por meio de gestos de amor... Ao escrever,

eu me via como alguém que oferece uma fruta ao faminto, um

pouco de água ao que caminha.

Lembro-me de coisas de minha infância. Não gostava muito

de ler. Se estudava era porque este era o meu dever e porque temia a

vergonha da repreensão dos professores.

Um dia, nem sei direito como isto aconteceu, vi, entre as

coisas de meu pai, o livro Shravana PitribhaktiNâtaka, uma peça de

teatro que contava a lealdade de Shravana para com os seus pais. O

triste choro dos pais diante do filho morto nunca me deixou. Está

vivo em mim. Coisa semelhante aconteceu com outra peça,

Harischandra, a que meu pai me permitiu assistir. Ela ganhou o meu

coração e voltei ao espetáculo, vez após outra. E eu me perguntava:

“Por que é que todo o mundo não é também leal e fiel como Harischandra?”

Procurar a verdade e sofrer tudo por ela, isto foi desejo que a peça

despertou dentro de mim. Naquele tempo acreditava piamente em

tais estórias, ao pé da letra. Hoje sei que eram poemas, construções

do amor. Mas isto em nada diminuiu o seu fascínio e o seu poder.

Continuam a ser realidades vivas que despertam emoções que nunca

se acabam e sempre se repetem. Agora eu me pergunto se não é

justamente aqui que se encontra a sua verdade, apesar de nunca

terem acontecido: elas exprimem a verdade interior que não é só

minha, mas que vive, de uma forma ou de outra, em todas as

pessoas. E foi pensando um pouco nisto que me pus a escrever

minhas memórias, com a intenção de tirar delas aquelas coisas que

me deram coragem e me fizeram sorrir, para partilhar com os

outros, que caminham juntos...

Mas ninguém é só bondade. A luz deixa sempre certos lugares

de sombra. Nem todas as coisas são ditas. Há silêncios. Penso na

minha mulher e nos meus filhos. Talvez eu tenha querido ser o pai

de todos e por isto não pude ser o pai que meus filhos desejariam

que eu fosse, nem ser o esposo para o qual Casturbai foi preparada.

Quem deseja se casar com uma causa e ser pai de multidões,

não deveria casar-se com uma mulher e gerar filhos. Mas a escolha

não foi minha. Fui casado, criança, sem nada saber, tinha apenas

treze anos de idade. Era assim que diziam as tradições da nossa

gente. Muitas vezes senti a tristeza no rosto da minha mulher e a

perplexidade no olhar dos meus filhos. Por que é que eles tinham de

ser diferentes? Por que é que tinham de se submeter a uma vida que

não fora escolha sua? Mas eu era prisioneiro de uma voz interior que

me impelia numa direção diferente. Parece-me que existe algo

semelhante nos textos sagrados dos cristãos, algo mais ou menos

assim: que quem quiser seguir a verdade deve abandonar todas as

coisas - pai, mãe, mulher, filhos, segurança, bens materiais...

Quero dizer para os outros a minha verdade, na medida em

que eu a repito para mim mesmo. Muitos falaram sobre mim, como

se eu fosse um político astuto, político ingênuo, político equivocado.

Mas eu nunca quis entender de política. Só quis entender da

bondade e dos seus caminhos. A política foi uma conseqüência e

não a inspiração, da mesma forma que o calor é uma simples

conseqüência do fogo e não a sua origem. Eu teria feito as mesmas

coisas, ainda que não houvesse conseqüência alguma. Pelo menos é

isto que me diz a minha voz interior.

Foi assim que fui ficando cada vez mais longe do Ocidente, até

ser quase motivo de riso. Um dos seus líderes políticos mais

extraordinários, Churchill, me chamava de “faquir seminu”. Ele não

podia ver o mundo com os meus olhos. Parece que os ocidentais

não acreditam que os homens sejam naturalmente bons e belos,

lugares onde a vida cresce. É por isso que se tornaram especialistas

em meios de coerção e sabem usar o dinheiro e os fuzis como

ninguém mais... É por isso que estão sempre tentando melhorar os

homens por meio de adições: a comida em excesso, a roupa

desnecessária, a velocidade da máquina, a complicação da vida...

Tentei seguir o caminho inverso: despojar-me de tudo para

que a verdade apareça. É somente assim que se vê Deus, porque

Deus é verdade, esta voz que vive dentro de cada um. Cultivei,

acima de tudo, meus momentos de oração e meditação: às 4h30 da

manhã, e entre 5 e 6 da tarde. Para mim não havia nada mais

importante que isto.

Antes que o gesto seja feito é necessário ouvir o que a

verdade está dizendo.

Sempre acreditei que no fundo dos homens existe algo de

bom. Como poderia eu odiar qualquer pessoa, mesmo os que me

tinham por inimigo? Dirão que não é assim. Há a crueldade, o ódio,

a morte... Será que algumas gotas de água suja serão capazes de

poluir o oceano inteiro? Que força do mal poderá apagar o divino

que mora em nós? Somos jardins habitados por feras, fontes de água

em meio ao deserto, sorrisos amigos escondidos em rostos

envilecidos pelo medo. A única coisa que desejei era cultivar este

jardim, beber desta água, contemplar estes sorrisos... Não queria

acrescentar coisa alguma. Precisa-se de muito pouca coisa para se ter

paz e harmonia: a alegria vem quando as pessoas bebem de suas

próprias fontes frescas a verdade que nelas mora. Esta verdade, o

segredo da vida, é uma enorme e obstinada mansidão, que não recua

nunca, e corre sempre, irresistível, sem revidar, como o rio...

Ah! Quase que me esquecia: os mortos não podem falar. É

alguém que fala em meu lugar, que tentou ouvir e procurou colher

as coisas que eu mesmo colheria, se pudesse.

É preciso que a imaginação voe no cheiro de sândalo e no

brilho do fogo. Antes que tudo se acabe...

Capítulo 2

Origens

Nasci muito longe do mundo. Porbandar, cidade pequena que

me parecia enorme, à beira do mar da Arábia. Diziam-me que aquilo

era a Índia, mas eu não entendia. Quem mora a vida inteira nas

montanhas não sabe o que são montanhas. Só irá aprender quando

estiver nas planícies e vier então aquela imensa saudade... Assim era

aquele pequeno nosso mundo, fora do mundo. Distantes de todas as

rotas do comércio, das notícias, dos jornais, das viagens, vivíamos a

nossa própria vida e pensávamos que o mundo inteiro deveria ser

mais ou menos daquele jeito. Por que desejar algo melhor?

Nasci no dia 2 de outubro de 1869. Meu pai, Kaba Gandhi,

casou-se quatro vezes, e três vezes a morte o deixou sozinho. Minha

mãe, Putlibaa, teve uma filha e três filhos. Eu fui o último filho da

última esposa. Parece que os pais olham o filho depois do qual não

haverá outro com um carinho especial. Ali está sua última semente...

Deram-me o nome de Mohandas Karamchand Gandhi. Meu

último nome continha um destino, os limites entre os quais a

tradição me obrigava a viver até a minha morte, Índia, mundo em

que os homens são separados em prateleiras, castas, que correm

paralelas, umas às outras, como se fossem trilhos de trem, sem

nunca se encontrarem. Gandhi, nome que pertence à casta Baniia.

Em sua origem trabalhavam com especiarias. Depois meus

antepassados se destacaram nas coisas públicas e subiram na

política, sendo, muitos deles, governadores de províncias da

península onde vivíamos, Catiavar.

Meu pai não soube ficar rico. Sua morte iria nos deixar pobres.

Nada sabia dos livros. Ignorava completamente a história e a

geografia. Dele não saíam estórias de outros mundos e outras

terras... Mas era sábio ao lidar com as pessoas. Mais tarde nos

mudamos para uma outra cidadezinha próxima, Rajcot. Foi ali que

aprendi a tolerância para com todos os ramos do hinduísmo e

religiões irmãs. Meus pais iam, com absoluta tranqüilidade, não só

aos templos vichnuítas a que estavam ligados, como também aos

templos de Shiva e de Rama. Nossa casa era também lugar de

hospedagem obrigatória para os monges jainistas, religião tão antiga

quanto o budismo.

Não há ninguém que se assemelhe a eles no respeito e amor a

todas as coisas vivas. Quem se importaria com a vida de um

mosquito? Eles se importam. E até usam cobrir suas bocas com

gazes, para que não venham a engolir e a matar um pobre e quase

invisível bichinho voador... Meu pai tinha também amigos

muçulmanos e parses, que lhe falavam de sua religião. E eu me

lembro muito bem de seu interesse e do seu respeito. Ouvia e

perguntava. Desejava aprender. O que se sentia era que todos nós,

de religiões diferentes, estávamos em busca de uma mesma verdade.

Olhando-se uma mesma flor, um nota o perfume, outro a cor, um

outro o delicado formato das pétalas...

As diferenças se uniam como expressões de um mesmo

amor... Somente os cristãos me causavam antipatia. Lembro-me dos

missionários, nas esquinas, pregando a verdade que só eles tinham, e

desavergonhadamente nos acusando a todos de estarmos no erro.

Parecia-me que, para ser cristão, era necessário ter vergonha da

Índia: destruir a vida, matar para comer, vestir roupas que nos eram

estranhas. E eles bebiam bebidas alcoólicas...

De meu pai tenho uma experiência que preciso relatar, pois

me acompanhou pelo resto da vida. Quando eu tinha 12 ou 13 anos

um tio fumante me ensinou a fumar. A princípio, dava umas

baforadas com os tocos de cigarros que catava. Depois fiquei mais

exigente. Acontece que eu não tinha dinheiro. Passei a furtar

dinheiro dos bolsos dos empregados da casa para comprar cigarros.

Depois, já mais velho, roubei de novo. Eu tinha uma dívida a pagar,

não tinha dinheiro, e um amigo meu tinha um bracelete de ouro do

qual era fácil arrancar uma peça. Foi o que fiz. Paguei a dívida. Mas

passei a sofrer atrozmente pelo meu ato. Não podia dormir. Não

tinha um momento de paz. Resolvi confessar tudo ao meu pai. Mas

eu não tinha coragem para falar. Escrevi tudo num papel que lhe

entreguei pessoalmente. Minha mão tremia. Meu pai estava doente,

de cama, que era uma simples prancha de madeira. Leu o papel sem

perder uma linha, e as lágrimas brilharam, deslizando sobre as suas

faces e molhando a folha. Fechou os olhos, um instante, para

refletir. Depois rasgou o pedaço de papel. Ele havia se sentado para

ler. Deitou-se de novo. Eu também chorava. Podia ver que ele sofria

muito. Essas lágrimas de dor e de amor purificaram o meu coração.

Nunca me esqueci: quando se ama, o sofrimento tem um poder

mágico para espantar os sentimentos maus e para acordar os

sentimentos bons. Depois, vida afora, sempre que eu jejuava, era

como se meu pai estivesse ao meu lado, olhando-me com um

sorriso. Agora era eu que tentava ser pai de um povo, oferecendolhes

o meu sofrimento para que eles se purificassem e sorrissem...

Minha mãe era de uma alegria tranqüila e constante. Ela

exalava santidade. Orava antes das refeições. Ia diariamente ao

haveli, templo vichnuíta. E tinha um grande prazer no cumprimento

dos votos que fazia. Certa vez fez o voto de não se alimentar

durante todo o tempo em que o sol estivesse ausente. Era a estação

das chuvas.

O sol aparecia raramente, no meio das nuvens, e logo

desaparecia. Quando o víamos aparecer, corríamos para contar à

nossa mãe. Ela saía, para se certificar. Mas o sol já se fora. “Não

importa” - dizia alegremente

- “Deus não quer que eu coma hoje.” E voltava aos seus afazeres.

Aprendi com ela a beleza desta virtude da equanimidade, os

sentimentos tranqüilos, não perturbados por aquilo que acontece...

E aprendi mais: que a vida pode sorrir mesmo em meio às

abstenções. Só que, para isto, é necessário que haja uma fonte

interior, onde a pessoa se abebera...

Fui um estudante medíocre. Tinha muito medo dos outros

meninos. Por isso fugia deles e me escondia nos livros e nas lições.

Chegava à aula na hora exata e voltava correndo para casa, logo que

ela terminava. Corria para fugir... Não podia pensar que outra pessoa

pudesse querer falar comigo. E tinha medo de que zombassem de

mim. Eu era a morada de muitas emoções estranhas. Sentia-me

fraco e feio. Estes sentimentos me assombravam sob a forma de

medo de fantasmas e espíritos. Quem veio em meu auxílio foi a ama

que cuidava de mim, velha e fiel criada. Sua afeição nunca me

abandonou, até hoje. E ela me contou um segredo: maus espíritos se

expulsam com uma palavra que seja mais forte que eles. E que

palavra mais forte pode existir que o nome de Deus? Ensinou-me

então a repetir o Ram-nam... Meu amor por ela me fez crer na

eficácia do nome divino.

Coisa misteriosa esta, que sejam os outros, a quem amamos,

que nos transmitem e ensinam a eficácia de Deus. Foi graças a ela

que o Ram-nam se tornou, pelo resto de minha vida, um remédio

infalível. Quando a tranqüilidade interior começa a tremer, digo o

nome divino e recupero o acesso às fontes interiores da verdade.

Depois, aquela experiência grotesca. Já disse que eu era fraco e

tinha medo. Aí arranjei um amigo, mais forte e maior que eu, que

me disse que o meu problema era o problema da Índia inteira.

Todos éramos fracos. Todos tínhamos medo. De quem? Dos

dominadores ingleses, intrusos que mandavam em nossa casa. Como

explicar que os ingleses, sendo poucos, podiam cavalgar os indianos,

que eram muitos? É que eles comiam carne. Carne dá coragem para

a alma e força para o corpo. Em parte por causa do meu medo e da

minha timidez, e em parte por sentimentos patrióticos, tomei a

decisão de romper com tudo o que havia aprendido da minha

família: era ali que se encontrava a razão da fraqueza.

Fomos, secretamente como ladrões, para um recanto

escondido, à beira do rio. Foi lá que vi carne pela primeira vez. Tive

nojo. A carne de cabra era dura. Mastiguei e masquei. Mas o passado

já era dono do meu corpo. Não pude engoli-la. À noite sonhei que

uma cabra viva gemia dentro de mim, e eu acordava cheio de

remorsos...

Mas não eram só os sentimentos em relação à cabra. Era a

vergonha de estar mentindo aos meus pais, de estar renunciando às

coisas mais caras que faziam parte da sua vida. Como se eu estivesse

dizendo adeus a eles e ao seu mundo. E foi isto que me fez

abandonar esta experiência grotesca...

Da minha infância e adolescência é preciso contar mais duas

coisas.

