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Contos-->Lambendo as feridas -- 05/11/2002 - 15:41 (Hamilton de Lima e Souza) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Foi logo que nasceu. Eulália levou um tapa de sua mãe, Zulmira, irritada por parir mais uma desgraça naquela casa de taipa perdida no sertão de Alagoas. Eulália chorou, mas sentiu algo meio doce espirrando em sua direção e a pequena boca sorveu algo intermediário entre sangue e leite.
Zulmira pariu sozinha na miséria nordestina, cercada por mais oito moleques barrigudos. O marido havia saído para buscar água numa cacimba distante apenas doze quilômetros e deveria voltar em seguida.
Sem que Zulmira soubesse, Agenildo encontrou uma cabra e descarregou o corpo sobre o animal, ansioso que estava de sexo com a prenhez da mulher.
Satisfeito com a cabra voltou para casa e encontrou o miserê todo pronto esperando algo para saciar a fome.
Foi pro quintal e improvisou com o pouco de farinha e água para encher as barrigas. Rogou uma praga na Zulmira, que fingiu não ouvir a reclamação de mais uma boca para sustentar.
Irritado achou um resto de pinga numa cabaça e disse para a mulher se limpar que o resto de placenta(de bucho caído na linguagem cabocla) poderia atrair formigas para a casa.
Zulmira alimentou Eulália(seria este o nome da desgraça, que teve a burrice de nascer mulher no meio da miséria, uma homenagem a mãe de Agenildo).
Zulmira imaginou a menina maior, apanhando, para se vingar do pai, uma besta que todos os dias subia em seu corpo sem pedir licença, sujava as pernas e depois cuspia no chão, amaldiçoando sua feiúra.
Zulmira achou que o destino de Eulália tinha que ser o da punição, já que não morreu no parto e ela não podia matar a filha.
Tantos homens vieram antes, bons para ajudar na roça, auxiliar o pai a ganhar o sustento de cada dia. Que que então os espíritos invejosos dos vizinhos tinham que mandar uma mulher? Será que a cria não sabia que no sertão mulher e bicho tinham o mesmo valor?
Zulmira achava até que bicho era melhor. Já tinha visto Agenildo alisando as cabras e beijando depois do coito. Com ela era só a violência e o cuspe depois do sexo.
Os oito filhos que antes vieram eram todos espertos, sabiam mexer nas coisas do mato e comiam pouco, mesmo porque não havia muito o que comer.
A velha Eulália era ruim, mas ajudou a parir os outros, fazia comida quando tinha e era boa de enxada.
De todo não era tão imprestável. Agora estava tudo mudado.
Teria que cuidar da nova Eulália, frágil, com todos aqueles irmãos com seus pintos, cuidar para não sofrer mal em casa, como ela, que foi mulher aos oito anos num dia em que a mãe foi rezar o terço com as comadres.
O pai bêbado fez a imundiça e ameaçou de morte. Mas também deu duas balas e um copo de pinga para aliviar a dor. Nunca pode contar para ninguém, pois o velho era muito ruim.
A mãe de Zulmira, Carmem, dizia que mulher nasceu para sofrer, desde que Eva tirou Adão do juízo de Deus, e que sina de mulher era parir, servir e chorar, se desse jeito.
Zulmira teve sete irmãs, que morreram antes dos quinze anos. Ela teve mais sorte, podendo casar aos quinze, o que aliviou o trabalho do pai viciado em álcool, e a vida de Carmem, que precisa rezar mais para ganhar o reino dos céus. Carmem achava que tinha culpa do marido ser alcoólatra, e nunca dissera não aos desejos do homem, que possuía todas as filhas na frente dela para saciar o instinto de besta.
Carmem orava por ela e pelo marido, para que ele fosse perdoado por Jesus e ganhasse simpatia de Maria, que era mãe de Deus e entendia mais dessas coisas.
As ladainhas de Carmem embalaram as noites chorosas de Zulmira, que viu no casamento a oportunidade de fugir aos abusos do pai.