Na Índia há um estranho costume: o de fazer com que as

pessoas se casem quando elas ainda são crianças. Creio que

semelhante coisa não se encontra em nenhuma outra parte do

mundo. E eu não consegui nunca entender as razões. Perguntei pela

sabedoria deste ato, mas ninguém pôde me responder. Só

respondiam que era assim que se fazia. E foi desta forma, sem que

eu soubesse ou quisesse, sem que a menina soubesse ou quisesse -

que é que crianças podem saber ou desejar? - que se celebraram os

festejos do nosso casamento.

Seu nome era Casturbai e ela sorria tímida, sem nada saber da

vida que a aguardava. Demo-nos inocentemente as mãos, ante todos

os convivas, e celebramos o ritual dos sete passos, um a um, com

suas palavras e promessas, até que nossos pés fizessem o

movimento final e irrevogável, o sétimo passo, que nos ligou pelo

resto de nossas vidas. Mal sabíamos...

Ela fora criada para ser uma esposa hindu. Como todas as

demais, desejava um lar, filhos, um marido que a protegesse (ela lhe

daria amor, obediência e respeito em troca), uma casa... Mas eu

andei por outros caminhos. E por amor àquilo que me parecia ser a

verdade causei muitos sofrimentos àqueles a quem os costumes me

haviam ligado para sempre.

O outro fato, tristeza que não me abandona, me cobre de

vergonha. Meu pai se encontrava muito doente. Todos os recursos

médicos se haviam esgotado. Sabíamos que a hora fatal se

aproximava. Naquele dia, meu tio, seu irmão, chegara

apressadamente. Os dois se gostavam muito. Eram dez ou onze

horas da noite. Eu me preparava para fazer as massagens que

sempre fazia no meu pai. Mas o meu pensamento se encontrava

longe. Pensava na minha esposa, e o meu corpo queria o prazer.

Quando o meu tio me disse que fosse dormir e que ele cuidaria de

meu pai, não me fiz de rogado. Cheguei ao meu quarto. Casturbai

dormia profundamente. Eu a acordei. Mas ao cabo de uns poucos

minutos o criado nos interrompeu.

- Venha depressa que seu pai está muito mal. Pulei da cama e

saí.

- Que houve? - perguntei.

- Seu pai não existe mais...

Tudo estava acabado. Meus últimos gestos eram irremediáveis.

E ele já não estava vivo, para ouvir o meu pedido de perdão. Se a

paixão bestial não me tivesse cegado, a morte o teria encontrado em

meus braços. E a memória dos seus últimos momentos seria doce

para mim. Aprendi então algo de que nunca mais me esqueci: coisa

estranha, o corpo. Tão belo quando dominado pelo amor, tão

vergonhoso quando possuído por suas próprias paixões...

Ao fim da minha adolescência, os mais experientes, dentre

nossos parentes e amigos, sugeriram que seria muito bom se eu

fosse para a Inglaterra estudar Direito.

Minha mãe não gostou da idéia. Medo de que o filho caçula

não voltasse, medo de que ele se perdesse moralmente, medo de que

ela não mais estivesse viva, para recebê-lo de volta... Não sei. Mas o

peso dos argumentos contrários era muito grande.

E eu desejava ir. Finalmente ela concordou, sob uma

condição: eu deveria fazer um tríplice voto, que haveria de me

proteger. Assim, tive de prometer que não tocaria em vinho, não

tocaria em mulher e não tocaria em carne. Cercado pelas precauções

e pelas esperanças dos que me amavam, parti finalmente. Meu navio

deixou o porto no dia 4 de setembro de 1888. Aquele que sempre

morara nas montanhas sem as conhecer, preparava-se para entrar

nas planícies para então conhecer, de longe, aquilo que os olhos não

mais podiam ver.

Meus sentimentos eram confusos. Eu era um mocinho, nunca

havia deixado a minha terra. Mas o fascínio era grande. Ia morar no

mundo dos dominadores fortes, comedores de carne, que eu

invejava e respeitava. Seus costumes deveriam ser superiores aos

nossos. Se assim não fosse, como explicar que eles nos tivessem

subjugado? Claro, eu deveria me formar em Direito. Mas lá no

fundo desejava tornar-me como um deles. Pretendia voltar como

um gentleman...

Mas logo aquele menino desajeitado apareceu. Comecei a me

sentir ridículo e a temer que os outros rissem de mim. Meu inglês

era muito ruim e não chegava para manter uma conversa. Resolvi

evitar as pessoas, temeroso de que elas falassem comigo. No

refeitório não sabia o que fazer com o garfo, a faca e a colher, pois

nosso costume era comer com os dedos. E, quando vinha o

cardápio, eu não tinha coragem de perguntar sobre os pratos que

levavam carne. Solucionei o problema trancando-me na cabina e

passando a comer os doces e as frutas que levava comigo. Durante a

viagem só usei um terno preto. Guardei o que me parecia mais

elegante para o solene momento do desembarque. E foi trajando o

meu terno de flanela branca que pisei o solo britânico. Mas logo me

ruborizei de vergonha ao perceber que eu era o único vestido

daquela maneira. No hotel em que me hospedei fui logo visitado

pelo dr. Mehta, para quem trouxera uma carta de recomendação. Ele

me recebeu calorosamente. Entusiasmei-me e, no meio da conversa,

comecei distraidamente a brincar com o seu chapéu. Ele me dirigiu

um olhar sério que me fez deter. Mas compreendeu a minha

situação: eu nada sabia do mundo estranho onde acabara de chegar.

E foi então que recebi dele a primeira lição de maneiras européias:

- Não toque em nada que pertença a outro. Não faça

perguntas às pessoas com quem se encontra pela primeira vez. Fale

em voz baixa. Não diga “sim, senhor!” a toda hora e a todo mundo.

Só os subordinados falam dessa maneira...

À medida que ele falava, comecei a sentir vergonha de mim

mesmo e fui-me convencendo de que precisava tornar-me como um

deles. Os ingleses haveriam de respeitar os indianos quando estes

fossem capazes de falar e pensar e vestir e agir como eles...

Iniciou-se então a metamorfose: o indiano ridículo deveria

transformar-se num inglês elegante. Gastei dez libras num terno

comprado numa loja da rua mais elegante de Londres. Pensei que

um chapéu alto e forrado me daria um ar de dignidade e adquiri um.

Escrevi ao meu irmão pedindo que me enviasse uma corrente de

ouro, para o meu relógio. Aprendi a fazer os nós de gravata. E como

os meus cabelos fossem uma ofensa aos cabelos britânicos, lutava

com eles todas as manhãs, durante cerca de dez minutos, com uma

escova, a fim de obrigá-los a assentar. Além disso, para aprimorar

meus modos de gentleman, tomei aulas de dança. O que foi

totalmente inútil, porque meu corpo nunca conseguiu seguir o

ritmo. Mas não desisti. Pensei que a apreciação da música ocidental

seria de importância fundamental em minha nova condição, e que o

caminho para isto seria a aprendizagem de um instrumento.

Comprei um violino. E tomei lições de francês e de dicção.

Mas estes esforços não combinavam com sentimentos que

cresciam dentro de mim. Queria transformar-me num gentleman

para não ser um ridículo e desajeitado indiano.

Logo percebi que não pode existir nada mais ridículo que um

indiano de chapéu alto e tomando lições de dança. Havia uma voz

que falava mais alto: a voz da saudade.

Ela me dizia que o meu corpo podia estar na Inglaterra, mas as

coisas que eu realmente amava estavam muito longe. Meu coração

continuava na Índia. À noite, com freqüência, lembrando-me das

cenas da vida familiar, não conseguia conter as lágrimas. E não havia

ninguém com quem pudesse compartilhar a minha tristeza. A

saudade é algo mágico.

Ela tem o poder de transformar coisas que antes eram banais e

comuns em memórias de encanto: as pequenas vilas, o povo, o

cheiro da terra molhada, os momentos das refeições, das preces, os

rostos dos amigos. Tudo ficou belo e triste. Especialmente a minha

mãe. As coisas feias foram esquecidas. E a Índia se tornou, de

repente, o nome para tudo aquilo que me era caro. De longe

descobri, pela primeira vez, o quanto a amava, o quanto a minha

alma e o meu corpo estavam ligados a tudo aquilo de que me

lembrava, com saudades...

Deixei de lado as coisas tolas a que me havia entregado. Passei

a fazer coisas que tivessem um sentido novo, coisas que me

repetissem que meu lugar não era ali.

Descobri o gosto pelo diferente, pelo efêmero, pelo simples,

pelo marginal... Como se agora eu encontrasse um certo prazer

naquilo que poderia parecer ridículo.

Fiquei sabendo que havia, em Londres, estudantes que viviam

com grande simplicidade, um deles num quarteirão de casebres.

Resolvi abandonar o apartamento em que vivia e me mudei para um

quarto. Comprei um fogareiro e passei a fazer o meu desjejum e o

meu jantar: aveia e chocolate. O almoço, tomava-o num restaurante

vegetariano.

Caminhava de dez a quinze quilômetros por dia, hábito que

conservei pelo resto de minha vida. Filiei-me à sociedade vegetariana

e comecei a fazer pesquisas sobre a dieta ideal para uma vida longa,

saudável e tranqüila. Compreendi que é necessário comer para viver

e não comer para ter prazer. Há prazeres que são doces na língua

mas amargos no corpo.

Além disso, recebi a minha primeira lição de humor, que me

foi de valor inestimável. Foi uma bondosa senhora que me ensinou.

Ela me havia recebido em sua casa, várias vezes, mas eu não tive

coragem suficiente para dizer que eu era casado. E uma jovem que

vivia com ela evidentemente pensava que eu fosse solteiro. Isto foime

fazendo mal, como se eu estivesse dizendo uma mentira.

Resolvi, portanto, escrever-lhe uma carta contando tudo. Ela me

respondeu de maneira generosa e amiga:

“Tenho em mãos a sua carta. Causou-nos alegria e rimos muito ao lê-la.

Nós o esperamos sem falta no próximo domingo, na certeza de que nos fará a

narração completa do seu casamento de criança e de que teremos prazer de rir à

sua custa”.

Aprendi então que a melhor maneira de afugentar o ridículo é

ser o primeiro a rir.

E, por estranho que pareça, foi durante estes anos de saudade

que vim a conhecer o Bhagavad-Gita, poema religioso sânscrito que

eu nunca havia lido nem em sânscrito nem em gujrati, minha própria

língua. Estas palavras do segundo capítulo entraram fundo dentro

de mim:

“Se o homem põe a sua atenção nos objetos dos sentidos,

sente-se por eles atraído.

Da atração nasce o desejo;

do desejo a perturbação dos sentimentos;

da perturbação dos sentimentos o erro;

do erro a confusão do pensamento e a ruína da razão;

e da ruína da razão nasce a morte”.

Que livro precioso, início do aprendizado da verdade. Nas

horas de abatimento, vida afora, foi sempre dele que me veio o

auxílio...

Finalmente passei meus exames. Chegaram ao fim os anos de

exílio. A saudade iria reencontrar as coisas com que sonhara. Meu

navio partiu no dia 12 de junho de 1891.

Em breve veria de novo a Índia. E reencontraria a minha mãe.

Cronologia

1869 - Dia 2 de outubro. Nasce em Porbandar, pequena

cidade à beira-mar na Índia.

1883 - Casa-se, aos 13 anos de idade, com Casturbai.

1885 - Morre o seu pai, Karamchand Gandhi.

1888 - Dia 4 de setembro. Embarca para a Inglaterra.

1891 - Regressa à Índia, após diplomar-se em Direito. Sua mãe

morrera durante sua ausência.

1893 - Vai para a África do Sul, onde permanecerá até 1915.

1896 - Regressa à Índia para buscar esposa e filhos. Ao

retornar à África do Sul sofre atentado de linchamento.

1898 - Participa, como enfermeiro, da guerra contra os bóeres.

1907 - Recusa ao registro compulsório. É preso.

1908 - Queima dos certificados de registro.

1909-10 - Correspondência com Tolstoi.

1909 - Viagem à Inglaterra.

1909 - Organiza a comunidade rural “Tolstoi”.

1913 - Marcha para a fazenda “Tolstoi”. Prisão.

1914 - Acordo com o governo da África do Sul.

1915 - Regressa à Índia.

1917 - Vive com os camponeses plantadores de indigueiros.

1919 - Lei Rawlatt, anti-subversão. Atos de violência do

governo.

1919 - Organiza um hartal (greve nacional).

1919 - 13 de abril. Massacre de Amristar.

1920 - Devolve ao governo medalhas anteriormente recebidas.

1921-22 - Mais de 10 mil indianos encarcerados por motivos

políticos.

1921 - Condenado a seis anos de prisão.

1924 - Jejum, em prol da amizade hindu-muçulmana.

1925-29 - Anos de estagnação política.

1930 - Marcha do sal. Início: dia 12 de março. Término: dia 6

de abril.

1930 - 4 de maio. É preso.

1931 - Visita à Inglaterra. É recebido pelo rei.

1931 - É preso, após sua volta.

1932 - Jejum contra o estabelecimento de um eleitorado

separado para os intocáveis.

1934-39 - Dedica-se à fiação, educação básica, difusão de

línguas nativas, estudo sobre dietética, cura natural, luta pelos

intocáveis.

1942 - Campanha de desobediência civil a favor da autonomia

política da Índia. É preso. A violência explode. O governo culpa

Gandhi. Este, profundamente ferido, jejua por três semanas.

1944 - Dia 22 de fevereiro. Morre Casturbai.

1945 - Fim da 2ª Guerra.

1946 - Início das conversações para a emancipação da Índia.

Violências entre hindus e muçulmanos. Viagem de pacificação.

1947 - Dia 15 de junho. O congresso aprova a divisão da Índia

em 2 países, Índia (hindu) e Paquistão (muçulmano).

1947 - Dia 15 de agosto. Independência.

1947 - Distúrbios e violência.

1947 - Dia 31 de agosto. Gandhi é quase agredido por hindus.

Jejum pela amizade hindu-muçulmana.

1948 - Dia 13 de janeiro. Inicia seu último jejum, até o dia 18.

1948 - Dia 30 de janeiro. É assassinado.

Capítulo 3

Humilhações

Quando o navio atracou, eu não tinha idéia das tristezas

que me esperavam. Primeiro foi a minha mãe.Ela já não estava viva .

Havia morrido. Meu irmão escondera a notícia para poupar-me um

sofrimento solitário, distante e desnecessário. É mais leve sofrer na

companhia dos que nos são queridos. A sua morte foi experiência

muito dura porque eu morria de desejo de vê-la de novo. Sofri

muito mais que por ocasião da morte do meu pai. Quase todas as

minhas esperanças mais queridas estavam liquidadas. De repente a

Índia se transformou no lugar de uma ausência... Nunca mais...

Depois, o meu fracasso como advogado. Meu irmão me

aguardava com grande ansiedade. Chegou mesmo a arranjar a casa,

para que tivesse um ar inglês... Eu havia significado um pesado

investimento e agora ele tinha idéias de riqueza, de renome, de

celebridade. Já me imaginava como advogado, tendo uma numerosa

clientela ao meu redor...

Mas minha primeira experiência foi um desastre. Na hora de

contra-interrogar a testemunha, minha cabeça ficou oca e minha

impressão era a de que a sala toda estava rodando. Não fui capaz de

fazer uma única pergunta. Assentei-me e pedi que um outro

advogado que ali se encontrava assumisse o caso. Ele o fez e

embolsou meus honorários.

Saí do tribunal, coberto de vergonha. Parecia que o mundo

inteiro estava se rindo de mim. E quem seria louco, dali para frente,

de entregar uma causa a um advogado que não conseguia falar?

Depois, a sofrida descoberta de que a Índia com que eu

sonhara era, realmente, um sonho... Quando a saudade é muita, a

imaginação, para consolar-se, escolhe os fragmentos alegres e

risonhos do passado. Tudo fica transfigurado, luminoso, puro. Foi

isto que aconteceu comigo. Por três anos me alimentara de

lembranças que a imaginação escolhera e em que eu, ingenuamente,

acreditara. Pensava que a Índia era daquele jeito. Chegara finalmente

o momento da verdade. A tristeza. Agora, olhando para trás,

percebo que a minha vida inteira foi um esforço para reencontrar a

Índia com que sonhei, como se ela estivesse adormecida no meio

daqueles cacos-fragmentos, sob o feitiço de algum espírito mau, e eu

pudesse, com meus gestos poéticos, acordá-la do seu torpor.

Naquele tempo eu não percebia ainda, e muitas humilhações seriam

necessárias para que compreendesse.

Eu sempre tivera o maior respeito pelo Império Britânico,

nosso dominador. Tanto que desejei ser um gentleman... Mas nunca,

na Índia, havia me encontrado face a face com um dos seus agentes.

Acontece que meu irmão viu-se diante de um sério problema. Foi

acusado de conduta irresponsável quando ocupava um cargo

público. Ele estava com medo e sabia que a questão, mais cedo ou

mais tarde, iria parar nas mãos do tal agente do império. Por

acidente eu o conhecera pessoalmente, durante meus anos de

estudos na Inglaterra. Meu irmão pensou que tais relações poderiam

ajudar. Eu não entendia a sua lógica. Se meu irmão era inocente,

assim eu pensava, bastava que ele explicasse tudo. Se fosse culpado,

de que valeria a minha intervenção? Ele abanou a cabeça, incrédulo

de que alguém pudesse ser tão inocente:

- Você não conhece esta terra. Aqui só valem as relações...

Muito a contragosto fui fazer o que ele me pediu. O agente do

império me recebeu, e eu comecei a expor o caso, não sem antes lhe

haver lembrado nossas relações cordiais, em outros tempos. Ele

fechou a cara e ficou frio. Insisti.

Ele acabou por perder a paciência e me disse:

- Seu irmão é um intrigante. Não tenho tempo. Se ele deseja

algo, que faça um requerimento. É só. Passe bem.

Permaneci e continuei. Ele ficou furioso.

- Por favor, peço-lhe que me ouça até o final - eu lhe disse.

Ele ficou ainda mais furioso, chamou seu guarda-costas e

determinou que ele me acompanhasse até a porta. Hesitei por um

momento.

Mas o homem não hesitou. Agarrou-me pelos ombros e me

empurrou para fora da sala.

Parti confuso, humilhado, espumando de raiva. E pensei logo

em me vingar da violência sofrida. Processaria o tal agente do

império. Mas um amigo mais experiente me mandou dizer:

- Você chegou da Inglaterra com o sangue quente. Não

conhece os funcionários britânicos. Se deseja sobreviver, engula o

insulto.

Achei o conselho amargo como veneno. Engoli o insulto. E

aprendi. Não, não aprendi a engolir insultos. Aprendi muito sobre

mim mesmo, sobre a Índia, sobre os seus dominadores. As ilusões

ruíam, uma a uma. Eu estava infeliz e confuso, triste e sem

esperanças...

Imagino que foram sentimentos semelhantes que fizeram com

que meus irmãos indianos tivessem começado a deixar a sua terra,

em busca de coisas melhores. Desde 1860, levas de trabalhadores

viajavam para a África do Sul, a fim de ganhar a vida. Os

dominadores eram os mesmos, tudo era parte do Império Britânico.

E havia demanda de mão-de-obra nas plantações de cana-de-açúcar,

café e chá, lugares que os nativos negros africanos detestavam. Por

modestos que fossem os salários, era melhor que nada. E havia

sempre os comerciantes bem-sucedidos que prosperavam e se

enriqueciam.

Foi uma destas firmas bem-sucedidas que me convidou para

trabalhar em seus escritórios. Eles não necessitavam de um

advogado, mas simplesmente de um funcionário que falasse bem o

inglês e fosse um entendido em questões legais. A minha

insatisfação me empurrava na direção da aventura. Já não tinha

medo do desconhecido. E minha mãe estava morta. Só sentia por

minha mulher e meus dois filhos, que deveriam ficar...

Parti. Abril de 1893. Cheguei ao meu destino, Porto Natal,

também chamado Durban, pelos fins do mês de maio. Do navio

mesmo começou uma descoberta que cada vez mais me

horrorizaria: nós, indianos, estávamos em busca de nossas

esperanças. Mas os dominadores nos tratavam como se fôssemos

animais.

Enquanto o navio atracava e eu olhava as pessoas subirem a

bordo para receber os amigos, observei que não tinham muita

consideração para com os indianos. Até mesmo meu patrão,

comerciante rico, era tratado com desprezo. Tive a impressão de que

ele estava acostumado a isto. No segundo dia após a minha chegada

ele me levou ao tribunal. O juiz olhou-me atentamente e pediu-me

que tirasse o turbante. Recusei-me a fazê-lo e saí do tribunal. Notei

depois que todos nós éramos tratados por um apelido pejorativo,

nome que continha em si uma humilhação, um mau cheiro, uma

sujeira. Éramos chamados daquela forma - coolie - para que

soubéssemos que éramos inferiores e dominados. Era por isso que

não tirar o turbante se tornou questão tão importante para mim:

questão de sobrevivência da dignidade e do respeito próprio.

Debaixo do turbante, um corpo que não se curva... Mas minhas

experiências iriam logo se tornar mais dolorosas. Foi numa viagem

de trem de Durban para Pretória, para tratar de negócios da firma.

Compraram-me um bilhete de primeira classe. Logo depois das

nove horas da noite apareceu um passageiro que me examinou de

alto a baixo. Percebeu que eu era um “homem de cor”. Ele não

escondeu sua repugnância. Saiu e voltou com um funcionário.

- Seu lugar é na segunda classe. Siga-me.

- Mas eu tenho bilhete de primeira classe.

- Pouco importa. Já lhe disse que seu lugar é na segunda.

- Em Durban me deixaram entrar neste compartimento.

Ninguém me fará sair daqui - afirmei.

- Pois eu lhe digo o que vou fazer. Chamarei a polícia, que o

tirará à força.

- Então chame a polícia - eu disse. - Não sairei

voluntariamente.

Veio um policial. Segurou o meu braço e expulsou-me. Eu e

minhas bagagens fomos jogados na plataforma. Recusei-me a entrar

no vagão de segunda. O trem partiu sem mim. Passei a noite na

estação, tiritando de frio, ruminando a humilhação e pensando em

todos os outros que, a fim de ganhar a vida, tinham de engolir

afrontas semelhantes.

Teria eu de fazer o mesmo? Lembrei-me do agente britânico,

na Índia. Fiquei a pensar que o poder deveria deformar as pessoas.

Como se a força as tornasse insensíveis à dignidade dos outros,

especialmente a dos fracos. Os fracos, que poderiam fazer? Destruir

os fortes? Neste caso eles passariam a ocupar o seu lugar, tornandose

igualmente arrogantes e insensíveis. Poderiam os fracos afirmar a

sua dignidade sem se perder, em meio à sua própria luta?

Depois, foi numa viagem de diligência de Charlestown para

Standerton. Os passageiros se acomodaram nos seus lugares. O

branco responsável pelo veículo, julgando-me um coolie, estrangeiro

de cor determinou que eu não me misturasse com os europeus.

Colocou-me num assento fora da diligência. Engoli a injustiça

sem nada dizer.

Três horas depois o tal branco, a quem os outros tratavam por

“chefe” tevê vontade de fumar. Saiu de dentro da diligência, onde

viajava, determinou que eu me sentasse no estribo, para que ele

pudesse sentar-se onde eu me encontrava. A afronta ultrapassara

todos os limites. Tremendo de medo e de cólera, eu lhe disse que

não sairia, a não ser que fosse para me sentar dentro da diligência, o

que era meu direito. Transtornado de ódio, ele pulou sobre mim e

deu-me várias bofetadas com toda a violência. Aí tentou arrancarme

do meu lugar. Mas eu me agarrei com todas as forças, decidido a

não me deixar arrastar, ainda que minhas mãos se quebrassem. Ele

só parou porque os passageiros tiveram pena de mim e interferiram.

Meu coração batia furiosamente e eu me perguntava se chegaria vivo

ao meu destino.

A cada humilhação crescia a minha teimosia. Eu aprendera que

a vida de até mesmo um simples inseto é sagrada e digna de

respeito. Nada me demoveria desta reverência pela vida.

Aquilo que me faltara na Índia surgia agora: uma causa por que

viver. Há gestos simbólicos que fazem brotar sorrisos. Há outros

que provocam a teimosia, a tenacidade, o desejo de lutar até as

últimas conseqüências, ainda que seja a morte. O que estava em jogo

não era eu apenas. Eram meus irmãos indianos. Era a própria Índia,

humilhada.

E, sobretudo, a voz íntima da verdade...

Mas outras humilhações me aguardavam. Logo a seguir

aprendi que eu, um coolie de cor, não tinha o direito de hospedarme

num hotel. Depois, a proibição, imposta a todos como eu, de

não andar nas calçadas ao lado dos brancos. Como se fôssemos

portadores de alguma doença contagiosa e malcheirosa... Os outros

nos olhavam com asco e com cólera. E ainda o fato de não termos

permissão de andar pelas ruas ou mesmo de sair de casa, após as

nove horas da noite, sem uma autorização especial, que só a polícia

poderia dar, a seu bel-prazer. Estávamos nas mãos da polícia, que

tinha todo o poder para dizer “sim” ou “não”.

Depois, aquele homem. Não me esqueci do seu nome:

Balasundaram. Mas antes de contar a estória é preciso explicar um

pouco mais. O tempo havia passado. Eu me havia envolvido no

sofrimento dos indianos e, de alguma forma, coisas que fiz e

palavras que disse contribuíram para que eles se dessem conta da

humilhação em que viviam e compreendessem que a sua vida -

como toda a vida - é sagrada, e se levantassem, com esperança. Por

todos os lados havia uma agitação expressão de que muita coisa que

dormia dentro das pessoas havia acordado. Chegamos mesmo a

fundar uma organização pública de caráter permanente, que teria a

função de exprimir nossos anseios e organizar nossa ação. Foi assim

que o meu nome começou a correr de boca em boca e meus

conhecimentos de Direito começaram a me valer. Nem é necessário

dizer que a antiga timidez evaporara: o sofrimento e o amor são

capazes de abrir a boca dos mudos... Os humilhados vinham a mim

contar as injustiças que lhes faziam. Foi assim que Balasundaram

apareceu no meu escritório.

Esfarrapado, chapéu na mão, dois dentes da frente quebrados,

a boca em sangue, trêmulo, chorando. Agredido brutalmente pelo

patrão. Eu não entendia a sua língua, pois há muitas, na Índia. Ele

falava tâmul, e foi necessário que o meu empregado o interpretasse.

Balasundaram trabalhava sob contrato para um europeu muito

conhecido.

O patrão, num ataque de cólera, espancara-o violentamente, a

ponto de lhe quebrar os dentes.

Como já disse, ele entrara no meu escritório de chapéu na

mão. Este é um detalhe aparentemente insignificante. Mas já lhes

contei do incidente com o turbante. Já se havia imposto a todos os

trabalhadores contratados e a todos os estrangeiros de origem

indiana o hábito de tirar o chapéu na presença de um europeu -

fosse gorro, turbante ou faixa enrolada na cabeça. Nenhum outro

sinal de respeito era suficiente. Assim, o detalhe insignificante era

prova da humilhação que já havia entrado dentro do corpo daquele

homem. Balasundaram pensara que deveria obedecer ao costume,

mesmo diante de mim, filho da mesma Índia. Este gesto me

humilhou. Pedi que ele tornasse a enrolar a sua faixa. Depois de

certa hesitação, ele o fez. E a sua fisionomia iluminou-se de alegria.

Compreendem agora ó que eu queria dizer ao me referir ao poder

dos gestos?

Eu nunca pude entender como é que alguém pode sentir-se

honrado vendo o seu irmão humilhar-se diante dele. Alguma coisa

terrível deve ter acontecido com os seus sentimentos, enterrando a

bondade em buracos muito fundos, dos quais é difícil sair. Talvez

seja isto que a riqueza e o poder fazem com as pessoas. E é por isso

que o meu coração se inclinou para os pobres. Dava-me alegria

misturar-me com eles. Participando da sua humilhação, pude ver

melhor. E não será verdade que é sempre assim? O sofrimento

prepara a alma para a visão de coisas novas. Sofrendo, os olhos

ficam diferentes. E, coisa interessante: quanto mais próximo da

humilhação dos pobres eu me encontrava, tanto mais perto de Deus

eu me sentia. Como se fosse ali, onde a vida aparece desarmada e

indefesa, nada tendo em suas mãos além do desejo de viver, que ela

viceja mais bela... Já a morte cresce ao lado da riqueza e das armas...

Por três anos eu lutei. Os brancos tinham medo. Do medo

nasciam seus preconceitos. E dos preconceitos vinha a violência. Os

indianos tinham medo também. Só que seu medo os tornava

covardes. Todos tiravam o turbante, desciam da calçada, sentavamse

no estribo, viajavam de terceira. Tentei reacender o seu senso de

dignidade.

E quando começaram a caminhar de pé, mais atemorizados

ficaram os europeus... Resolvi que era tempo de voltar à Índia. Já

fazia muito que estava longe de Casturbai e dos meus filhos Harilal e

Manilal. Que pai é este que fica tanto tempo longe? Regressei à

minha Índia em 1896. E lá, o que fiz foi contar das humilhações e

das lutas dos indianos na África do Sul. Na minha volta a natureza

lançou um sinal de advertência. Enfrentamos uma tempestade tão

violenta e tão longa, que todos pensaram que o navio afundaria.