Encontrou em Agenildo um homem grosseiro, mas que usava camisa branca e tinha um chapéu de respeito, recomendado por vizinhos no dia em que viu a rapariga lavando roupa com a mãe numa gamela improvisada.
Agenildo deu duas cabras em troca de Zulmira e satisfez os pais que nada mais possuíam senão um casebre todo cheio de goteiras.
II
Foi assim que Eulália veio ao mundo, parida para expiar as culpas.
Não chegou a ser usada pelos irmãos, já que um dia a filha do coronel Pedro passou no portão da propriedade e perguntou se podia levar a menina para criar. Tinha vontade de ter criança e não podia.
Ela também foi atendida. Zulmira não falou nada quando Agenildo assuntou com a moça fina. Agenildo só pediu o direito de usar o riachinho do coronel para tirar água durante uns dez anos pelo menos.
Josefina concordou, pois a proposta da água nada custava. E autorizou os pais da menina a visitar Eulália se um dia quisessem, desde que não contassem prá ela a origem pobre.
III
Zulmira não precisou visitar a filha. Morreu no décimo segundo parto, complicada por febre. Foi picada de cobra quando buscava um objeto no terreiro. Agenildo praguejou com a mulher que morria deixando um monte de filhos tontos para cuidar.
Agradeceu a Deus que pelo menos a cria tinha ido junto, o que facilitava sua vida. Olhou pros outros e pensou que se Eulália tivesse idade podia ser mulher e mãe dos outros. Rogou mais uma praga no destino enquanto buscava um pano para embrulhar os cadáveres.
IV
Eulália, alheia às desgraças do sertão, recebeu educação de qualidade, aprendendo a ler e escrever, chegando aos sete anos como se fosse filha de gente importante.
Josefina não a chamava de Eulália. Aproveitou a falta de documentos e registrou como Maria da Penha, em homenagem a santa que a fez caminhar pela propriedade dos pobres no dia em que Zulmira estava aplicando um corretivo na menina.
Maria da Penha(ex-Eulália), passou a viver como todas as crianças deveriam viver, tendo roupa, educação e comida, principalmente, que era material raro naquele sertão.
Josefina, casada com Amaral, não reclamava de nada desde que conquistara a menina. Estéril, tolerava as escapadas do marido ao bordel de Babinha, mulher experiente, que tinha vivido em São Paulo e dominava os homens de bem da cidade.
Josefina não achava ruim que Amaral frequentasse o bordel da Babinha, e mantinha com ela amizade secreta para saber o que mais agradava ao seu homem.
Babinha era cúmplice do relacionamento estranho para os padrões do lugarejo por saber que uma aliada do porte de Josefina servia aos seus intentos de poder.
Josefina era feliz do seu jeito, embora alimentasse o sonho secreto de um dia parir. Mas tinha medo de parir e sofrer rejeição de Amaral. Achava que a maternidade poderia ser céu e inferno. E se engordasse?
V
Maria da Penha acabou conhecendo Babinha. Babinha gostava de homens e mulheres. Era assim que dominava Josefina. E dominou Maria da Penha.
Amaral alheio, cumpria o papel clássico de chefe de família. Sustentava, não dava satisfações à esposa, e vivia como os coronéis do sertão.
Tinha Babinha, as mulheres do bordel, Josefina...e quando Maria da Penha alcançou os treze anos, descobriu que havia mais uma mulher ao seu alcance.
VI
Dominada pelo pai, pela prostituta e pelo marido, Josefina levava uma vida de recompensas fáceis, desde que não questionasse os gostos de seu homem. Era assim que passava tardes lendo poesias para Maria da Penha, bordando, contando histórias para os moleques filhos dos empregados, deitando com Amaral e sonhando com os estranhos carinhos de Babinha.
Josefina não perguntava. Rezava para a virgem para agradecer a boa casa, a boa mesa, os carinhos de Babinha e os cuidados semanais de Amaral, que para ela reservava os sábados. Sabia que o sábado era dia de muita concorrência na casa de Babinha e podia contar com a fidelidade do marido. Aos domingos ia rezar na igreja do lugarejo, feliz com sua família.
De longe enxergava Babinha, que lhe enviava um sorriso e uma piscadela sob um véu preto, apropriado para as mulheres de vida extravagante.
VII
Um dia surgiu um caboclo fedido, barba mal feita, no portão da propriedade de Amaral. Era Agenildo, com um dos filhos, que veio pedir licença para recuperar umas cabras perdidas.
Josefina foi quem atendeu. Pelos traços reconheceu o caboclo e tratou de despachá-lo, para evitar que Maria da Penha tivesse desgosto.
De noite sonhou com o caboclo. Todo sujo, barbudo, puxando cabras e cuspindo.
Josefina acordou molhada. De suor e do orgasmo que o caboclo provocou, trazendo um misto de asco com prazer.
Buscou o conselho de Babinha para se redimir. "Santa Maria, mãe de Deus"...rezou com a prostituta e se penitenciou pelo sonho.
Agenildo achou as cabras e nunca mais voltou ao lugar, pois já esquecera que um dia tivera filha, abandonada na desgraceira do mundo.
Em lugar de Agenildo Maria da Penha ganhou um pai carinhoso, que ajudava a fazer tarefas de estudo, trazia flores e ensinava brincadeiras inocentes, como o beijo.
VII
Amaral tinha muitos livros. Mostrou para Maria da Penha um clássico russo: "Crime e castigo", de Dostoiewski, onde um jovem buscava a salvação da honra da irmã cometendo um assassinato. Havia também uma jovem, Sônia, que buscava a salvação de seus parentes e do jovem namorado usando seu corpo.
Amaral mostrou para Maria da Penha que Sônia tinha uma nobreza sem par ao fazer tudo por Raskolnikov, o jovem assassino.
Criou uma aura de heroísmo para a jovem do livro, que usava seu corpo, não sentia culpas, apenas queria repetir o gesto de Maria ao lutar pela salvação dos homens. Comparava a prostituta de Dostoiewski a Maria Madalena, que fez de seu corpo instrumento da vontade de Jesus.
Maria da Penha chorava ao ouvir as histórias de Amaral, sempre tão confortante quando via o resultado de suas investidas literárias.
VIII
Foi Babinha quem sentiu ciúmes ao saber que sua protegida estava aprendendo literatura e conceitos de sedução com Amaral. Chamou Josefina, para que houvesse alguma providência.
Josefina não aceitou intervir. Era mulher, sabia seu papel. Foi treinada para obedecer ao pai e ao marido, e não via maldade no amor de Amaral por Da Penha.
Ficou de mal com Babinha. Babinha jogou Amaral contra Josefina. Acusou a esposa de ter ciúmes da enteada.
Amaral puniu Josefina deixando de deitar com ela aos sábados. Josefina chorou, sem saber por que, mas tinha certeza que Amaral tinha razão. Ele era homem, mais estudado que ela.
IX
Josefina foi orientada a viajar para a Capital, para fazer compras. Foi este o ardil de Babinha para tentar puxar Maria da Penha para o bordel. Amaral nem percebeu. Foi em busca dos prazeres mundanos e encontrou a rapariga sentada na cama da prostituta.
Foi um choque saber que a rapariga havia sido entregue a um sujeito sujo que apareceu lá pelas bandas do bordel durante a tarde. Em troca do roçado do quintal Babinha deixou o homem fazer sexo com a jovem, já preparada pelas conversas bestas do Dostoiewski.
Maria da Penha se deixou usar pelo caboclo sujo, que cuspiu depois de fazer sexo, e foi embora com mais uns auxiliares.
Amaral foi quem chorou. Esbofeteou Babinha e levou embora Maria da Penha.
X
Babinha teve que fechar o bordel e pagar multa. Outra cafetina tomou seu lugar. Josefina soube do caso e se conformou de ver Amaral deitar com a enteada o resto da vida.
Quando pensava em reclamar, apanhava junto com a enteada.
Maria da Penha nunca entendeu quem era aquele homem feio que a fez mulher, abrindo sua vida para os costumes do Amaral, a quem bem queria, sem nunca questionar o gosto.
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