Todos faziam suas preces, esqueciam suas diferenças, e oravam a

um único Deus - muçulmanos, hindus, cristãos... Diante da morte

todos se tornam irmãos... Até mesmo o capitão. Mas a verdadeira

tempestade chegou quando o navio atracou. A população branca

estava enfurecida. Eu já lhes havia causado bastantes problemas no

passado. Depois, a imprensa se havia encarregado de deturpar aquilo

que eu havia dito, na Índia, sobre a África do Sul. E eles pensavam

que eu voltava como um verdadeiro invasor, trazendo comigo

centenas de indianos para continuar a luta. Tudo indicava que eles

estavam decididos a me matar. Um alto funcionário do governo

mandou dizer-me que eu só deveria desembarcar durante a noite, no

escuro. Mas isto era muito vergonhoso e humilhante. Entrar como

um ladrão... Resolvi tomar o risco, com um amigo. Minha mulher e

filhos foram num carro separado, para sua proteção. Eu e Mr.

Laughton fomos a pé. Mal pusemos o pé no cais, alguns jovens me

reconheceram e se puseram a gritar: “Gandhi! Gandhi!” Continuamos

a avançar enquanto a multidão crescia. Até que ficamos

impossibilitados de dar um passo. Os homens ignoraram o meu

amigo e se concentraram em mim. Aí jogaram-me pedras, pedaços

de tijolo, ovos podres. Alguém me arrancou o turbante. Outros

começaram a me dar murros e pontapés. Agarrei-me à grade de

ferro de uma casa, para tomar fôlego. Mas não adiantou. Caíram

sobre mim. Choviam golpes e bofetadas. Foi o acaso que me salvou.

A esposa do chefe de polícia, minha conhecida, passou ali. Ela

avançou, abriu a sua sombrinha como se fosse um escudo, e

colocou-se entre mim e a multidão enlouquecida. Isto tirou-lhes a

coragem. Afinal, sua educação lhes dizia que, se era justo linchar um

coolie, era falta de cavalheirismo ferir uma mulher. Isto, é claro,

aliado ao seu medo da vingança policial...

Teria sido muito mais seguro aceitar as humilhações em

silêncio. Haveria vergonha, mas o corpo correria menos riscos. Mas

eu nunca acreditei que a sobrevivência fosse um valor último. A

vida, para ser bela, deve estar cercada de verdade, de bondade, de

liberdade. Estas são coisas pelas quais vale a pena morrer. Era

porque eu amava a vida, e a amava com muita intensidade, que eu

me arriscava a andar bem próximo da morte... E assim fui vivendo,

próximo da morte, porque gostava de viver.

Capítulo 4

Satyagraha

Escrevi uma prece muito simples que sempre fiz pela manhã,

durante minhas orações. Eu a repetia como um voto, promessa que

eu me obrigava a cumprir. É assim:

“Não terei medo de ninguém sobre a terra.

Temerei apenas a Deus.

Não terei má vontade para com ninguém.

Não aceitarei injustiças de ninguém.

Vencerei a mentira pela verdade,

e na minha resistência à mentira

aceitarei qualquer tipo de sofrimento”.

Aí está o meu caminho, resultado de uma longa busca, em

meio às humilhações. Ah! Como o corpo clama por vingança,

depois da afronta. Senti o seu fascínio, quando a cólera brotava

dentro de mim. Mas era nestas horas que eu ouvia as palavras do

Bhagavad-Gita:

“Da perturbação dos sentimentos vem o erro;

do erro a ruína da razão;

da ruína da razão nasce a morte”.

Você se lembra?

A vingança é doce por um momento, mas o seu fim é amargo.

Acontece que eu desejava a vida.

Quanto tempo se leva para se cortar uma árvore? Uns poucos

minutos e tudo está terminado. Mas, para se sentar à sombra da

árvore que se está plantando, muito tempo terá de passar. Terá de

haver uma longa espera, e paciência. É sempre assim. Os caminhos

da morte são mais rápidos. Por eles andam os que têm pressa. Já os

caminhos da vida são vagarosos. É preciso caminhar na esperança...

Matar o inimigo é muito fácil. Mas transformá-lo num amigo é coisa

difícil e incerta, que requer muita coragem. Posso, pela intimidação,

obrigar que os outros me deixem andar na mesma calçada, viajar no

mesmo trem, hospedar-me no mesmo hotel. Mas ela nada pode

fazer com os olhos. Lá ficam eles, duros e maus, cheios de ódio, à

espreita, na emboscada, aguardando o momento da vingança. Eu

não queria vitórias como esta, que mistura o ódio ao ar que se

respira. Daí a minha prece.

Procurei muito. Desejava encontrar o caminho da verdade. Fui

em busca de outros que tivessem tido luta que se parecesse com a

minha. Escutei, para ver se ouviria vozes que confirmassem aquilo

que ouvia dentro de mim. Não me esquecia nunca de Raichan. Era

um poeta a quem aprendi a amar. Sua pureza, sua transparência, seu

desejo de ver Deus face a face me vinham sempre à memória. Quase

o chamei de guru, meu guia. Como gostaria de me parecer com ele!

Depois Tolstoi e Ruskin, em quem encontrei eco para meus ideais

de vida simples, próxima da terra, atenta à voz interior, resistente às

intromissões do Estado. E descobri, na leitura do Novo

Testamento, as palavras de Jesus: “Bem-aventurados os mansos”, “Se

alguém te ferir na face direita, oferece-lhe também a outra”, “Não acumuleis

tesouros na terra, porque onde estiver o vosso tesouro, aí também estará o vosso

coração”, “Não resistais ao que é mau”...

Um caminho foi se mostrando.

Não poderíamos fazer uso da violência. Isto trairia nossas

convicções mais profundas. Acreditávamos que toda a vida é

sagrada, porque tudo o que vive participa de Deus. E se até mesmo

o mais insignificante grilo, no seu cricri rítmico, é um pulsar da

divindade, não teríamos nós, com muito mais razão, de ter respeito

igual pelos nossos inimigos?

Teríamos de marchar de mãos vazias, indefesos.

Muitos nos consideravam loucos e fanáticos. Caminhávamos

no sentido contrário de tudo e de todos. E, num mundo de

fugitivos, aqueles que caminham na direção inversa parecem estar

fugindo...

Foi isto que o Ocidente nos ensinou: que a violência é eficaz.

E nos ensinou também que as pessoas são coisas brutas, selvagens,

insensíveis à verdade, feras que só escondem suas garras ante a

ameaça da dor, e que só se aliam umas às outras quando concordam

nos mesmos desejos baixos, como o preconceito e a ganância. Não

é precisamente esta a lição dos cassetetes dos policiais e das armas

dos exércitos? Não crêem que os homens sejam belos e bons. E o

mais triste é que seus gestos de violência acabam por trazer à tona

os sentimentos violentos que se escondem neles e em suas vítimas.

Gestos de morte invocam a morte.

Acontece que eu creio em Deus. Deus é vida, generosa e

mansa, Ahimsa, presente em tudo que vive. Teríamos de andar em

sentido contrário. Confiar, quando todos desconfiavam.

Olhar para os fragmentos de bondade, quando todos olhavam

para as evidências da maldade. Este caminho que buscávamos,

alguns o apelidaram de “resistência passiva”.

Mas nada estava mais longe do nosso espírito que a idéia de

passividade. Será que o rio, por não revidar, é passivo? Coisa

estranha: não dispúnhamos de nem uma só palavra para exprimir

nossa busca. Até que uma nova palavra foi inventada por um de

nós: saíyagraha. Ela é composta de duas outras: saí, que significa

“verdade”, e agraha, que quer dizer “firmeza”. “É isso aí”, todos

dissemos. Só queríamos ser obstinadamente firmes na verdade que a

voz interior nos segredava. E se me pedissem para contar, com uma

só palavra, minha vida na África do Sul, seria isto que eu diria:

Satyagraha.

Sei que estão impacientes. Falei demais. E vocês querem ver

estas coisas sobre que falei. É muito simples. Tudo começa no trato

com os indivíduos. Prometi que não teria má vontade para com

ninguém. É que eu estava convencido de que os indivíduos, mesmo

os que nos agrediam, eram inocentes. Eles eram vítimas igualmente

do medo, dos preconceitos que lhes haviam sido incutidos, da

ansiedade pela riqueza. Você já notou como as pessoas ficam

irracionais, no meio da multidão enraivecida? Viram verdadeiras

feras. Mas, quando estão sozinhas, elas são capazes de sentimentos

ternos e chegam a brincar com os velhos e as crianças. Enganamonos

quando confundimos as pessoas com os seus atos. Ninguém é

idêntico àquilo que faz. É só isso que nos permite odiar o pecado e

amar o pecador. Meu pai, chorando, com a minha confissão nas

mãos. Como ele deve ter odiado as coisas indignas que fiz. Mas ele

me amou como nunca... Ele compreendia que eu não era o roubo

que eu havia cometido... Logo depois que a multidão tentou me

matar, ao desembarcar do navio, o secretário de Estado britânico,

informado do ocorrido, determinou de Londres que as autoridades

de Natal processassem os atacantes. Para isto seria necessário que eu

apresentasse uma queixa formal. E isto me teria sido fácil porque

conhecia muitos deles. Mas eu me recusei a aprovar tal medida.

Poderia triunfar e humilhá-los. Mas este não era o meu desejo.

Queria que eles compreendessem que em nós há sentimentos

generosos. Nada fiz. Nada fiz? Claro que fiz. Um gesto que disse

algo... Disse que eles eram diferentes do seu ato vil.

O clima estava tenso. O governo tinha medo, e também a

população branca. Sua situação era difícil. Precisavam do nosso

trabalho, porque isto os enriquecia. Mas detestavam nossa presença.

Foi por isso que sempre nos tentaram manter a distância,

segregados, agachados de medo...

Quando os indianos começaram a se levantar, o seu medo

aumentou. E pensaram então que o remédio para isso seria

aumentar o terror. Para que nos agachássemos de novo.

Os mais pobres, entre os indianos, eram aqueles que vinham

trabalhar sob contrato, por um período de tempo definido.

Terminado o contrato, teriam de voltar. Acontece que com

freqüência eles deitavam raízes na nova terra. Voltar para a Índia,

para começar tudo de novo, da estaca zero, seria muito penoso. E

iam ficando...

O governo resolveu então acabar com esta presença

incômoda. Decretou que os que ficassem teriam de pagar um

pesado imposto, impossível para os pobres. Incapazes de pagar,

teriam de deixar o país.

Depois foi a lei que exigia que todos os homens, mulheres e

crianças com mais de oito anos de idade, indianos, fossem fichados,

impressões digitais tomadas, para controle oficial. Quem não se

submetesse seria multado, preso ou deportado.

Também não podíamos viajar como os brancos. Ficávamos

confinados às províncias onde vivíamos. Cruzar a fronteira da

província do Transvaal era crime que terminava na prisão.

E, por fim, a humilhação desnecessária, a mais indigna de

todas. Foi decretado que somente seriam válidos os casamentos

cristãos. Casturbai, horrorizada, viu-se reduzida à condição de

concubina. E, com ela, todas as esposas indianas, muçulmanas e

parses.

A mão do opressor nos apertava. Já não agüentávamos tanta

humilhação. Fizemos um comício no Teatro Imperial de

Johannesburg. Éramos cerca de 3 mil, havia um clima de vingança

no ar. Todos concordamos em que seria preferível morrer a permitir

que o governo continuasse a nos aviltar daquela maneira. Diríamos a

nossa verdade.

Não temeríamos ninguém e não aceitaríamos injustiça de

ninguém.

O que fazer? Dizer não à lei que nos humilhava. Todos

desobedeceríamos à lei do registro compulsório. Isto parece

estranho? As leis que exprimem a vontade dos fortes, terão elas, por

acaso, o direito de permanecer? Para que a lei seja legítima, é

necessário que receba a aprovação da voz interior. E em todos nós

havia um “não” unãonime.

Lembro-me de outra ocasião. A peste negra estourara numa

das minas de ouro. Ali quase todos os trabalhadores eram negros.

Dos poucos indianos, 23 voltaram para suas casas, doentes, para

morrer. Não havia isolamento. Se ficassem com suas famílias, a

epidemia se espalharia. Foi então que Madanjit, meu companheiro,

ousou quebrar a lei. Encontrou uma casa vazia, arrebentou a

fechadura, apossou-se dela e a transformou numa enfermaria.

Quando a morte está rondando, os direitos de propriedade perdem

o seu sentido. A lei tinha de ser quebrada. Mas agora não mais

lidávamos com a peste negra. A peste era outra, doença do espírito.

Quebramos a lei. Não tivemos medo de ninguém. Fui preso.

As autoridades pensaram que isso enfraqueceria o nosso ânimo. Ao

contrário. A prisão é bela quando se luta pela verdade. Lembrei-me

das palavras do Novo Testamento: “Bem-aventurados os perseguidos por

causa da justiça...”. Nada se alterou com a minha prisão. O governo

resolveu então mudar de tática. Levaram-me, em roupa de

presidiário, à presença do general Smuts. Ele me prometeu que a lei

que humilhava seria revogada se os indianos se registrassem

voluntariamente, apenas para cumprir uma necessidade

administrativa. Achei que isto seria viável. Livremente, sem coação,

estaríamos prontos a cooperar.

Fui solto. Para mim, adepto da satyagraha, era importante

demonstrar confiança na palavra do adversário. Para que ele

soubesse, por este gesto, que eu acreditava que havia coisas boas na

sua pessoa. Por exemplo, que sua palavra era honrada. Era preciso

que se formasse um clima amigo, laços de intimidade e de clara

honestidade.

E cabia a mim fazer o primeiro gesto... Mas, e se ele não

cumprir a palavra? E se isto for apenas um ardil? Preferi correr o

risco. E comigo muitos irmãos que em nós confiavam. Registramonos.

E fomos enganados. O general não cumpriu a sua palavra. E

assim como eu fizera o gesto de confiança, era agora compelido a

cumprir o que a verdade me determinava. Juntamente com mais 2

mil indianos jogamos os nossos certificados de registro dentro de

um caldeirão de parafina fervente, num ato público de protesto. Era

isto que fazíamos com as leis injustas do governo.

A força da lei injusta está em que ela amedronta.

Amedrontados, os homens se separam, cada um por si, tentando a

sobrevivência. E separados eles são subjugados.

Mas quando os homens, movidos pela voz da verdade e pela

pureza do coração, se dão as mãos, a injustiça perece. Resolvemos,

uma vez mais, colocar os nossos corpos justo ali, onde o opressor

era mais violento. Haviam nos proibido passar a fronteira para o

Transvaal. Praticaríamos o ato interditado. Um após o outro, da

mesma forma como aconteceria mais tarde, nas colinas de Darsana,

fomos para a fronteira. Pacificamente. Sabendo que seríamos presos.

Com eles, o meu filho mais velho, Harilal. E eu. Pela verdade,

aceitaríamos qualquer tipo de sofrimento. Três meses de prisão. Para

que eles soubessem que éramos mansos e não precisavam temernos.

E que éramos duros e teimosos e não nos curvaríamos pelo

medo. Alguns receberam oito sentenças, porque bastava que

terminassem uma pena, para que de novo desafiassem a lei...

O tempo passou. A luta continuou. Juntaram-se as mulheres.

As da nossa província, Natal, foram presas. No Transvaal,

entretanto, fizeram outra coisa. Dirigiram-se para as minas de carvão

e sublevaram os mineiros indianos. Entraram em greve. Quando o

patrão humilha o corpo do seu empregado, é justo que ele se recuse

a cooperar.

Não se trata de violência. Nem um só gesto que ferisse, que

machucasse... Apenas a mansa recusa de emprestar o próprio corpo

para a perpetuação da injustiça. Os patrões contra-atacaram.

Cortaram a água e a luz das casas da companhia, onde moravam os

mineiros. Ali, estavam totalmente vulneráveis. Armamos um

acampamento ao ar livre, cerca de 5 mil indianos. Mas o que fazer

para alimentar tal multidão? Os patrões podiam matar-nos de fome.

Resolvemos todos quebrar mais uma vez a lei que proibia passar a

fronteira. Seríamos todos presos. Teríamos, assim, casa, água e

comida. Estranho que a punição da lei possa, às vezes, ser mais

suave que o ódio dos patrões. O governo, percebendo a manobra,

não prendeu os infratores... Resolvemos então empreender uma

longa caminhada com este “exército de paz”, até a fazenda Tolstoi,

lugar que, desde o início da luta, havíamos preparado como abrigo

para os familiares daqueles que estivessem nas prisões. Seriam 240

quilômetros para percorrer em oito dias: homens, mulheres,

crianças.

Fui preso na primeira noite, e posto em liberdade. Preso na

segunda noite, e libertado de novo. Preso na quarta noite. E fiquei.

Mas a marcha continuou. A meio caminho a polícia cercou os

caminhantes e os embarcou à força em trens já preparados, que os

conduziriam de novo às minas, onde ficaram encerrados em

verdadeiros campos de concentração, cercados de arame farpado e

vigiados por guardas armados. Mas ainda assim eles se recusaram a

cooperar com a injustiça. Não desceram às minas. Eram mais de 50

mil em greve, sem falar nos que estavam presos. Sem saber o que

fazer, consciente de que as ameaças e o medo não mais

funcionavam, o governo me libertou e libertou meus companheiros

de luta, Polak e Kallenbach. Esperavam, talvez, que isto acalmasse

os ânimos. Ao mesmo tempo, a fim de apaziguar a indignação de

Londres, o centro do Império, nomeou-se uma comissão

encarregada de apurar as queixas dos indianos. Só que nenhum de

nós, vítimas, se fazia representar. Pedi que a comissão fosse

aumentada, a fim de que houvesse justiça. Mas antevi um novo e

longo período de lutas. Foi então que o meu coração me compeliu a

um novo gesto. Até então me vestira como respeitável cidadão do

mundo ocidental. Numa reunião que tivemos, uma multidão,

compareci vestido com uma blusa de mulher e um lençol enrolado

em meu corpo. Era preciso que nos separássemos dos opressores

nos mínimos detalhes. Nunca mais usei roupas ocidentais. Que eles

soubessem que éramos nós mesmos e que assim desejávamos

permanecer. E planejamos então uma nova marcha, uma nova

quebra da lei, para que fôssemos de novo jogados na prisão.

Foi aí que aconteceu um acidente, coisa não planejada, que

mudou o rumo de tudo. Com a marcha já organizada, os

empregados brancos de todas as estradas de ferro se declararam em

greve. Qualquer político teria sorrido ante golpe tão feliz da sorte.

Dois exércitos são sempre mais fortes que um. O inimigo seria

quebrado ao meio. Mas a Satyagraha me disse coisas diferentes. Que

não seria justo valer-nos da fraqueza do oponente. Não desejávamos

derrotá-lo e humilha-lo. Queríamos que ele sentisse a justiça da

nossa causa e aprendesse a respeitar-nos como seres humanos.

Cancelei a marcha, para espanto de todos... Mas foi justamente isto

que mudou tudo. Sentiram que havia grandeza e bondade no

coração dos indianos, mesmo para com aqueles que os humilhava. E

foi então que o governo me convidou para uma conferência.

Não conseguimos tudo o que desejávamos. Mas os impostos

que pesavam sobre os trabalhadores indianos que não haviam

regressado à Índia ao final do seu contrato foram revogados. Nossos

casamentos foram reconhecidos, em pé de igualdade com os

cristãos. E, o que é mais importante, já não andávamos agachados e

humilhados. Eles nos viam com novos olhos. Nós nos víamos com

novos olhos.

Poderão dizer que os caminhos que escolhemos são lentos, os

frutos tardam e quando amadurecem são poucos. Dirão que o

mundo não é Satyagraha, que a realidade é outra...

Eu só posso responder: Se assim não for, valerá a pena viver?

Quem poderá ter paz de espírito num mundo em que a violência

tem sempre a última palavra? Creio em Deus. E isto me garante que

não pode existir nenhum desejo do coração que, sendo puro em sua

impaciência, não venha, um dia, a ser atendido. Tenho paciência.

Esperarei por esse dia...

Capítulo 5

Um colar

De repente meus pensamentos ficaram confusos. Lembrei-me

de um sonho que me deu grande ansiedade e me fez acordar com o

coração batendo. Só me tranqüilizei quando ouvi o ressonar de

Casturbai... Sonhei que eu estava voltando de Londres. Era o único

no navio. Alguém anunciou que havíamos chegado à Índia. Olhei e

vi um cais totalmente vazio, se não fosse uma única pessoa: minha

mãe. Ela me acenou com um sorriso muito meigo. Desci os degraus

que iam do navio até o cais. Lembro-me de que eram sete. Fui então

até minha mãe, tomei a corrente de ouro do meu relógio e lhe dei.

Tome - eu disse. - “É um presente, para ser usado como um colar.” Então

perguntei por Casturbai e Harilal. Ela ficou muito séria e respondeu:

- Então, seu irmão não lhe contou? Eles estão viajando...

Despertei nesse ponto, angustiado.

Que eu me lembre, nunca dei colar algum à minha mãe. Ao

contrário, foi ela que me deu um, o colar vichnuíta, feito de tulasi, o

manjericão. Manjericão é planta perfumada e sagrada que se guarda

em casa. Suas folhas são usadas nas oferendas rituais, e com a

madeira do seu caule se fazem colares. Nunca me separei dele,

especialmente depois da sua morte. Lembro-me de que este colar foi

motivo de uma delicada discussão com um cristão, Mr. Coates, que

queria me converter a todo custo. Viu o colar no meu pescoço e

tomou-o logo como sinal de crendice.

- Essa espécie de superstição não lhe fica bem. Vamos! Deixe

que eu o destrua...

- De forma alguma - respondi. - Este colar foi minha mãe que

me deu, e ele é sagrado.

- Mas você acredita nele?

- Não compreendo o seu sentido misterioso. Não acredito

que, se não o usar, alguma desgraça me aconteça. Mas não posso,

sem boas razões, desprezar um colar que me foi posto no pescoço

por minha mãe, como um sinal de ternura e na esperança de que ele

me traria felicidade. Quando ele ficar velho, a linha arrebentar e a

madeira acabar, nada colocarei em seu lugar. Nenhum ornamento

encobrirá a ausência daquilo que minha mãe me deu. Nada o

substituirá. Mas como poderia eu deliberadamente destruí-lo, o colar

que é testemunho dos bons desejos de minha mãe, que me

acompanharam mesmo depois de sua morte?

Colar de tulasi... Lembro-me de outra coisa, memória de

juventude. Meu pai usava um no dia de sua morte. Eu estava no

meu quarto, com Casturbai. Já lhes contei sobre a minha vergonha.

Quando ele percebeu que o fim se aproximava rapidamente, pediu

pena e papel, por meio de um gesto, e escreveu para o meu tio:

“- Esteja preparado para os últimos ritos”.

Depois, arrancou do braço o amuleto e do seu pescoço o colar

de manjericão, jogando-os para longe. Em nossa religião, tudo que

toca um morto fica impuro, e deve ser dado àquele que oficia os

rituais fúnebres, na cerimônia da cremação do corpo. Meu pai queria

que nós herdássemos o seu amuleto e o seu colar. Pensou em nós,

no seu último momento. Mas eu estava pensando em prazer...

Ah! Colar que me faz lembrar o amor de minha mãe para

comigo e a minha ausência, na morte de meu pai. Sinto-me culpado.

Eu nunca mais poderia encarnar a lealdade de Shravana e

Harischandra, que me fizera chorar tantas vezes, quando menino.

Já ia me esquecendo. O sonho fez meus pensamentos voarem

por memórias que me pareciam enterradas. Vou retomar o relato...

Coisa curiosa foi a noite em que tive o sonho. Durante o dia tive

uma penosa experiência com Casturbai.

Era o momento da despedida. Preparávamo-nos para voltar à

Índia. Nossos amigos, que ficavam na África do Sul, resolveram

demonstrar o seu carinho. Encheram-nos de presentes. Entre eles,

havia jóias, peças de prata, ouro e mesmo brilhantes. E um colar de

ouro, especialmente para minha mulher.

Acontece que eu não queria nada daquilo. Achava que aquelas

coisas não combinavam com o estilo de vida pobre e despojado que

eu havia adotado. Eu queria dá-los para a causa por que lutara

durante tanto tempo. Casturbai se entristeceu.

- Sei que você não precisa de jóias - disse ela. - E nossos filhos

também não. Eles já aprenderam a aceitar as suas opiniões.

Compreendo também que você possa ter boas razões para não

querer que eu as use. Mas eu gostaria de, um dia, poder dá-las de

presente às minhas noras. Elas ficariam felizes. E quem sabe o que

nos espera amanhã? Não, eu não quero que você dê estas jóias.

Quero ficar com elas.

Mas eu já me havia decidido. Tivemos então uma longa

discussão em que ela não pôde esconder a sua amargura.

- Tenho sofrido, e dia e noite o tenho servido, como se fosse

uma escrava. Fui forçada a aceitar coisas e pessoas que me eram

desagradáveis. Será que as lágrimas de tristeza que derramei por sua

causa não foram suficientes? Não bastou eu me haver reduzido à

condição de criada de todos?

Casturbai sabia muito bem o que ela estava dizendo. Ela me

recriminava por humilhação antiga que lhe impusera. Mas eu estava

irredutível. Doei todas as jóias para um fundo que deveria ser usado

em benefício da comunidade dos trabalhadores indianos que

ficavam.

Não é curioso isto? Que eu tenha sonhado justamente naquela

noite... De dia neguei um colar de ouro a Casturbai. À noite meus

sonhos me fizeram dar um colar de ouro à minha mãe. E no sonho

minha mulher e meu filho não estavam...

“- Então, seu irmão não lhe contou? Eles estão viajando...”

É verdade que meu irmão deixara de me contar algo. Para me

poupar sofrimentos, não me informara da morte de minha mãe.

Vocês já sabem disso. Mas o sonho invertia tudo, mudava os fatos.

Minha mãe aparecia viva, e o meu irmão, como o fizera antes,

continuava a deixar de me contar algo. Só que não era mais com a

minha mãe. Era sobre a viagem da minha mulher e do meu filho...

Foi então que eu acordei com grande angústia.

Tenho a impressão de que há muitas coisas que não vejo com

clareza. Não compreendo bem os sentimentos de Casturbai e dos

meus filhos, Harilal em particular. Mas é necessário começar das

raízes. O casamento, por exemplo...

Sempre achei um crime aquilo que se faz com crianças em

meu país, casando-as antes que elas saibam o que estão fazendo. Isto

é especialmente penoso para a mulher: ela permanece ignorante, e é

o marido, praticamente, o único a ter uma oportunidade de

educação. Ficam então separados por um abismo, moram em

mundos diferentes.

E o marido transforma-se no mestre da esposa. A mulher não

tem escolhas. Sua religião a obriga a uma obediência total. O

marido, por sua vez, pensa ser o dono da sua esposa, que deve

agradá-lo e adulá-lo o tempo todo.

Quando nos mudamos para a África do Sul, eu tive de pensar

em tudo: a roupa que lhes seria mais adequada em sua nova terra, o

regime alimentar que deveriam seguir, as maneiras que seriam

próprias no novo ambiente. Naquela época eu ainda tinha certos

ideais europeus. Obriguei-os, portanto, a usar sapatos. Foi um

sofrimento.

Os sapatos apertavam, faziam calos e bolhas, as meias ficavam

ensopadas de suor e o resultado era que os dedos ficavam em carne

viva.

Impus sapatos apertados à minha família. Às vezes me

pergunto, em silêncio, se eles não me sentiram como se eu fosse um

sapato apertado... Harilal, por exemplo, nunca me perdoou. Ele me

recriminava e eu o recriminava. Seus traços de caráter me pareciam

deploráveis. E ele me acusava... Achava que, com os meus dons,

poderia ter seguido uma carreira política, sem trair meus ideais de

servir aos pobres. Não fiz isto e, além do mais, arrastei-os por

caminhos que não haviam sido uma escolha sua. Eles nunca tiveram

uma educação normal, como todos os demais meninos. Eu, ao

contrário, havia tido as melhores oportunidades. Vivi e me formei

na Inglaterra.

Por que razão deveriam eles ter-me só a mim como seu

professor, nas horas vagas, as lições sendo dadas durante as minhas

caminhadas? Quando Harilal me acusava, eu tinha a impressão

nítida de ver nos seus olhos os olhos de sua mãe. Como se eles

fossem cúmplices. Mas o sonho me perguntou se eu teria o direito

de me queixar...

Porque lá parece que eu sou cúmplice de minha mãe.

Casturbai nunca traiu o ideal da esposa hindu. Foi uma fiel

companheira, andando nas minhas pegadas. Mas eu percebia no seu

rosto uma queixa silenciosa. Como se ela estivesse dizendo que as

coisas poderiam ser mais fáceis se eu fosse menos teimoso, se

pensasse mais na família...

Eu lhes disse de uma humilhação antiga de que ela não se

esqueceu. Vou lhes contar. Minha casa, na África do Sul, era uma

verdadeira pensão. Lá moravam os empregados do meu escritório.

Entre eles havia um descendente de uma família pária, de intocáveis.

No Ocidente não se entende o que seja isto: ser um intocável.

Eles constituem um grupo de pessoas, na Índia, que a sociedade

tradicionalmente segregou e estigmatizou como seres imundos, mais

repelentes que portadores de moléstias contagiosas. Até a sua

sombra causa nojo e é por isso que devem ficar longe de todos, não

lhes sendo permitido nem mesmo se valer das mesmas fontes de

água que os outros usam. Se eles as usassem, as águas já não se

prestariam para ser bebidas.

Isto sempre me horrorizou. Temos caridade para com um

pequeno mosquito, mas tratamos um irmão desta forma indigna.

Por isso eu havia me decidido a lutar contra esta nódoa. Aquele

intocável que morava em minha casa era, para mim, um irmão como

todos os outros.

Mas Casturbai, pobrezinha, não podia entender isso. Ela fora

educada de outra maneira. Não podia evitar o nojo. Acontece que

não havia privadas em nossa casa. Os quartos eram providos com

penicos que tinham de ser esvaziados e lavados diariamente. Eu não

queria que os empregados fizessem serviço tão humilde. Por isso,

Casturbai e eu nos encarregávamos da tarefa. Ela cuidava de boa

vontade dos penicos de todos, mas aquele que era usado pelo

intocável causava-lhe uma repulsa insuportável.

Achava horrível que eu o fizesse e não concordava, ela mesma,

em fazê-lo. Lembro-me dela ainda hoje, a reprovação nos lábios, os

olhos inflamados de cólera, as faces cobertas de lágrimas, pronta a

descer a escada, com aquilo na mão. Mas tal esforço não me bastava.

Eu queria que ela se desincumbisse dessa missão com alegria.

Levantei a voz:

- Não tolerarei essa espécie de estupidez em minha casa! Ela

respondeu, ferida:

- Guarde essa casa para você, e deixe-me ir!

Perdi o sangue-frio e o amor. Segurei-a pelo pulso, arrastei-a

até a grade do portão, e fiz menção de abri-lo, para pô-la fora. As

lágrimas rolaram em suas faces:

- Então, você não se envergonha? Como pode descontrolar-se

a esse ponto? Para onde quer que eu vá? Não tenho pais nem

parentes aqui para receber-me. Pelo fato de ser sua mulher, pensa

que devo suportar que me faça sofrer desse jeito? Contenha-se, por

amor de Deus, e feche esse portão! Que ninguém nos veja

representando esta cena!

Envergonhei-me. Fechei o portão.

Tudo teria sido evitado se as crianças inocentes não tivessem

sido levadas a dar os sete passos irreversíveis. Sinto que uma pessoa

que deseja dedicar-se exclusivamente aos pobres, como eu, não

deveria nunca ter-se casado. Não é isto que diz o Novo Testamento,

livro dos cristãos? Que é necessário deixar pai, mãe, esposa, filhos?

Eu só compreendi isso com clareza quando era um

enfermeiro, em meio a uma guerra suja, dos ingleses contra os

pobres zulus. Lá, naquela solidão, percebi a incompatibilidade das

duas coisas. Naquele momento a minha lealdade estava com os

feridos. Eles eram a minha família. Depois, minha família ficou

sendo a Índia. Como poderia, nestas condições, ser um marido e um

pai como as esposas e os filhos desejam? Compreendi a tristeza de

Casturbai, aceitei a mágoa dos meus filhos. Eles tinham razão. Da

rebelião dos zulus regressei à minha casa resolvido a fazer o voto de

brahmacarya, castidade: abster-me, para o resto de minha vida, dos

prazeres do corpo. Talvez eu estivesse, desta forma, tentando

remediar o erro dos sete passos. Talvez tivesse sido melhor que eu

tivesse permanecido apenas como um filho sem nunca tornar-me

um marido. E pensei mesmo que este fosse o segredo do meu

sonho. Andei os sete degraus na direção da minha mãe e pus no seu

pescoço aquilo que minha esposa havia pedido. Só que ela,

Casturbai, e Harilal, meu filho, haviam viajado. Estavam distantes,

longe do meu mundo...

Capítulo 6

Os saquinhos de anil

Quero começar uma outra estória porque a África do Sul já

ficou para trás. Voltei... Só que eu gostaria de brincar enquanto falo.

Você compreenderá por quê. Tingir a água com um pedacinho de

anil. Veja como ela vai lentamente ganhando cor, desenhos

fantásticos, sempre diferentes, que lembram árvores, nuvens,

cenários de sonhos, tudo naquele azul lindo. Como ele é belo!

Minhas lembranças atendem ao seu fascínio e voltam... Há nele algo

de misterioso. Talvez por ser a cor do céu e a cor do mar, o que nos

faz pensar em imensidões desconhecidas e profundezas que

amedrontam. Desde menino eu via o anil sendo vendido nas feiras,

em saquinhos de pano. Era bom ver o nome do meu país ligado a

uma cor tão bonita. Você já deve ter ouvido este nome muitas vezes:

azul índigo. Por acaso lhe passou pela mente que índigo vem de

Índico, e que Índico quer dizer nascido na Índia? Azul da minha

terra, bonita como o céu, misteriosa como o mar.

Os saquinhos de azul faziam parte das minhas memórias doces

sobre o meu país, e neles eu encontrava uma mistura de rebuliços de

feiras com o encanto da cor. Dentro deles só havia coisas boas.

Era assim que eu imaginava a minha Índia, com olhos

românticos e encantados. E eu pensava conhecê-la. Mas Gokale,

político amigo meu, sabia que não era assim. Sabia mais, que eu era

teimoso e que as minhas idéias só mudavam com a experiência. Ele

me pediu então um favor. Que por um ano eu fechasse a minha

boca, me abstivesse de emitir opiniões sobre qualquer coisa, e que

viajasse, de olhos bem abertos, a fim de aprender.

- Após um ano por aqui - disse-me ele - os seus olhos ficarão

diferentes.

É, muito antes de um ano o azul começaria a se tingir com

cores escuras e tristes. Mas eu não devo apressar o relato. O que não

é muito fácil. Talvez eu devesse me esforçar para dizer as coisas,

umas depois das outras, tal como aconteceram. Mas isto só pode

fazer quem não amou, não lutou, não viveu. Na alma as coisas não

se ajuntam por haverem ocorrido próximas, seja no espaço, seja no

tempo. É a parecença que vale... Falo de prisões, e lá vêm elas,

memórias de lugares diferentes, tempos distantes, e se juntam, fios

de um mesmo tapete. Falo de humilhações e me lembro do oficial

britânico que me expulsou, da noite de espera fria na estação de

estrada de ferro, das bofetadas na diligência. Minhas estórias seguem

o tempo da poesia, que é o tempo do amor... É assim que eu vou

contar.

Viajar pela Índia. Iria de terceira classe. Queria estar com os

pobres e humilhados. Não poderia, de forma alguma, resistir à mais

gentil das tentações que sempre me dominaram: o desejo de servir.

A viagem seria diferente. Porque não haveria um destino que me

aguardasse. Meu destino seria a proximidade com os humildes. E foi

isto que me dilacerou. Porque encontrei uma Índia esquecida da sua

dignidade, que não necessitava da presença do opressor para se

envilecer: prisioneira que fazia suas próprias cadeias. Compreendi a

tristeza de Tagore, que vira a Índia de joelhos, revolvendo o lixo

para viver. Eu vi mais: uma Índia que se acostumara com o lixo. E

juntei-me a ele, num lamento que durou o resto da minha vida.

Índia, que fizeste contigo?

Sei que os opressores te humilharam. Mas, nas minhas

fantasias, cheguei a pensar que bastaria abrir as portas da gaiola para

que o pássaro voasse. Mal sabia eu que ele havia se acostumado aos

buracos, e que preferiria os cantos malcheirosos dos charcos à

aventura do céu aberto. O povo está desfigurado, esquecido das

coisas boas que nele há...

Veja os vagões de terceira classe. Os pobres, desprezados

pelos funcionários e tratados como animais. E eles nem mesmo se

dão conta disso. Acomodam-se nos carros imundos e fedorentos,

como se isso fosse normal. Fugiu-lhes a imaginação. Não podem

pensar que as coisas poderiam ser diferentes, se eles quisessem.

Talvez nem mesmo o queiram... Jogam no chão todo tipo de

porcaria, fumam sem parar, mascam tabaco, cospem e escarram no

chão, gritam e dizem palavrões. Grosseiros, sujos, egoístas: mas não

percebem. Acham que seus atos são naturais. Aqueles que vivem em

meio ao fedor acabam por considerá-lo como perfume... Esquecemse

de toda gentileza e se comportam como se fossem brutos. A

experiência que mais me entristeceu foi uma viagem que fiz de

Lahore a Delhi. No lugar da baldeação, o trem já se encontrava

totalmente tomado. Os mais fortes começaram a subir pelas janelas,

abrindo caminho à força... Eu, um metro e cinqüenta e três

centímetros, perplexo e impotente. Um carregador me ajudou, à

custa de uma gorjeta. A noite foi dolorosa e humilhante. A falta de

solidariedade me cortou. Fiquei de pé, agarrado a um banco,

enquanto os outros dormiam. Mas minha posição os incomodava. E

eles queriam que eu me sentasse no chão imundo e abafado.

Lembro-me de outra viagem entre os pobres, no convés de

um navio. O banheiro era repugnante. As privadas não passavam de

buracos fétidos de escoamento. Para usá-las era necessário enfiar os

pés num verdadeiro rio de urina e excrementos, ou então transpô-lo

com um salto. Dirão que estas são preocupações pequenas demais

para alguém que desejava dar à luz uma nação. Enganam-se. Eu

estava à procura da matéria-prima, dos homens e mulheres que

fariam a Índia. O que encontrei foram apenas fragmentos de futuro

em meio aos escombros do presente. Não, não bastaria que os

ingleses se fossem. Seria necessário reencontrar uma dignidade

perdida, que transformaria as pessoas... Isto era a tarefa penosa e

comprida que eu me propunha realizar...

As privadas sempre me impressionaram. Eu tinha a impressão

de que, de alguma forma, naqueles lugares escondidos se revelava

alguma coisa sobre as pessoas. Já lhes contei que nunca me furtei

aos trabalhos mais humildes, relativos às funções mais repulsivas do

corpo humano. Eu e Casturbai lavávamos penicos... Porque sempre

achei que a limpeza e o seu cheiro bom nos fazem mais felizes.

Como é possível sentir a harmonia da vida se o mau cheiro e a

sujeira nos rodeiam?

Minha primeira experiência na Índia se deu durante minha

breve visita, quando vim da África do Sul, para buscar minha

família.

A peste estourara em Bombaim. Alistei-me como voluntário.

Sugeri que seria importante inspecionar as instalações sanitárias, rua

por rua. Os pobres não se opuseram.

Sua humildade nos cativou. Mas a arrogância dos ricos só

podia ser comparada à sujeira de suas privadas: sombrias, fétidas,

infestadas de excrementos e vermes. Daí nos encaminhamos para o

quarteirão dos intocáveis.

- Os senhores me permitiriam examinar suas privadas? - disse

eu.

- Nós... as latrinas...! exclamaram estupefatos. - Não temos

latrinas. Fazemos tudo ao ar livre. Latrinas são para gente

importante, como o senhor...

- Neste caso, têm alguma objeção a que visitemos suas casas?

- Sejam bem-vindos, senhores. Podem visitar tudo.

Foi a alegria. Entre os mais humildes, um pequeno fragmento

do futuro. Tudo era tão limpo por dentro quanto por fora. Eu os

amei. Pensei que nos lugares sagrados seria diferente. Fui a Benares,

santuário às margens do Ganges. Depois dos banhos cerimoniais fui

ao templo. Decepção. Tinha-se de passar por uma ruela escura e

escorregadia. A paz havia fugido daquele lugar. Havia nuvens de

mosquitos e o alvoroço dos mercadores e dos peregrinos era

intolerável. Procurei a Fonte do Conhecimento, em busca de Deus.

Em vão. E o povo emporcalhava o caminho e as margens

esplêndidas do Ganges. Não hesitavam em sujar as águas sagradas

do rio. Satisfaziam suas necessidades na via pública e na beirada do

rio... Teria sido tão fácil afastar-se um pouco, por amor à discrição e

à beleza...

Mas o mais triste não era isto. Se os mais humildes cheiravam

a sujeira, os das classes superiores tinham o cheiro dos ingleses. Não

falavam suas línguas nativas e se trajavam como eu outrora me

trajara, roupas importadas, cuidadosos com a elegância, distantes

dos pobres, que eles não conheciam... Claro, eles nunca teriam

coragem de andar em carros de terceira classe. E, por isso mesmo,

nem sabiam das dores e das aspirações do povo, nem o povo

acreditava naquilo que eles diziam. Será que era isto que eles

desejavam? Uma Índia que se parecesse com a Inglaterra? Tinham

vergonha de sua mãe e procuravam novos amores: as maneiras

modernas, rápidas e ricas do Ocidente. Eu, de minha parte, amava

as nossas coisas: tradições, aldeias, religião... Eles se alegrariam com

a notícia da morte da própria mãe. Mas eu queria que ela ficasse

jovem e bela. Nossos corações estavam em lugares diferentes.

Me restaria esperar com paciência...

Sim, Índia, que é que fizeste contigo mesma? Os teus filhos

humildes estão sozinhos e os teus filhos que se dizem líderes se

envergonham de ti. Nem mesmo reconhecem os seus irmãos...

Rebanho desgarrado, para onde irá?

Champaran é terra do rei Janaka. Quem a visitar nos dias de

hoje a encontrará verde com plantações de mangueiras. Em outros

tempos não era assim. Nossos pobres já não eram donos das terras

em que moravam. Pertenciam aos dominadores, os ingleses, que

lhes permitiam nelas viver e trabalhar, com uma condição: quinze

por cento da superfície seria usada para o cultivo dos indigueiros, de

onde sai o azul, e toda a sua produção teria de ser entregue aos

donos estrangeiros. Confesso que eu nada sabia sobre isso. Como já

disse, os saquinhos que eram vendidos nas feiras só continham

coisas boas, na minha imaginação. Não sabia dos sofrimentos de

milhões de pessoas misturados no azul... Antes eu só via as coisas

por fora. Aos poucos comecei a prestar mais atenção ao seu “lá

dentro” escondido, às dores e alegrias que as fizeram.

Foi um agricultor pobre e sofrido que veio a mim, pedindo

ajuda.

- Por favor, não estamos longe de Champaran. Venha comigo.

Um dia apenas bastará.

Mas eu não podia. Já tinha compromissos. Mas ele não me

deixava, seguindo-me por onde eu ia, manso e insistente. Disse-lhe

que se encontrasse comigo em Calcutá, numa data futura, para

acertarmos a visita. E me esqueci. Quando cheguei a Calcutá, na

casa onde ficaria, lá estava ele, Rajkumar Shukla. Fui vencido.

Acompanhei-o.

E vi. O que acontecera fora o seguinte: a plantação de

indigueiros havia se tornado um mau negócio. A indústria química

alemã havia descoberto uma alternativa sintética, muito mais barata.

Os donos ingleses ordenaram, então, o fim das plantações. Mas,

para compensar a sua perda, aumentaram o aluguel das terras. Os

camponeses se recusaram a pagar. Os proprietários fizeram uso de

violência: espancamentos, ameaças, invasão das casas, roubo de

gado. Com medo, os pobres agricultores acabaram por concordar.

E a miséria era muito grande. Eu só me dispus a escutar.

Caminhadas, viagens em lombo de elefante, para ver, para estar

presente. Eles precisavam saber que alguém os ouvia, que não

estavam abandonados. E foi crescendo uma relação de amor e

confiança entre nós. Foi assim por um ano inteiro. Eu sentia que

minha principal tarefa era libertá-los do medo. Disse-lhes,

tranquilamente, que me preparava para a prisão, e que também eles

deveriam acostumar-se com a idéia. Porque a associação dos

plantadores dava sinais de inquietação. Acusaram-me de ser um

intruso, metendo-me em assuntos que não me diziam respeito.

Respondi que não era intruso e que tinha perfeitamente o direito de

investigar a condição dos camponeses, se eles assim o desejassem.

Neste ponto a polícia interveio. Como sempre, ao lado dos ricos.

Havia uma determinação judicial para que eu deixasse

imediatamente o Champaran. Eu declarei que desobedeceria a essa

ordem. Fui então intimado a comparecer perante o juiz. Compareci.

Milhares de camponeses se ajuntaram, ao redor do tribunal. Sentiase

o medo das autoridades, sem saber o que fazer. Até a polícia

descobriu-se impotente. Ofereci-me para ajudar. Pedi aos

camponeses, meus irmãos, que mantivessem a calma. E no tribunal

resolvi colocar à prova a força da fraqueza. Levantei-me e declareime

culpado de haver deliberadamente transgredido a lei. Disse-lhes

que sempre respeitara as leis. Mas que havia um limite para tal: o

meu sentimento de dever para com os camponeses.

Assim, em nome de uma lei maior, a verdade que morava em

mim, eu quebrava voluntária e conscientemente a lei, disposto a

sofrer a sentença. O tribunal ficou perplexo.

Diante da minha confissão eu teria de ser condenado. Mas as

autoridades sentiam o peso daquela presença de milhares de

camponeses... Eles já não tinham medo. Aprenderam que é possível

ficar de pé perante o opressor. O juiz adiou a sentença, deixando-me

em liberdade. Até que o caso foi encerrado, por ordens superiores.

E os camponeses tiveram seus direitos reconhecidos. Esta

permanência em Champaran foi um dos acontecimentos

inesquecíveis da minha vida, momentos mágicos para mim e para os

camponeses.

Não é exagero, é pura verdade, dizer que durante estas

relações com eles eu me encontrei face a face com Deus, a Ahimsa,

a verdade. E senti que neles se encontrava aquilo que de mais belo e

puro existe na Índia. Seriam os meus irmãos. Com eles, gente

humilde, eu tentaria construir o futuro.

Ali continuou o meu lamento. Como era possível? Tanta

injustiça... Índia, que foi que fizeram contigo? Eu, que sempre amara

e respeitara as leis do Império Britânico, que sempre o vira como

um poder justo e benevolente, via agora o seu lado invisível e

oculto: a crueldade. Será que o poder pode, em alguma situação, ser

bondoso?

Poderão os ricos, algum dia, amar os pobres? Lembro-me das

palavras de Jesus: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha

que um rico entrar nos céus”. A riqueza embota o espírito. Mas meu

desencanto começara muito antes.

Ainda na África do Sul, eu acompanhava as tropas inglesas,

como enfermeiro. Era a guerra contra os zulus. Guerra? Uns pobres

negros, revoltados contra a opressão, perdidos em solidões imensas.

De quando em quando o estampido de um fuzil inglês, e a imagem

de um corpo tombando morto. Foi ali que meu respeito pelo

Império começou a se apagar. Mas agora, à frente dos pobres

camponeses do Champaran, nada mais restava. Não, não vejo nem

árvores, nem nuvens, nem paisagens do sonho nas formas que o

azul anil desenha na água. Vejo o rosto dos oprimidos...

E vi a Índia assim: um imenso país, milhões de pessoas, sob o

peso da opressão e da vergonha. O ressentimento crescendo. As

explosões de violência. A injustiça gerando o ódio como sua

retribuição, a morte gerando a morte. Os dominadores, convencidos

de que mais medo seria necessário para controlar o ódio. A Lei

Rawlatt, que concedeu ao governo poderes ilimitados para prender e

intimidar. A Índia se transformou num imenso caldeirão em

ebulição. Só se falava em matar e morrer. Parece que todos se

haviam esquecido da vida, da mansidão, da bondade. Que coisa!

Havíamos perdido a nossa alma. A Ahimsa já não nos comovia... E

foi neste clima de pavor que aconteceu a brutalidade suprema: o

massacre de Amristar.

É muito irônico porque este nome, Amristar, foi tirado do

tanque sagrado que o seu fundador, Randas, escavara: Amrita Saras,

a fonte da imortalidade. Em breve o jardim da vida seria

transformado em lugar de morte. Vou explicar. Era o ano de 1919.

O general E. H. Dyer, do exército britânico, assumira o comando no

dia 12 de abril. Imediatamente, ele determinou a proibição total de

todos os tipos de comício e de procissão. Acontece que nem todos

ficaram sabendo disso. E estava programada para o dia seguinte, 13,

uma grande concentração em Jalianuala Bag, uma enorme praça

vazia, cercada por casas e muros, verdadeira armadilha, sem ruas em

número suficiente, que servissem de entrada e saída. E as poucas

existentes eram muito estreitas. O general, de automóvel, seguiu

com suas tropas, que incluíam um carro de combate munido de

metralhadora. Segundo seu próprio depoimento, no trajeto ele

tomou a decisão de matar todos, se possível e necessário fosse.

Haviam desobedecido à lei. Que arcassem com as conseqüências. A

Índia aprenderia uma lição da qual nunca mais se esqueceria. Saberia

de novo quem é que tinha o poder nas mãos. O carro blindado não

pôde chegar ao destino. Era largo demais para a viela. Chegando à

praça, o general dispôs vinte e cinco soldados numa pequena

elevação e outros vinte e cinco no lado oposto. Sem uma única

palavra de advertência ao povo, deu a ordem de fogo. O fogo durou

dez minutos. Foram disparadas 1.650 balas; 379 pessoas foram

mortas; 1.137 ficaram feridas.

Eu sei que, com freqüência, o medo e as tensões levam os

homens à loucura, provocando ações militares insanas como essa. Se

o general Dyer tivesse sido julgado como um doente, teria sido

possível até mesmo perdoar o Império. Mas a Câmara dos Lords,

examinando suas ações, considerou-as perfeitamente justificáveis. O

general salvara o domínio britânico...

Índia, que foi que fizeram contigo? Via o medo misturar-se

com o ódio, e o desejo de vingança que parecia, por momentos, ser

a força mais brutal a se mover dentro das pessoas. Ninguém

percebia que o caminho da felicidade e da dignidade era fácil:

poderia ser trilhado até mesmo por uma criança. Bastaria que as

pessoas ouvissem as coisas boas que jaziam nelas adormecidas e se

dispusessem a seguir o caminho da verdade, a Ahimsa. Faltava

alguém que fizesse os gestos mágicos... Eu teria de fazê-los...

Capítulo 7

A caminhada para o mar

Gosto de ver os casulos de borboletas. Lagartas feias que

adormeceram, esperando a mágica metamorfose. De fora olhamos e

tudo parece imóvel e morto. Lá dentro, entretanto, longe dos olhos

e invisível, a vida amadurece vagarosamente. Chegará o momento

em que ela será grande demais para o invólucro que a contém. E ele

se romperá. Não lhe restará outra alternativa, e a borboleta voará

livre, deixando sua antiga prisão... Voar livre, liberdade:

- Swaraj: era assim que a chamávamos em nossa língua. Palavra

que todos nós dizíamos com doçura e esperança. Mas como eram

diferentes as visões que uma mesma palavra produzia.

A maioria pensava que bastaria o evento político da

emancipação, que com ele um mundo novo se iniciaria, e borboletas

sairiam voando de todas as árvores.

Eu sabia que isto não era verdade. Somos como as borboletas:

a liberdade não é um início, mas o ponto final de um longo processo

de gestação. Não é isto que acontece conosco? Quem será o tolo

que pensará que a criança é gerada na hora do parto? A vida

começou, em silêncio, em momento distante do passado. O

nascimento é apenas o vir à luz, o descobrimento, a revelação

daquilo que havia sido plantado e cresceu.

Não haverá parto se a semente não for plantada, muito tempo

antes...

Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e

silenciosas metamorfoses...

Não haverá Swaraj se a Índia livre e bela não crescer antes do

evento político. O meu medo era que ele chegasse e o casulo só

contivesse uma pupa disforme, sem asas, incapaz de voar. Ah! Se

isso acontecesse, a sua liberdade seria a sua morte... O meu medo

era que chegasse o momento do parto sem que a criança estivesse

pronta, e a esperança se transformasse num aborto. Por isso recuseime

a romper o casulo. Preferi fazer os gestos que, eu pensava,

seriam os gestos de vida, gestos que plantariam sementes, que

acordariam uma verdade interior... Não, não queria que o momento

chegasse enquanto eu entoava o lamento. Queria que ele chegasse

invocado pelos cantos de alegria...

Digo isto para que você possa entender a razão de muitas das

coisas que fiz. Os políticos julgavam-me um pouco estranho. Eu

não fazia as coisas que eles previam que eu iria fazer. Todos, ao falar

de liberdade, pensavam naquele momento de rompimento do

casulo, de rompimento da bolsa no ventre da mãe. Mas eu vivia

muito antes, no momento inicial da vida. O que eu tentei fazer, eu

penso, se parecia mais com a magia e as suas esperanças que com a

política e as suas certezas...

Gestos poéticos que despertem nas pessoas as coisas boas que

nelas estão adormecidas... A liberdade só seria colhida se fosse,

antes, plantada.

Mas a violência é mais atraente que a espera. O ódio aos

ingleses estava presente nos cantos das praças, no interior das casas,

nas conversas dos jovens e velhos e até mesmo no silêncio dos

templos. Pensava-se que o sangue traria a liberdade. Pelo menos a

vingança... O sentimento de urgência que agitava a Índia era

ignorado pelas políticas de adiamento que vinham de Londres.

Nosso povo dizia “agora”. Do outro lado do mundo vinha o eco:

“mais tarde...”.

Se alguém não fizesse um gesto de vida, se eu não fizesse um

gesto de vida, a violência armada iria acontecer. Era o ano de 1930.

Tagore, aflito, me perguntou que é que eu tinha reservado para a

Índia, naquele momento. Creio que ele pensou que eu já tivesse

preparado a minha agenda... Mas eu não tinha idéias. O gesto teria

de ser grande.

Teria de conquistar a Índia inteira. Diante dele as pessoas

deveriam sorrir, perder o medo, ter coragem para ficar de pé e

desafiar o dominador... Isto, na mais completa mansidão.

Satyagraha: a verdade teimosa que vai dizendo e fazendo o bem, e a

verdade que nela mora, a despeito da morte que habita o inimigo.

Até que me veio uma idéia. Eu quebraria a Lei do Sal e faria

com que o povo participasse do meu gesto. A Índia inteira

desobedeceria, como eu. A Índia inteira consideraria o seu desejo de

viver mais sagrado que as leis do Estado, e os seus gestos revelariam

a liberdade que já vivia neles.

O povo entenderia o meu gesto sem que eu precisasse dizer

uma única palavra. Mas os dominadores são um pouco mais

estúpidos. É necessário que as coisas lhes sejam ditas com clareza.

Por isto escrevi uma longa carta ao vice-rei. E isto significava dizer

ao Império Britânico aquilo que eu estava sentindo. Meu gesto não

seria nem secreto nem ambíguo. Seria claro para que, mesmo na

minha transgressão deliberada da lei, a honestidade e a verdade

estivessem presentes. Eis algumas das coisas que lhe disse:

“Caro amigo, antes de iniciar meu ato de desobediência, com todos os

riscos que sempre temi enfrentar durante todos estes anos, quero ter a alegria de

me aproximar de vós para buscar uma saída. As minhas convicções me proíbem

que eu faça sofrer qualquer coisa que tenha vida, e muito menos seres humanos,

ainda que eles tenham causado os maiores sofrimentos a mim e aos meus.

Embora considere o domínio britânico uma maldição, não pretendo prejudicar

um único inglês...

“E por que considero o domínio britânico uma maldição? Ele empobreceu

milhares de criaturas, por meio de um sistema de exploração progressiva, bem

como por meio de uma administração militar e civil ruinosamente dispendiosa,

que o país nunca poderá suportar. Ela corroeu os fundamentos da nossa cultura.

E minha impressão é que nunca houve, por parte do Império Britânico,

qualquer intenção de nos conceder liberdade, num futuro imediato”.

Depois eu lhe disse do nosso ideal de uma Índia independente:

tudo haveria de girar em torno dos seus milhões de camponeses. A

arrecadação fiscal seria revista, para que eles tivessem vida e alegria.

O sistema britânico, ao contrário, foi concebido para arrancar

do camponês a última gota de vida que ainda lhe sobra. Não é isto

que acontece com o imposto que incide sobre o sal? O sal é a única

coisa que o pobre deve comer em maior quantidade que o rico, em

virtude do seu esforço físico. Mas a ganância fiscal dos ingleses

tornou o sal um produto de preço extorsivo, pesado demais para os

ombros dos pobres. Os pobres, de maneira idêntica, enriquecem o

Império pelos impostos que são obrigados a pagar, pelos remédios e

pelas bebidas alcoólicas, o que mina tanto sua moral quanto sua

saúde.

Depois atrevi-me a ser um pouco mais direto:

“Tomai o vosso salário como exemplo. Mais de 21.000 rúpias por mês,

7.000 dólares americanos. Vós estais recebendo mais de 700 rúpias por dia

(233 dólares), enquanto a renda média de um indiano é de cerca de dois anás

por dia (4 centavos de dólar)... E o que digo do salário do vice-rei é verdadeiro

para toda a administração.

“Nada, a não ser a não-violência organizada, pode conter a violência

organizada do Império Britânico. E esta não-violência, em palavras que vós

entendeis, mas a que damos o nome de Satyagraha tenacidade na verdade -, será

concretizada na desobediência civil. No décimo primeiro dia deste mês de março,

com os cooperadores da comunidade de pobreza em que vivo, tomarei a iniciativa

de desrespeitar as determinações da Lei do Sal. Estará em vós impedir a

realização desta minha determinação, mandando-me prender. Espero que haja

dezenas de milhares de pessoas prontas, de modo brando e ordeiro, a fazer a

mesma coisa que eu”.

A notícia correu. A mágica começou. Aqueles que respiravam

ódio e vingança pararam um pouco para ver que novo gesto iria

acontecer... Seriam 370 quilômetros a serem percorridos a pé. Sei

que poderia ter feito a viagem de trem, para chegar ao meu destino.

Teria sido mais rápida. Mas não se pode apressar a borboleta... A

vida cresce devagar, a imaginação acorda aos poucos, os

pensamentos necessitam de tempo... Era preciso dar muito tempo

para que as pessoas pudessem ir tecendo, entre elas, suas redes de

esperança, com as palavras. Com isto, as coisas boas iriam saindo lá

de dentro. Meu gesto não era nada, em si. Fraco e impotente. Seu

poder estaria nas mãos que se juntariam. Eu queria iniciar uma

canção de Swaraj e Satyagraha, e esperava que os outros fossem, aos

poucos, juntando suas vozes, até que a Índia inteira cantasse e os

ouvidos dos opressores estourassem de espanto ante tanta

dignidade.

Partimos daquela comunidade de pobres onde vivíamos, o

Ashram. - Caminhamos em nome de Deus! - afirmei, rezando.

Ah! Que poder estranho contém o nome Rama. Quem poderá

contra a verdade e o amor? Lá íamos como um rio, tranqüilo, sem

nunca reagir, simplesmente sendo rio, irresistível...

Vinte e quatro dias, 18 quilômetros por dia. Eu me ri, vendo

meus companheiros:

- Brincadeira de criança!

Eu tinha 61 anos de idade (o que é isto para quem faz planos

de viver cento e vinte?...) e me havia treinado a vida toda para as

caminhadas...

De aldeia em aldeia, na direção do mar. Como o meu coração

se alegrava! De longe já se via o rebuliço, os meninos encarapitados

no alto das árvores, atalaias encarregados de anunciar a chegada dos

guerreiros sem armas.

- Lá vêm eles! Lá vêm eles! - gritavam, despencando-se a seguir

lá de cima para se juntar ao povo, aqui embaixo.

Eu não queria uma Índia muito diferente disto. As pequenas

aldeias, o trabalho da terra, o artesanato, as mãos fazendo suas

próprias roupas, a tranqüilidade boa das pessoas que amam a vida na

sua simplicidade pobre e vivem em paz, uns com os outros e com

Deus... Não queria um novo amor. A mesma Índia, a mesma

cultura, só que livre do ódio de dentro e da opressão de fora.

Tive muito tempo para pensar, enquanto andava. Lembrei-me

daquela noite, no trem, na África do Sul, quando aprendi sobre o

poder dos gestos poéticos. Nunca mais parei... Mas nunca me havia

atrevido a um gesto deste tamanho, desafio ao leão, perante o

mundo, a Índia inteira seguindo, imaginando, rezando... Na direção

do mar...

Primeiro foi o abandono das roupas ocidentais: gesto de

solidariedade aos mineiros mortos na África do Sul. Dali para a

frente minhas roupas conteriam sempre esta memória. Trajar-me

como um ocidental significava aceitar sua cultura. Mas sua cultura,

por bela que fosse, se construíra com muita dor. A mesma coisa

com o leite das vacas... Não lhes contei? Depois... Já lhes disse que

eu aprendi a ver o invisível. Em cada terno de dez libras comprado

numa rua elegante de Londres há miséria de muitos camponeses.

Era isto que me importava. Daí a roupa simples, tecido grosseiro,

feito em casa...

Fazer os panos para as próprias roupas em casa. Muitos me

disseram que isto era tolice. Seria muito mais barato comprar tecidos

feitos industrialmente pelos japoneses.

Sei disto muito bem. Acontece que o que está em jogo aqui

não é o dinheiro, é a própria alma. Nós, pelos séculos passados,

fomos sempre capazes de produzir os tecidos de que

necessitávamos para nos vestir. Em cada casa havia uma roda de

fiar, em cada casa havia um tear. E as mãos sabiam como fazer...

Tínhamos então Swaraj, liberdade, em relação às nossas

próprias roupas. Auto-suficientes. Não precisávamos de ninguém.

Mas aí vieram os ingleses. Eles produziam quantidades enormes de

tecidos, em suas fábricas mecanizadas. E os tecidos tinham de ser

vendidos. Mas para que fossem vendidos teríamos de ter

necessidade de comprar. Foi por isso que nossa cultura foi

impiedosamente quebrada. Fizeram-nos desaprender o que

sabíamos para que fôssemos forçados a trocar o nosso suor pela

mercadoria que faria ricos os estrangeiros. Foi preciso procurar

muito para encontrar alguém, dentre os velhos, que ainda se

lembrasse das artes de fiar e de tecer. E foi com uma alegria imensa

que me tornei um aprendiz de fiador e de tecelão, e isto passou a

fazer parte da minha disciplina diária de viver. Nem mesmo durante

a caminhada interrompi este hábito. Uma hora por dia, dizendo à

Índia que, se quiséssemos, poderíamos recuperar algo que os

dominadores nos haviam roubado. E eu sabia que me haviam

entendido quando, ao passar pelas aldeias e vilas, as pessoas se

sentavam à beira do caminho, com suas redes, fiando, com seus

teares, tecendo. E eu os abençoava, mãos postas, em silêncio,

invocando o nome de Deus.

Caminhávamos sem cessar, na direção do mar. Muitos dos

meus companheiros se cansavam, seus pés e pernas começavam a

doer. Comentei, com bom humor, a delicadeza e fraqueza da

geração nova, a despeito dos seus hábitos alimentares fartos. Eu me

contentava com pouca coisa, algumas frutas me bastavam. As

estradas eram sujas, o sol era quente, o tempo estava seco, havia

poeira. Os camponeses, com sua bondade, regavam o caminho para

que a poeira assentasse e o ar ficasse mais fresco. E as aldeias

pareciam preparadas para uma festa, enfeitadas com bandeiras da

Índia. Eu sentia a borboleta crescendo, vagarosamente. Coisas muito

bonitas estavam acordando dentro da alma e dos corpos dos pobres.

A canção já era cantada em todo lugar. Eu irão caminhava sozinho.

Todos marchávamos para o grande desafio. Quebraríamos a Lei do

Sal...

Outros gestos me vieram à mente. Lavar as privadas, para que

soubessem que eu não me envergonhava de fazer os trabalhos mais

humildes e que a limpeza era valor sagrado.

Falar a minha língua... Poderia alguém imaginar que falar a

própria língua viesse a ser ato de rebeldia? Pois a opressão até isto

nos havia roubado, o orgulho de falar as línguas que haviam passado

de geração a geração, durante milênios. O silêncio da língua é o

silêncio sobre o próprio passado, como se ele estivesse condenado

ao esquecimento. Todos os líderes políticos, em reuniões

importantes e em suas conversas comuns, usavam o inglês, como se

estivessem dizendo: “Vede, somos dignos da liberdade. Vestimo-nos como

vós, europeus, vos vestis. Falamos a língua que vós, europeus, falais. Certamente

pensamos e sentimos como vós. Podeis confiar em nós”.

Os camponeses, a alma da Índia, escutavam com tristeza e

desesperança. Comecei a falar em minha língua em reuniões

públicas, para espanto dos que haviam se expressado em inglês, e

para a alegria dos ouvintes, que assim viam retornar à arena pública

o espírito da sua cultura. Pois não é através da língua que um povo

se descobre?

E até mesmo perante o vice-rei. Numa conferência por ele

convocada, exprimi-me em hindi-hindustani...

E agora, olhando para este fogo que se apaga - a lenha já se

converteu em brasa -, lembro-me de outras fogueiras, quando pedia

que as pessoas, reunidas em comícios, se despissem de suas roupas

estrangeiras, fizessem com elas um grande monte, e transformassem

tudo numa enorme fogueira. Não, não eram as roupas que estavam

sendo queimadas. Era o próprio Império que ardia numa pira

funerária...

Chegamos ao mar. Era o dia 5 de abril. Como já fosse tarde,

passamos a noite rezando. Depois, bem cedo, de manhã, fui até o

mar para agradecer... Aquele mar sempre fora nosso, sempre nos

dera do seu sal generosa e gratuitamente. Fui lá para dizer que

novamente o recebíamos como irmão. Tomaríamos da sua dádiva

diretamente, sem permitir que ela passasse pelas mãos dos

dominadores. Agradeci porque ele nos ajudava a viver. E me

preparei para a grande transgressão.

A Lei do Sal: nós, indianos, éramos proibidos de possuir sal

que não nos tivesse sido vendido pelo monopólio governamental.

Procurei então, nas areias duras, um lugar onde o sol tivesse

libertado o sal. Tomei-o nas minhas mãos, e o mostrei à multidão

que nos seguia. Alguém gritou:

Salve, libertador!

As lágrimas me vieram aos olhos.

Não, não era um punhado de sal... Isto era o que os olhos

viam. Mas milhões de indianos viam outra coisa: um passado em

que as terras, os rios e os mares nos haviam pertencido.

Invocávamos o passado. Pedíamos que ele retornasse. Era isto o que

eu lhes dizia em silêncio:

- Tomem posse daquilo que lhes pertence.

E o milagre aconteceu. Por toda Índia o medo desapareceu. As

pessoas deixaram de temer o Estado, encorajadas pela verdade que

lhes falava mansamente no seu íntimo, a voz de Deus. E o gesto

solitário se transformou em gestos solidários: panelas, bacias,

recipientes de todos os tipos, invocando o sol e o mar como aliados,

o sal sendo produzido por quem o desejasse, num desrespeito claro

às ordens do opressor. O sal era agora o símbolo da Swaraj. O sinal

estava dado. Restava esperar que a borboleta rompesse o casulo.

Capítulo 8

A reverência pela vida

As borboletas fizeram minha imaginação voar... Pensei no seu

fascínio. Acho que é porque elas são metáforas de esperança. A

lagarta deixa de ser, desaparece da vista, oculta-se aos olhos, e

renasce transfigurada. Quem, ao ver uma borboleta, poderia

imaginar que ela fora um dia uma lagarta? Quem, ao ver uma lagarta,

poderia imaginar que dentro dela se abriga uma coisa bela, que

nascerá quando chegar o tempo? É assim que eu penso sobre a vida,

algo que vai transmigrando, migrando por diferentes formas, através

de silêncios que parecem mortes, como o meu corpo agora,

reduzido a cinzas, para aparecer depois... Agora nada mais sou que

uma crisálida dentro de um casulo...

Depois é a beleza do seu jeito de ser. A fragilidade das asas,

que podem se quebrar ao menor golpe. Indefesas, sem ferrão para

se protegerem. E vão, delicadas, quase pedindo desculpas às flores,

por se alimentarem do seu néctar. Sugam com uma carícia terna.

Para mim, imagens de harmonia e mansidão...

Por fim, há tantas... Diferentes tamanhos, a variedade das

cores, as formas e os desenhos mais surpreendentes. Diante do

casulo fica sempre a pergunta daquele que não sabe da vida que está

lá dentro: como é que ela vai ser?

Diante da Índia, crisálida, eu também imaginava, tinha

esperança. Na verdade, minha vida inteira foi um cultivo da

esperança. Não sei por que recusei-me, com uma teimosia que

frequentemente exasperava os outros, a pensar, a sentir e a agir em

obediência aos fatos do presente. Na Inglaterra queriam me obrigar

a abandonar meus hábitos vegetarianos. Lembro-me que o dr.

Mehta, tão amigo, chegou a ser rude comigo:

- Se você fosse meu irmão, há muito o teria mandado de volta

com as suas bagagens. Que vale um voto pronunciado diante de

uma mãe analfabeta e ignorante das condições de vida que o

esperavam aqui? Sua teimosia lhe será totalmente inútil...

Ele queria que eu abandonasse o meu desejo mais puro e me

ajustasse ao mais prático e mais viável. Mas a minha alegria estava

precisamente na fidelidade a algo que estava ausente.

Depois foi na África do Sul. Meus irmãos indianos já haviam

aprendido a conviver com a opressão. Para sobreviver, resignavamse

a ser lagartas. Mas eu acho que este é um preço muito alto para

continuar vivo. Porque a esperança faz parte da vida, e abandoná-la

é o mesmo que aceitar a morte. Por isso tratei de fazer os

movimentos da borboleta, muito embora tudo nos obrigasse a ser

lagartas. O belo é aquilo que podemos ser. E a esperança é nada

mais que a fidelidade a essa possibilidade que dorme silenciosa em

todos...

O que eu esperava para a Índia era aquela esperança que havia

crescido dentro de mim. E é preciso que eu conte qual era ela, para

evitar enganos, antes que eu me vá, cinzas, nas águas do Jumna. É

que houve muitos que não compreenderam. Só viram com os olhos.

O invisível se lhes escapou. O salto de alegria lhes pareceu salto de

revolta, porque não ouviram a música... Registraram o gesto, mas

não entenderam a esperança. E o sentido do gesto se perdeu.

Já lhes contei: eu queria fazer um poema: eu acreditava no

poder mágico das palavras ditas com amor. Como, entretanto, eu

não era poeta, teria de dizer o meu amor com o meu corpo inteiro...

Olho agora para trás e descubro que poema eu não escrevi. A razão?

Eu tinha muito poucas coisas a dizer. Para ser preciso: uma única

coisa.

Cheguei mesmo a pensar que esta era a essência da pureza: ser

consumido integralmente por um único desejo bom. Assim, passei

minha vida inteira dizendo esta única coisa, repetindo a mesma

esperança. Claro, em cada situação a mesma coisa era dita de forma

diferente.

Num momento recusava-me a tomar leite, noutro momento

proclamava um jejum até a morte... Os ocidentais, por não saberem

da minha esperança, achavam que eu era louco.

Maluquices de um faquir seminu. Às vezes, em ataques de

coragem e lucidez política, vinham os gestos mágicos que

levantavam a Índia inteira e faziam o Império Britânico tremer.

Depois vinha um ataque igualmente imprevisível de esquisitice

doentia, que poderia manifestar-se como proteção à vida das cobras,

lavagem de privadas imundas, uso da terra como remédio ou

comparecer perante o rei e a rainha da Inglaterra, para um chá,

vestido com um lençol e calçado com sandálias... É, eles não

entendiam.

Porque não sabiam do segredo: meu único desejo, minha única

esperança, meu único verso. Posso dizê-lo como um mandamento:

- “Amarás a mais insignificante das criaturas como a ti mesmo”.

- “Quem não fizer isto jamais verá a Deus, face a face”.

Sempre amei profundamente a vida. Não, não era apenas a

minha vida. Era a vida de todas as coisas. Olhar para os animais e as

plantas me enchia de alegria. E eu queria cuidar deles como quem

cuida de algo frágil e precioso. Aí o mandamento cristão do amor

me parecia pouco exigente. Pedia apenas amor ao próximo. Os

cristãos entenderam que este “próximo” se referia só às pessoas

(tanto assim que imaginam que somente elas têm uma alma...). Eu,

ao contrário, penso que todas as coisas que vivem são minhas irmãs.

Elas possuem uma alma. Lagartas que um dia serão borboletas...

Esta idéia de que apenas as pessoas têm alma, eu acho, é

responsável tanto por sua crueldade como pelo seu senso sem

limites de importância. Se os animais não têm uma alma, concluímos

que eles são vazios de qualquer valor sagrado. Estão aí só para nos

dar prazer. Estão aí para serem usados por nós. Então, temos

permissão para matar e destruir. Mas não é isto que explica a

devastação e a morte por onde quer que passe o homem europeu

que se chama de civilizado? Eles se definiram como caçadores; os

que vivem a partir da morte. Mas eu queria que fôssemos pastores

da vida...

O nome deste sentimento


Comentarios

Morrismok  - 25/12/2022

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